1964: Personagens e acontecimentos que estremeciam o Brasil há 50 anos
O DIA DO GOLPE
50 ANOS DEPOIS
Às 18 horas do dia 31 de março de 1964 o presidente João Goulart conversava com o general Peri Bevilacqua, chefe do Estado-¬Maior das Forças Armadas. O encontro era no Palácio Laranjeiras, rebuscada joia em estilo renascentista francês plantada num tapete de Mata Atlântica no coração do Rio de Janeiro, e o tema era o mesmo tratado pelo visitante anterior, o senador e ex-presidente Juscelino Kubitschek: ainda dava tempo de salvar o governo. Se rompesse com a ala mais radical, que queria mudar as regras do jogo a poder de greves e insubordinações na base militar, havia uma chance de arrastar de volta as forças já desencadeadas. Na verdade, isso não era mais possível, e o bilhete que o presidente recebeu, no meio da conversa, de seu ministro da Justiça, Abelardo Jurema, era a confirmação definitiva. “General, o general Mourão revoltou a 4a Região Militar em Minas e exige a minha renúncia. O senhor acha isto direito?”, perguntou a Bevilacqua. Podia não ser direito, mas era a realidade. E não era só o general Olympio Mourão, embora a iniciativa em campo, e até uma certa precipitação, tivesse sido dele. Estranhamente calmo, até passivo demais para os que o cercavam, Jango já estava deposto na prática, e tomaria uma decisão errada atrás da outra, como um personagem de tragédia grega nos trópicos, impotente para mudar seu destino. Dois generais que não se davam mas viriam a se suceder na Presidência, Humberto de Alencar Castello Branco e Arthur da Costa e Silva, disparavam telefonemas articulando a conspiração entre homens cheios de estrelas nos ombros, dúvidas operacionais na cabeça e uma única e inescapável certeza: do jeito que estava não iria continuar.
Praticamente no mesmo horário, em Goiânia, aonde havia ido para dar uma palestra, o dirigente comunista Jacob Gorender, posteriormente um notável historiador, descobriu na barbearia do hotel onde se hospedava o motivo pelo qual não chegavam os jornais do Rio: simplesmente não havia aviões decolando do Rio. “Arrumei a maleta, assinei as faturas na portaria e, ao botar os pés na rua, começou para mim um período de seis anos de clandestinidade.” Não só a vida de Gorender entrava num labirinto. Jango, Bevilacqua, JK, Jurema, Mourão, Castello, Costa e Silva e todas as demais figuras políticas e militares envolvidas nos dois lados do estranho golpe em que nenhum soldado disparou contra outro com voz de comando diferente seriam arrastados pelo incontrolável turbilhão histórico. Convencidos de que deviam interferir para salvar as Forças Armadas e o Brasil, saindo de cena em seguida, pois não eram generais de republiquetas centro-americanas — convicção partilhada pelo líder do Partido Comunista, Luiz Carlos Prestes —, os chefes militares acabaram inaugurando um período de vinte anos de ditadura em que o próprio regime sofreu a corrosão moral autoinfligida das perseguições políticas e dos métodos abomináveis de combate a inimigos ideológicos erguidos em armas.
Com todos os seus interlocutores nos dias dramáticos que levaram à sua deposição, Jango manteve a mesma atitude. Aos cabeças quentes que pediam poder de fogo para resistir, dizia que não poria armas nas mãos de quem não sabia atirar — ele mesmo, criado na vida do campo no Rio Grande do Sul, era bom de pontaria e só perdia para a mulher, Maria Thereza. A uma proposta do ministro da Aeronáutica, Anísio Botelho, de jogar napalm nos recrutas do general Olympio Mourão, parados no meio do caminho entre Minas e o Rio, respondeu: “Vai queimar gente? De jeito nenhum”. O único avião de guerra que levantou voo para defender o governo jogou panfletos sobre Juiz de Fora. Imutável também foi o presidente com os cabeças frias, os que apelavam para romper com as várias alas à esquerda que puxavam o país para a ruptura institucional. Provavelmente o mais importante deles tenha sido o general Amaury Kruel, o comandante do II Exército, sediado em São Paulo. Eram amigos de longa data, Kruel havia batizado seu filho mais velho, João Vicente, e Jango contava, irrealisticamente, atraí-lo para o lado da salvação de seu governo. A última conversa entre os dois foi às 11h30 da noite de 31 de março. Kruel pediu, de novo, que o presidente mudasse de rumo. “Nunca tive apoio nem das forças políticas nem das Forças Armadas durante o meu governo, só tive dificuldades. Se agora, nesta hora cruciante, eu me livro dos que me cercam, equivale a um suicídio”, repetiu Jango. Meia hora depois, Kruel, que já estava com a tropa meticulosamente distribuída, proclamou: “O II Exército, sob meu comando, coeso e disciplinado, unido em torno de seu chefe, acaba de assumir atitude de grave responsabilidade com o objetivo de salvar a pátria em perigo, livrando-a do jugo vermelho”. No dia seguinte, 1º de abril, Jango partiu para o périplo final: foi do Rio para Brasília, de Brasília para Porto Alegre, de Porto Alegre para São Borja, dali para uma fazenda mais remota e, por fim, para o exílio no Uruguai.
O golpe que agora completa meio século começou a se tornar possível no dia 25 de agosto de 1961, quando o errático e até hoje enigmático Jânio Quadros abriu mão dos 5,6 milhões de votos que o haviam levado à Presidência do Brasil. Em lugar do homem dinâmico e cheio de ideias novas que Jânio parecia ser, o país se viu às voltas com Jango, beneficiado e ao mesmo tempo sobrecarregado pela herança getulista que já havia redundado num beco histórico sem saída. Simpático e com fama de ser uma espécie de playboy dos pampas, Jango funcionava bem na máquina partidária, mas não tinha o carisma nem o autocontrole de Getúlio Vargas. O ambiente tóxico era alimentado por um conjunto de correntes políticas irreconciliáveis, representadas em seu estado de furor primal de um lado por Leonel Brizola, o incendiário cunhado do presidente, e de outro pelo lança-¬chamas humano chamado Carlos Lacerda, o governador da Guanabara. As forças ideológicas conflitantes avançaram para a mais perigosa ecologia política, quando cada lado se considera existencialmente ameaçado pelo outro. O filme O Encouraçado Potemkin era projetado no Ministério da Marinha como aula de instrução política para encorajar a rebelião entre os próprios marinheiros, e mulheres com terços na mão haviam impedido Brizola de falar num comício em Belo Horizonte. Uma análise feita na época assim retratava a situação: “Áreas enormes da população, sobretudo da classe média brasileira, estão sendo submetidas a um processo de hipnose que arrasta as camadas da população a um anticomunismo irracional e fanatizado. Dois grandes males põem em risco a paz e a liberdade de nossa pátria na conjuntura atual. São eles a inflação financeira e o radicalismo político. O medo de perder gera a mesma fúria agressiva que a cobiça de ganhar. Em breve, se não houver possibilidade de uma solução equilibrada, o destino da maioria dos brasileiros estará à mercê dos grupos extremistas minoritários, que, por um misto de ambição e medo, se atiram à ação direta, para a revolução ou para o golpe de Estado”. O diagnóstico não poderia ser mais autorizado: foi feito por José de Magalhães Pinto, banqueiro, governador de Minas Gerais e o mais influente articulador político do golpe de 1964. Teria sido possível outro desfecho? Aos historiadores, esse tipo de especulação é proibido. Os leigos sempre podem levantar a questão. O general Peri Bevi¬lacqua, aquele que no começo desta reportagem aparece apelando a Jango, acreditava que sim. Bastava Goulart ter lhe dito: “General, eu lhe peço que viaje imediatamente para Minas Gerais, vá se entender com seu amigo Mourão e convide para ir em sua companhia o senador Juscelino”. JK e Mourão eram amigos da infância passada em Diamantina. “Em menos de 24 horas, teria sido encontrada uma solução política para aquela gravíssima crise. Teria sido evitado que se quebrassem os padrões da legalidade, e a experiência mostra que, uma vez que esses padrões são quebrados, é muito difícil, depois, voltar ao regime ideal de respeito meticuloso à lei, ao regime de fidelidade à Constituição e às leis do país.” Sensatas palavras de um homem que viveu tempos insanos. Flagrantes dos acontecimentos de cinquenta anos atrás são mostrados, a seguir, através dos personagens que estavam nos lugares mais decisivos no dia 31 de março de 1964.
FESTA NO MARACANÃSoldados comemoram o golpe sem tiros: “Uma vez que os padrões da legalidade são quebrados, é muito difícil, depois, voltar ao regime de respeito à lei”
Coadjuvante no papel de protagonista
Refestelado num sofá no 3º andar do Palácio do Planalto, tomado pelo bando de gaúchos felizes com o resultado do plebiscito que havia encerrado a curta experiência parlamentarista, o capataz da estância de João Goulart em São Borja resumiu a dúvida que o afligia. “Janguinho, aqui estamos no gabinete do presidente”, constatou Bijuja. “Só não sei se nós subimos ou se é a República que está descendo…” Mais de cinquenta anos depois, o empresário Ronald Levinsohn, testemunha da cena, continua achando que Jango deveria ter levado a sério a pilhéria de Bijuja. João Belchior Marques Goulart fora um razoável deputado federal, um competente chefe do PTB e, entre janeiro de 1956 e agosto de 1961, o vice invisível que todo governante pede a Deus. Mas as trapalhadas do ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e os equívocos do presidente ofuscado pela existência de um primeiro-ministro avisavam que talvez não estivesse pronto para o papel principal. Seu desempenho na chefia do governo, sobretudo nas 48 horas finais, provou que o aplicado coadjuvante não havia nascido para protagonista.
“Era difícil não gostar de alguém tão simpático, amável, incapaz de odiar os piores inimigos”, disse em 1980 o general Argemiro de Assis Brasil. “Mas a verdade é que Jango só sabia governar uma estância, que é algo muito diferente de um país de dimensões continentais atormentado por crises desde 1922.” O desapreço pela rotina administrativa foi igualmente testemunhado por Ronald Levinsohn. “Uma vez ele me chamou a Brasília para ajudá-lo a livrar-se de alguns documentos que precisava assinar”, lembra o empresário. Confrontado com a montanha de papel, sugeriu que embarcassem num avião e despachassem enquanto voavam para o Rio: “Aprovamos até a reforma do telhado da alfândega de Uruguaiana”.
“Ele foi eleito vice-presidente, não estava preparado para as funções que teria de desempenhar”, afirmou Assis Brasil, chefe da Casa Militar nos últimos cinco meses do governo. Concordavam com o general os incontáveis militares e políticos que sempre enxergaram uma reedição intragável de Getúlio naquele estancieiro rico, boêmio e mulherengo, bom de conversa e de copo, que usava o apartamento no Edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace, para confabular em trajes íntimos com sindicalistas, dirigentes da UNE e políticos orientados para uma guinada radical à esquerda. Em agosto de 1961, as reações à renúncia de Jânio Quadros deixaram claro que, se dependesse da caserna, Goulart jamais seria o número 1. O almirante Sylvio Heck, por exemplo, pensou imediatamente no substituto ao ouvir do titular a decisão de abandonar o cargo. “Mas nós levamos tanto tempo para tirar essa gente do poder…”, lastimou o ministro da Marinha. “Como é que o senhor vai entregar-lhes novamente o governo?”, recordou a Jânio.
Forçado a engolir sem engasgos o purgante parlamentarista, tornou-se um presidente que nada presidia. Depois de recuperar os poderes que perdera, esperou até março de 1964 para assumir efetivamente o papel disputado por numerosos atores em ação no balaio de grupos, partidos e indivíduos que só não divergiam quanto à urgência das chamadas reformas de base. Entre tantos, nenhum concorrente lhe parecia tão incômodo quanto Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul que se elegera deputado pela Guanabara. “Ele não suportava mais a liderança do Brizola”, atestou Darcy Ribeiro. Segundo o chefe da Casa Civil, Jango decidiu transformar o comício de 13 de março no duelo decisivo com o cunhado, parceiro e rival.
CONTINÊNCIA E ADEUSSaudado pelos sargentos em pé de guerra, o presidente apelou: “Forças ponderosas e insensíveis à realidade nacional”
Um dos quinze oradores que precederam Goulart, Brizola encerrou seu discurso com o repto: “O nosso presidente que se decida a caminhar conosco e terá o povo ao seu lado: quem tem o povo ao seu lado nada tem a temer”. Aos 45 anos, quem replicou foi um novo Jango. Num tom de voz muitos decibéis acima do normal, suando muito, o presidente encampou publicamente todas as reivindicações da constelação esquerdista. E passou das palavras à ação ao anunciar que assinara dois decretos que prenunciavam a reforma agrária e a estatização de bens privados ligados à produção de petróleo.
Ao apanhar a luva atirada por Brizola, o conciliador vocacional foi substituído por um radical em estado de beligerância — e tornou inevitável o choque das duas placas tectônicas que, perigosamente próximas desde a metade do século, dividiam o mundo político brasileiro. Entre 13 e 30 de março, o presidente de andar claudicante, imposto por uma doença venérea que paralisou seu joelho esquerdo, avançou em marcha batida pela trilha à beira do penhasco. Solidário com marinheiros e sargentos sub¬le¬vados, juntou ao fantasma comunista e ao espectro da “república sindicalista” a visão da hierarquia despedaçada. Foi essa a assombração que colou as Forças Armadas, então às voltas com intrigas, ciumeiras e ressentimentos tão desagregadores quanto os que assolavam os antagonistas.
O presidente disposto a tudo para consolidar-se no poder foi ouvido pela última vez na noite de 30 de março. No jantar com os sargentos no Automóvel Clube, atribuiu a responsabilidade por um provável derramamento de sangue ao que qualificou de “forças poderosas e insensíveis à realidade nacional”. No dia seguinte, a notícia do levante em Minas ressuscitou o estancieiro pacato e o chefe político titubeante. Enquanto tropas vindas de Minas e São Paulo se aproximavam do Rio, Jango travava combates telefônicos para recompor o esquema militar que até a véspera parecia imbatível. Um a um, os comandantes de Exército aderiram ao golpe. Generais do povo e almirantes vermelhos sumiram. Abatido pelas decepções sucessivas, o presidente só rompeu o silêncio para evitar confrontos armados. O último a defender a resistência a bala foi Leonel Brizola. Na madrugada de 2 de abril, ao desembarcar em Porto Alegre, Jango foi para uma reunião na casa do general Ladário Telles, comandante do III Exército. “Tenho armas e homens em número suficiente”, informou o anfitrião. “Mas preciso que o senhor dê as ordens.” O próprio Brizola sugeriu providências urgentes e, anos depois, contou a resposta. “Aí Jango falou: ‘Se a minha presença no governo for à custa de derramamento de sangue, prefiro me retirar’. E foi pescar no Rio Uruguai.”
A vitória sorriu afinal para o “Coronel Y”
Depois da parada do carro oficial para uma subida rápida ao apartamento 304 da Rua Jangadeiros, 23, em Ipanema, na tarde de 31 de março, Castello Branco só teria um superior hierárquico, o “Coronel Y”. Castello tinha 63 anos. Ou 66, se verdadeira a plausível história de que o pai, o general Cândido Castello Branco, roubou três anos para garantir a gratuidade do filho no colégio militar. Castello vinha de horas tensas passadas no seu gabinete de chefe do Estado-Maior no quartel-general do Exército, quando, com uma ordem de prisão contra ele sendo protelada por colegas de farda simpatizantes, expediu este telegrama a todos os comandantes de tropa: “Restaurar legalidade. Restabelecer a Federação. Eliminar o desenvolvimento do plano comunista de posse do poder. Defender as instituições militares, que começam a ser destruídas. Estabelecer a ordem para o advento de reformas legais”. O regime de Jango estava liquidado e, apesar de o eterno rival, o general Arthur da Costa e Silva, ter se autodenominado Comandante Supremo da Revolução, Castello Branco era o líder inconteste aos olhos da tropa e dos chefes civis do movimento.
Em casa, antes de seguir para um dos muitos locais secretos preparados para aquele momento, ele tirou pela última vez a farda de general de quatro estrelas e colocou um terno. Obedecia às ordens do Coronel Y. Com esse codinome, ele assinou dez colunas em um jornal carioca nos anos 1930. Nelas traçou a visão do papel do militar da qual não se afastaria nunca mais. Se o menino é o pai do homem, o Coronel Y foi o pai doutrinário de Castello: “O militar-político é um lobisomem, um homem de existência dupla e misteriosa e que mete medo. Passando a desempenhar função civil, é militarmente lógico e individualmente honesto que ele se torne um egresso de sua classe”.
Castello se tornara um egresso de sua classe. Nessa condição foi eleito presidente da República pelo Congresso, prendeu, cassou, mas não permitiu a tortura. Fez uma reforma agrária, criou o Banco Central e o FGTS. Quis devolver o poder aos civis. A linha dura não permitiu. Assinou o Ato Institucional Nº 2 e acrescentou de próprio punho um parágrafo único: “O atual presidente é inelegível”. Morreu em 1967 no céu do seu Ceará em um acidente insólito. O avião em que viajava foi abalroado em pleno ar por um caça da FAB. O piloto militar sobreviveu.
Humberto de Alencar Castello Branco foi o primeiro presidente do ciclo dos generais, que seria fechado 21 anos mais tarde pelo general João Figueiredo. Castello foi também um dos últimos oficiais superiores da estirpe de numes tutelares nascida com a Proclamação da República, em 1889, pela espada do marechal Manoel Deodoro da Fonseca. Cresceu ouvindo do pai general: “Nós militares parimos a república, é nosso dever embalá-la”. Era um tempo em que as famílias cuidavam de ter filho padre e militar. Não para salvar almas ou ganhar guerras. Mas para angariar poder político. Foi para isso que o pai o encaminhou para a farda. Foi por isso que ele a tirou em 31 de março.
Uma contradição em termos, Castello foi o grande legalista, mas deu o golpe. Sendo um empedernido soldado profissional, fez política de tenente a general. Sem chance de competir pelos primeiros lugares com os cadetes teutônicos, louros, altos, atléticos, e os de inteligência natural transbordante, como Luiz Carlos Prestes e Henrique Teixeira Lott ou mesmo Costa e Silva, decidiu superá-los pelo esforço sobre-humano nos estudos e na adesão fundamentalista à disciplina. Sua bússola era o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE). “Mas, enquanto os outros militares só faziam o que o RDE permitia, o Castello fazia tudo o que o RDE não proibia. Assim ele conseguiu estar sempre à frente e ter o controle da maioria das situações conflituosas em que se metia”, lembra um de seus recrutas. Isso o ajudou a superar oficiais mais graduados na campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália durante a II Guerra Mundial e a aderir à conspiração a curta distância do quepe de Jair Dantas Ribeiro, ministro da Guerra e fiel a Jango, ao tempo que dava ao superior seguidas provas de apego à hierarquia e à disciplina.
NO LARANJEIRAS EM 1963Com a cúpula do “creme de abacate”, Castello vai à roda com Jango: “O militar politico é um lobisomem”
Ribeiro não tinha razões para duvidar de Castello, que sempre rejeitou, um a um, todos os convites anteriores para tomar parte de golpes, quarteladas, motins e revoluções. Tantas vezes colegas esperançosos de que aderisse de última hora não lhe confiaram as senhas desencadeadoras de movimentos como “o bebê nasceu” ou o “trem partiu da estação”. Ele se manteve sempre legalista, racional, disciplinado e obediente à hierarquia, guardião da Constituição — democrata, enfim. Colocando em segundo plano as fraternas lealdades da caserna, colecionou antipatias duradouras. Castello combateu a Coluna Prestes nos anos 20. Foi contra a Revolução de 1930. Sem a menor admiração por Getúlio Vargas, foi legalista em 1932. Ficou contra os oficiais que queriam impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek, em 1955, por ele ter como vice João Goulart. No levante de Aragarças, de 1959, quando oficiais da Aeronáutica se amotinaram contra Juscelino, sua conduta foi exemplar. Emissários enviados para son¬dar a possibilidade de obter apoio do então comandante militar da Amazônia ouviram a negativa que ecoava a doutrina do Coronel Y: “É um erro de visão acreditar que o Brasil não pode melhorar dentro do regime constitucional. Só se faz uma revolução dentro de uma ideologia e impelido por uma forte corrente de opinião pública. O Brasil não quer quarteladas”.
Por que em 1964 sua atitude foi diferente? Por que ele resolveu fazer o “creme de abacate”? Essa era a expressão que os oficiais do Exército usavam para ilustrar o fato de que, embora até reconhecessem o papel da Força Aérea e da Marinha, qualquer ação contra o governo Goulart só teria êxito com o predomínio das fardas verdes. Castello aderiu por duas razões. A mais simples e prática decorria do fato de que a vitória era certa. No pior cenário, na avaliação lógica do estrategista da tomada do Monte Castelo na campanha da Itália, a vitória viria em no máximo dois meses. Veio em um dia. A outra se assentava na constatação de que o movimento contra Goulart não era uma quartelada. Não era a pura e simples usurpação do poder. O movimento representava o desejo legítimo de ampla parcela do povo.
A maioria dos generais do Exército selou o destino de Jango depois do comício na Central, no dia 13 de março, quando Leonel Brizola propôs fechar o Congresso e convocar um plebiscito. Castello precisou de mais uma semana para aceitar a inevitabilidade da ação. No dia 20 ele se comprometeu até a medula com o movimento ao emitir uma decisiva nota circular aos oficiais comandantes do Exército: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”. Usar o Exército como milícia era o plano mestre do núcleo duro em torno de Jango. “Ele nunca elogiou ninguém”, reclamava o general Olympio Mourão Filho, cujas tropas Castello tentou, em vão, fazer voltar aos quartéis em telefonema ao governador mineiro, Magalhães Pinto. Mourão encarnava tudo o que Castello desprezava em um comandante: “Fuja dos generais intuitivos e emocionais. A hecatombe nunca anda longe deles”.
Castello não viu seu triunfo degenerar nos males que julgou vencidos em 1964. Morreu como viveu: respeitado, admirado e temido. Talvez tenha superado as marcas traumáticas da cifose, seu tormento da juventude, que o levaria a usar um corretor postural na última década da vida. Talvez tenha apagado o trauma do telegrama do pai — “faça exame” —, recebido quando era primeiro-tenente no 12º Regimento de Infantaria, em Belo Horizonte. Fazer um exame médico fora a única exigência imposta pelo sogro, o comerciante Arthur Vianna, para en¬tregar-lhe a mão de sua filha Argentina. Vianna temia que Castello fosse portador de uma doença hereditária. O amor foi maior do que a indignação, e o tenente deixou-se examinar, tranquilizando o sogro. Poucos meses depois, casou-se com Argentina, que morreu, em 1963, no Recife. Dois anos mais tarde, dizem, o coração de Castello já encontrava conforto ocasional ao lado de linda e talentosa atriz.
Do limbo ao Planalto
Era uma espécie de cão leproso.” Assim o general Ernesto Geisel classificou a situação em que estava quando João Goulart tomou posse, no apressado arranjo parlamentarista, em 1961. Não teve cargo, comando nem prestígio junto ao novo chefe de governo, a quem considerava “um homem fraco e dominado pelas esquerdas”. Três anos depois, era um dos integrantes mais importantes do grupo chefiado pelo general Humberto Castello Branco. A aproximação entre os dois futuros presidentes militares não tinha sido exatamente fácil. Conspirador de primeira hora, Geisel, tão austero que quando cursava a Escola Militar do Realengo não aceitava convites de fim de semana de colegas cariocas porque não tinha roupas que considerasse apresentáveis, fazia restrições ao cearense que gostava de poesia e seguia a linha legalista. “Muitos de nós não gostávamos do Castello na vida militar, inclusive eu e meu irmão Orlando, por causa do seu feitio, por ser irônico”, relatou muitos anos depois, na série de entrevistas transformada em livro por Maria Celina D’Araujo e Celso Castro. Ao se afastar de “generais amigos, contrários a nós e ligados ao sistema Jango”, Castello se aproximou de Geisel e Golbery do Couto e Silva, que estava na reserva e, como sempre, transitava no fluido mundo das sombras. O general de cintura dura também teve seus momentos de maquiavelismo, já nos estertores do governo Goulart, quando o presidente apoiou em pessoa os sargentos praticamente em estado de sublevação. “Alguns companheiros vieram a mim com a proposta de cercar o acesso ao Automóvel Clube com elementos de confiança e assim impedir a realização da reunião. Fui contrário a isso, dizendo: ‘Deixem que se faça a reunião; agora, quanto pior, melhor para a nossa causa’.” Geisel e Golbery acompanharam Castello em suas movimentações de 31 de março e 1º de abril, no quartel-general do Exército e entre apartamentos cedidos por simpatizantes que passaram a ser chamados de postos de comando. Ironizada como a “revolução por telefone”, a articulação na verdade foi essencial para aglutinar os diferentes focos de rebelião militar. “Não havia um comando único na revolução. Mas, para o nosso grupo, o chefe era o Castello”, descreveu Geisel. O outro grupo se inclinava pelo general Arthur da Costa e Silva. Falando com palavras cuidadosamente inteiras, como era de seu feitio, ele resumiu assim a disputa em gestação: “Essa divergência, no meu modo de ver, teve influência muito grande depois”. Mas, nos idos de março de 1964, Castello era o nome mais forte e Ernesto Geisel um de seus homens de total confiança. Passados dez anos, tornou-se presidente com um voto só que realmente contava — o de seu antecessor, Emílio Garrastazu Médici — e um projeto “lento, gradual e seguro” de retorno à democracia. Demorou mais dez anos. Sua seca e final avaliação: “Foi um erro ter-se ficado tanto tempo”.
Um lobo e seus demônios
A conspiração era dele, o golpe foi dele, sem ele tudo estaria perdido — a democracia, os generais “que fazem crochet”, a massa ignara, o Brasil. O general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Minas Gerais, achava que tinha arriscado tudo para fazer a revolução. Acabou ficando sem nada, exceto o elevado conceito que fazia de si mesmo e o desprezo ferino por praticamente todos os demais, inclusive companheiros de farda. Anotou em seu diário no dia 31 de março, terça-feira, às 3h15 da manhã: “Vou partir agora para a luta às cinco horas da manhã, dentro de uma hora e cinquenta minutos, em más condições, portanto, porque serei obrigado a parar no meio do caminho e o Exército inteiro vem contra mim, como aconteceu em São Paulo em 1932. Ninguém me prenderá. Morrerei lutando”. Não morreu e, a rigor, não lutou, mas foi indubitavelmente o pioneiro da rebelião militar lançada de Minas Gerais que, desfechada em atmosfera duvidosa, chegou ao Rio de Janeiro quando a vitória já estava decidida. No caminho, um telefonema havia mudado tudo. O inimigo que Mourão esperava encontrar era o destacamento avançado do conhecido Regimento Sampaio, sob o comando do coronel Raimundo Ferreira de Souza. Como uma espécie de conspirador sênior (e controlador do espeloteado comandante), o venerando marechal Odílio Denys acompanhava a movimentação de Mourão e foi ele o indicado a falar como o chefe das forças teoricamente adversárias pelo telefone de uma oficina mecânica: conhecia o coronel, que havia sido seu subordinado. “Estou com a tropa e com mineiros para depor o governo e acabar com a ameaça do comunismo”, informou. No fim da conversa, o coronel Ferreira de Souza já tinha mudado de lado: “Eu e toda a minha tropa nos solidarizamos com o movimento revolucionário”. Enquanto Mourão se imaginava um César triunfante, outros generais mais estrelados se movimentavam nos diversos focos de conspiração.
Dois dias depois de sair de Minas contando com a morte, ele chegou ao quartel-general do Exército no Rio, também de madrugada, já antevendo que seria passado para trás. O general Arthur da Costa e Silva havia assumido o comando do Exército e queria outro nome para a posição que Mourão considerava sua de direito, a chefia do I Exército. Mourão foi ao 6º andar, mandou um coronel acordar Costa e Silva, ouviu e acatou a decisão de ter outro no lugar que desejava. “Aí começou a desgraça do Brasil. Eu tirara a nação de um abismo e empurrara-a para outro. Se eu conhecesse o general Costa e Silva como hoje, o teria expulsado do Quartel-General”, escreveu em suas memórias, entregues no leito de morte ao historiador Hélio Silva, que o considerava um homem “bom, sofredor, pitoresco, capaz de assomos de cólera”. O temperamento explode em praticamente todas as páginas de suas memórias. Proclamando para si mesmo a “articulação, o desencadeamento e a vitória” da revolução, escreveu: “Porque a verdade é que alguns demônios andaram soltos neste país, enquanto a maioria desta nação estava entocada, apavorada, os chefes militares prontos a se deixarem dominar, contanto que continuassem a viver, viver de qualquer maneira, sem coragem de arriscar as carreiras”. Ele considerava ter tido os olhos abertos para esses “demônios” num jantar em 1961 em que Leonel Brizola, na época governador, e outro general de sua confiança falaram livremente sobre seus planos políticos. “Fui para casa dormir, absolutamente disposto a começar uma contra-conspiração para impedir que uns loucos furiosos transformassem este país numa fogueira.” Mourão não fez outra coisa, cultivando a reputação de lobo solitário — alguns achavam que um bobo solitário, que falava demais, agia com impulsividade e cultivava o próprio ego a ponto de denominar de Operação Popeye os planos para sair de Juiz de Fora e, em marcha forçada, chegar ao Rio a tempo de “prender no Palácio Laranjeiras o presidente, o comandante do I Exército e quantas autoridades mais fosse possível”. Por que Popeye? Porque ele fumava cachimbo. “Manobra de louco? Não importa. Era minha manobra”, disse sobre a operação que nunca executou. Em sua própria e famosa definição, “em matéria de política eu sou uma vaca fardada. Se de acordo com minha consciência estou certo, os outros que me sigam”. Tantos o seguiram. Depois, muitos o abandonaram.
GOLPE CRUELÍntimo de Jango, o chefe do Exército em São Paulo seguiu outra lealdade: “Tenho compromissos com a linha de conduta contra o comunismo”
Vai ou não vai? Foi
Foram muitos os telefonemas entre o presidente João Goulart e o homem cujo apoio poderia mudar o equilíbrio de forças em 31 de março de 1964. Durante, depois e até hoje, pairaram dúvidas sobre o comportamento do general Amaury Kruel, o comandante do vital II Exército, em São Paulo. Algumas das dúvidas foram plantadas pelo próprio Kruel.
Como amigo, compadre e homem teoricamente de confiança do presidente, ele tinha compromissos que só perderiam o caráter de inquebrantáveis diante de uma força muito maior. Do seu ponto de vista, já tinha feito a escolha e conspirava em detalhes com os oficiais sob seu comando. A todos os outros, civis ou militares, disfarçava. “O general invocou, honradamente, seus deveres de lealdade pessoal e amizade ao presidente João Goulart. Estava, evidentemente, diante de um drama de consciência que não o diminui, antes o dignifica, acentuando que, ao mesmo tempo em que lhe repugnava um ato de deslealdade, não podia compactuar com os desmandos do governo”, relatou José Monteiro de Castro, um dos emissários do governador e líder conspiratório mineiro Magalhães Pinto. No livro João Goulart — Uma Biografia, no qual traça uma trajetória minuciosa e simpática ao presidente deposto, o historiador Jorge Ferreira relata o último diálogo de Jango com Kruel, depois do apelo final e frustrado do comandante para que mudasse de rumo. “Por que o general não vem ao Rio, conferenciar comigo e com os demais comandantes do Exército? Creio que arranjaremos as coisas”, propôs Jango, já sabendo a resposta. “Não posso atender, presidente. Tenho compromissos com a linha de conduta que tracei para mim desde quando ministro da Guerra, contra o comunismo e em defesa do Exército, e não posso traí-la.” Ferreira assim resume o dilema: “Ambos defendiam princípios inegociáveis. Kruel corria o risco de perder a legitimidade de seu comando e, no limite, era fiel à sua instituição, mesmo que com o sacrifício da democracia; Goulart igualmente mantinha fidelidade às suas bases — as esquerdas e os sindicatos —, embora, com isso, arriscasse as instituições democráticas”. Parte da tropa sob o comando de Kruel já estava em posições importantes em São Paulo. Parte foi colocada a caminho do Rio. Em Resende, encontraram a Rodovia Dutra já dominada por cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras. Para a historiografia voltada à esquerda, a história de Kruel costuma acabar aí, com a aura de traidor e até de vendido. Na vida real, ele passou para a reserva e entrou para o MDB, o partido de oposição consentida. Em 1970, desistiu de se recandidatar a deputado. “O Congresso Nacional se encontra cassado em seu poder de decisão”, justificou. Sobre o regime que ajudou a instaurar, disse: “Sempre falavam em democracia, mas não a praticavam”.
SALVADOR E ALGOZO carisma formidável de Brizola: usado para garantir Jango na Presidência e o levar a uma radicalização suicida
Cunhado é serpente
A essas acusações de comunista, subversivo, de agitador inconformado, de incapaz de convivência democrática, a esses agravos e até insultos, eu respondo com a minha indiferença”, esbravejou Leonel Brizola em 30 de maio de 1963, durante uma sessão de ânimos exaltados na Câmara dos Deputados. Brizola podia ser qualquer coisa, menos indiferente. E todos podiam sentir tudo em relação a ele, menos indiferença. Incluindo seu cunhado, João Goulart, de quem foi salvador e algoz ao mesmo tempo. Nacionalista no sentido pervertido da palavra — todos os que não concordassem com ele eram vendilhões da pátria — e populista em sua acepção mais organicamente arrebatadora — ele falava, a massa exultava e ia atrás, mesmo que para o abismo —, Brizola tinha o carisma que faltava a Jango, mas a mesma capacidade de fazer avaliações erradas. Tinha também 270 000 votos, um número espantoso para um ¬ex-governador ¬gaúcho eleito deputado pelo Estado da Guanabara. “Não era fácil ao presidente governar com um Brizola a tiracolo, mas lhe era muito difícil libertar-se dele, numa conjuntura que, todos os dias, apresentava novos contornos, novas dificuldades e novos imponderáveis”, avaliou pouco depois do golpe o ex-ministro da Justiça de Jango, Abelardo Jurema. Palavras serenas assim, talvez só as dele mesmo. Menos política, Maria Thereza Goulart, que havia se casado com um vestido feito pela cunhada Neusa, irmã de Jango, disse depois que Brizola “naquela época tocou um pouco de fogo no circo”. Tanto, e com tanto ardor, que mesmo os comandantes militares partidários da tática de espera — empurrar a crise até a eleição presidencial de 1965 — se convenceram de que não dava: com Jango ou sem Jango, Brizola planejava um golpe institucional que levaria, na sua concepção, à instauração de uma república sindicalista. “Você viu o discurso do Brizola? Ele quer fechar o Congresso”, disse o general Castello Branco em telefonema ao companheiro de farda Arthur da Costa e Silva, depois do comício de 13 de março em que o explosivo cunhado presidencial defendeu uma Assembleia Constituinte composta só daqueles que passassem por seu crivo: trabalhadores, camponeses, sargentos e oficiais nacionalistas. Como governador do Rio Grande do Sul, Brizola havia liderado a Campanha da Legalidade, em 1961, que garantiu a posse do vice Jango, e a defesa do plebiscito, em 1963, que devolveu ao cunhado os poderes do presidencialismo. Não à toa, ele se sentia um pouco, ou talvez até muito, dono da Presidência, à qual planejava ascender por meio da campanha por uma mudança constitucional que lhe permitisse ser candidato, sob o slogan “cunhado não é parente”. A dicotomia entre o introvertido filho de estancieiro rico, que multiplicou a fortuna paterna investindo com acuidade no negócio do boi gordo, e o refulgente político de infância tão miserável que chegou a viver de favor num sótão apertado, como um Harry Potter dos pampas, explodia no jornal brizolista O Panfleto, praticamente todo dedicado a criticar a “política de conciliação com minorias e grupos conservadores” de Jango. No início de 1964, Brizola ameaçou privar o governo do apoio da Frente de Mobilização Popular, guarda-chuva de todas as esquerdas. No comício da Central, Jango, numa leve deferência ao cunhado, disse que não é com rosários que se combatem as reformas, numa referência a um episódio ocorrido semanas antes em Belo Horizonte em que senhoras de terço na mão e manifestantes inflamados haviam impedido Brizola de fazer um comício. Ele escapou do tumulto a pé e, numa rua mais adiante, sequestrou um carro apontando um revólver para a cabeça do motorista. Não houve arma, discurso ou carisma que impedissem o golpe que ele acompanhou de Porto Alegre, tentando organizar uma resistência que nunca viria.
Só pensando naquilo
Medo, o diabo não tem. Se ele fosse medroso, não chegaria ao que chegamos.” Foi o próprio desencadeador do golpe, o general Olympio Mourão Filho, quem passou o atestado de coragem ao governador de Minas, José de Magalhães Pinto, o mais importante articulador político de bastidores da derrubada do governo. Dois dias depois, o mesmo e explosivo Mourão estava disposto a mandar prendê-lo: tinha achado pouco incisivo o manifesto em que Magalhães Pinto não exigia a saída do presidente João Goulart. Numa reunião no aeroporto de Juiz de Fora, em 28 de março, Magalhães, Mourão, o general Carlos Luís Guedes e o marechal Odílio Denys, que chegou do Rio no Gordini do genro, haviam combinado os detalhes do golpe. Foi em conversa com ele que Mourão avaliou a firmeza do governador, banqueiro e, se a UDN de Carlos Lacerda deixasse, candidato a presidente. “Note o que esse homem tem a perder: o governo, uma fortuna, e numa idade ótima. Não podemos nos comparar com ele, pois somos velhos e pobres, com uma missão terminada na terra.” Magalhães Pinto não perdeu o governo nem o Banco Nacional, à época o segundo maior do Brasil. Tampouco foi preso por seu aliado: o general Guedes ignorou a ordem de Mourão. Mineiramente, manteve o discurso ambíguo até o momentinho final. Chegou a montar um secretariado composto de luminares. No caso de uma guerra civil, se Jango não desabasse de maneira tão rápida quanto aconteceu, queria garantir o reconhecimento internacional a um governo rebelde. Na tarde de 1º de abril, foi carregado nos braços de uma multidão ao sair do Palácio da Liberdade, aos brados de “Vitória”. O manifesto que Mourão havia considerado fraco dizia: “Brasileiros, foram inúteis todas as advertências que temos feito ao país. Contra a radicalização de posições e atitudes. Contra a diluição do princípio federativo. Pelas reformas estruturais, dentro dos quadros do regime democrático”. Fraco, ou talvez muito mineiro. Mas verdadeiro.
Ele só torceu ou torceu o pepino?
Tomaram duas doses de uísque White Horse cada um. No cardápio, supremo de frango à kiev e medalhão de filé acebolado regados, como se dizia, a champanhe rosé. Lincoln Gordon (que tomou Ginger Ale da Antarctica) serviu-se do supremo e cutucou o anfitrião. “Tinha de ser à kiev?” Juscelino Kubitschek rebateu: “Podemos fazer à cubana se o senhor preferir”. Foi um raro momento de leveza na noite de 30 de abril de 1964 no triplex de JK no Leblon. “O presidente estava nervoso. Ouvia duas rádios ao mesmo tempo. Uma estação de São Paulo e a outra de Belo Horizonte. Praguejava contra o general Amaury Kruel. Dizia: ‘Meu Deus, o Amaury não se mexe’.” A lembrança de JK ansioso pela adesão de Kruel, comandante do II Exército, ficou na memória do embaixador americano no Brasil da véspera do movimento que derrubou João Goulart.
Enquanto o embaixador jantava com JK, o chefe da CIA no consulado americano em Belo Horizonte mandava um telegrama urgente para a Casa Branca, em Washington — com cópia para Gordon. O presidente Lyndon Johnson leu-o imediatamente. A cópia do embaixador foi para a pilha de informes. “Quando cheguei à embaixada no dia seguinte, estavam todos eufóricos com a notícia de que as tropas de Minas Gerais estavam sublevadas contra Goulart. Os relatos eram tão quentes que nem me interessei em ler os informes do dia anterior.”
Abraham Lincoln Gordon foi uma daquelas cabeças brilhantes da Universidade Harvard atraídas para o serviço público. Ajudou no Plano Marshall, em que “por um punhado de dólares impedimos que a Europa caísse na órbita do império comunista”. Até a morte tranquila, em 2009, Gordon tentou convencer amigos e inimigos de que:
1 – Os Estados Unidos não lideraram nem apoiaram os militares em 64. Só torceram pelo sucesso deles. (“Os generais brasileiros fizeram tudo sozinhos, com imenso apoio popular e da maioria da classe política.”)
2 – Não havia plano de intervenção militar imediata. (“No dia 31 nossa frota estava a dez dias de viagem do Brasil. Os navios não traziam forças de ataque. Eles seriam usados para evacuar cidadãos americanos em caso de guerra civil. Eles voltaram para suas bases antes de chegar ao Canal do Panamá.”)
3 – Os americanos agiriam só no caso de os comunistas tomarem o poder. (“Qualquer ação militar no Brasil, um país-continente, oferece desafios operacionais incomensuráveis. Não tínhamos nada preparado. Mas é certo que analisaríamos a hipótese.”)
4 – Dormia o sono dos justos. (“Jango daria o autogolpe, seria traído e no lugar dele colocariam um títere fiel a Cuba. Como tantos democratas, apoiei o Castello, e não os 21 anos de ditadura que, ninguém entre nós imaginava, se seguiriam.”)
O chefe sem chefiados
Na noite de 30 de março de 1964, o chefe da Casa Militar, Argemiro de Assis Brasil, hasteou-se na porta da sala do Palácio Laranjeiras e, com a severidade da expressão acentuada pela farda de general de brigada, interrompeu a conversa entre João Goulart e Tancredo Neves, líder do governo na Câmara dos Deputados. “Presidente, tudo pronto, o esquema já entrou em execução”, comunicou. Fazia duas horas que Tancredo estava lá para demover Goulart da ideia de alta periculosidade: comparecer à reunião promovida no Automóvel Clube por sargentos e suboficiais sublevados. Com apenas nove palavras, Assis Brasil convenceu o dubitativo de nascença a dar o assunto por encerrado e partir para o cenário do seu último discurso antes da queda.
É provável que Jango tenha deduzido que um recado em código fora embutido na segunda parte da frase: “o esquema já entrou em execução”. Isso significava que já estavam de prontidão, ou em ação nas frentes de batalha, todos os integrantes do “dispositivo militar”, codinome de uma formidável rede de conexões clandestinas que interligavam milhares de combatentes dispostos a matar ou morrer pelas reformas de base. Entre 17 de outubro de 1963 e 31 de março de 1964, tanto os “generais do povo” festejados pelos partidários do governo quanto conspiradores que haviam tentado derrubar a direção do berçário na primeira troca de fraldas enxergaram nitidamente o exército invisível: aos 56 anos, aquele gaúcho de São Gabriel conseguira forjar um colosso que abrangia marechais e estafetas, almirantes e grumetes, brigadeiros e aviadores sem milhagem, além de uma demasia de civis com trabucos escondidos num armário.
“O dispositivo militar, que dizem que eu montei, nunca existiu”, confessou Assis Brasil só em 1980. Jango e os demais acampados no Palácio Laranjeiras souberam disso dezesseis anos antes, no momento em que chegou de Minas a primeira notícia inquietante. Em vez de levar a mão ao gatilho, o chefe sem chefiados sacou um telefone — não para desencadear a contraofensiva tremenda, mas para perguntar a oficiais menos desinformados o que estava acontecendo. Em 1º de abril, o general sem tropas foi para Brasília, onde já estava o presidente sem poder. Dali voaram juntos para Porto Alegre e depois para uma estância na fronteira com o Uruguai. No dia 4, dividiram um ensopadinho de charque com mandioca preparado por Jango. Horas depois foram para o Uruguai, e ali Assis Brasil concluiu que chegara a hora da separação: “Presidente, vou voltar para o Brasil porque minha missão está cumprida”. A capitulação sem luta não abrandou o ódio dos vitoriosos. Assis Brasil perdeu para sempre a patente e a pensão. Mas nunca perdeu o gosto pelo cultivo de fantasias. “O Exército precisa pagar a dívida que tem comigo”, insistiu pouco antes da morte, em 1982. “Tenho direito ao posto de general de divisão.”
A bela silenciosa
Uma saia de couro, um blazer, um conjunto, duas camisas de seda. No corpo, um tailleur. Essa foi provavelmente a mais chique bagagem de exílio da longa história de golpes latino-americanos, arrebanhada às pressas por Maria Thereza Goulart na Granja do Torto, em Brasília. “Você aguarda aí que alguém vai entrar em contato contigo. Eu estou aqui no Palácio Laranjeiras, ainda não sei bem o que fazer”, havia dito o marido na manhã de 1º de abril. Ainda meio perdido, ele seguiu depois para Brasília. Quase todos à volta da primeira-dama já tinham se desmanchado no ar, exceto o cabeleireiro, que insistiu em ficar com ela. Jango e a mulher saíram em aviões separados e com o mesmo destino final: o exílio no Uruguai. Maria Thereza tinha 23 anos, dois filhos e, como se dizia na época, um gênio difícil. Tinha uma reputação, também, decorrente das brigas com o marido e da beleza celebrada no número de 8 de junho de 1962 da revista Time, no qual apareceu numa lista de esposas de homens famosos que incluía Grace Kelly, já princesa de Mônaco, e Jacqueline Kennedy. O costureiro Dener fazia com Maria Thereza o que Oleg Cassini havia feito por Jackie: rejuvenesceu a imagem da primeira-dama com roupas modernas e sofisticadas, inspiradas nos grandes nomes de Paris. Também lhe deu um conselho imortal para enfrentar a timidez ao entrar em lugares estranhos: “Faz de conta que não tem ninguém, você entra e pensa que é a personagem principal da festa”. Na verdade, ela era uma coadjuvante de luxo, quase sempre silenciosa. Boatos sórdidos eram alimentados pelo clima político incendiário e pelos 21 anos de diferença de idade entre ela e o marido. No começo do casamento, trancada numa fazenda em São Borja, onde os empregados de origem guarani não falavam com ela, tinha tentado se suicidar. Jango cuidou dela, levou-a para o Rio e continuou as aventuras na noite. A célebre coleção de Mary Quant que projetou a minissaia de Londres para o mundo foi lançada três dias antes do fatídico comício de 13 de março da Central do Brasil, visto com unanimidade como a ruptura final que desaguou no golpe. Com uma elegante roupa azul ainda quase abaixo dos joelhos, coque bem armado e um pavor de multidões, Maria Thereza subiu ao palanque morrendo de medo. O congelado e hierático perfil que aparece em fotos da época era uma máscara para esconder emoções. “Foi tudo muito tenso, Jango não estava bem de saúde, teve uma queda de pressão, e já havia aquele clima horrível”, descreveu ela no ano passado, antes da exumação dos restos mortais do marido. “Ali já era o final.” Era mesmo.
ESCOLTA DA DERROTAO presidente do CGT, preso em Minas: “Se o povo não for para a rua não tem governo”
Inimigo dos amigos
Um presidente fraco cercado de bons conselheiros a quem não ouvia e de péssimos palpiteiros por quem se deixava convencer, um cunhado em ebulição permanente, placas tectônicas políticas em choque, o oficialato revoltado, o que mais faltava para o 31 de março de 1964 dar no que deu? Um marinheiro de rosto de menino e lábia de agitador profissional chamado José Anselmo dos Santos. Tão inocente na aparência e tão eficiente na agitação era o cabo Anselmo que suas culpas futuras foram antecipadas: colaborador das forças da repressão da ditadura na década de 70, passou a ser considerado, por uma ala da historiografia de esquerda, um agente da CIA plantado desde o começo para arrastar o governo Jango à desgraça. A versão CIA pode ser ilusão de perdedores, mas Anselmo realmente ajudou a afundar o governo. Explorando o tratamento brutal dispensado à marujada, tornou-se um líder do movimento esquerdista nas fileiras mais baixas das Forças Armadas. Atingiu o ápice no discurso aos 2 000 marinheiros que, no Palácio do Aço, sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, aderiram à insurreição declarada contra o comando da Arma. Era 25 de março de 1964, em plena Semana Santa. João Goulart passou a mão na cabeça dos rebelados, o ministro da Marinha, Silvio Mota, pediu demissão e nem um único comandante militar da ativa aceitou substituí-lo. Cabo Anselmo rumou para a clandestinidade. Depois de dois anos de treinamento de guerrilha em Cuba, voltou ao Brasil, foi preso, torturado e cooptado pela equipe do notório delegado Sérgio Fleury, que o apelidou de Kimble, personagem da série O Fugitivo. Por suas próprias contas, delatou “uns 100, 200” companheiros. Ganhava salário para delatar os ex-colegas de guerrilha, analisar dados e instruir outros infiltrados. No mais devastador golpe individual, em 1973, ajudou o Dops a prender e fuzilar seis líderes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no Recife, entre eles sua mulher, a paraguaia Soledad Barrett Viedma. “Existia entre nós um carinho muito grande. Esse negócio não está bem resolvido dentro de mim”, disse num programa Roda Viva. Anselmo vive no interior de São Paulo, na região de Itatiba. “Já tive uns quinze endereços; agora cuido de uma horta e alimento minhas galinhas”, contou, por e-mail, a VEJA. É sustentado pelos poucos amigos, sendo o mais fiel deles o delegado Carlos Alberto Augusto, que durante a vida dupla fez a ponte entre o cabo e o Dops. Anselmo tem pronto um livro, com prefácio de Olavo de Carvalho, de 300 páginas. Algum arrependimento? “Não existe remorso quando em tempo se reconhece o desastre iminente, contribuindo para salvar os passageiros de um naufrágio.”
O ÚLTIMO DISCURSOPadrão Darcy de resistência: “Lamber a tropa do Mourão com rajadas de metralhadora”
Delírios do imperador
Peguem essas metralhadoras, vamos acabar com a UDN inteira.” Era a fala de Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil de João Goulart na noite do dia 31, dirigindo-se a um grupo de deputados da Frente Parlamentar Nacionalista que ele mandou se reunir em Brasília. O então deputado Marco Antônio Coelho, integrante da frente, na verdade a retaguarda do janguismo, relata o episódio em seu livro Herança de um Sonho — As Memórias de um Comunista. Darcy era um delirante na paz e na guerra. No poder ou fora dele. Naquela noite de perplexidade e desinformação, Darcy delirou, abrindo com ímpeto duas caixas de metralhadoras diante do que ele imaginava ser o primeiro núcleo de resistentes. Teoricamente, Jango ainda estava no poder. Mais umas poucas horas, porém, fugiria do país, desanimando no nascedouro qualquer tentativa de resistência.
Darcy, o antropólogo delirante, não era bobo. Logo se exilou também. Em tempos mais amenos voltou ao Brasil. Colou em Leonel Brizola, com quem chegou ao poder no Rio de Janeiro e se notabilizou diante da nova geração de brasileiros como o criador dos Cieps, a delirante, por impagável e inadministrável, tentativa de dar educação integral mais comida e atendimento de saúde a todas as crianças pobres. “Quando criei a reserva do Xingu para salvar os índios brasileiros, também fui chamado de doidivanas”, dizia Darcy, o grande namorador, o homem sem medo que perdeu um pulmão para o câncer e que só enxergava uma saída para materializar seus sonhos: ser declarado imperador do Brasil. Sério? Em Darcy tudo era ao mesmo tempo sério e pilhéria.
Ao professor e jornalista Dênis de Moraes, autor de A Esquerda e o Golpe de 64, Darcy relatou o plano que sugeriu a Jango logo que soube que as tropas de Minas Gerais marchavam sobre o Rio de Janeiro: “Quando o Mourão saiu a campo, eu telefonei para o presidente, dizendo o seguinte: ‘O brigadeiro Teixeira, aí no Rio, tem aviões e já está com metralhadoras colocadas neles. E, se ele lamber a tropa do Mourão com rajadas de metralhadora, a tropa volta para o quartel’”.
Pobre Jango. Atordoado, derrotado, rumo ao exílio e ainda tendo de ouvir as criações do pensamento mágico de seu ministro-chefe da Casa Civil. Não que isso fosse surpresa para Jango. Ele emprestara o ouvido a Darcy em momentos decisivos para sua queda — como no comício da Central, em 13 de março. Naquele dia, o presidente abandonou o discurso escrito e decidiu falar de improviso. Postado à esquerda de Jango no palanque, com a fala acelerada, firme e convincente de quem não tem um segundo de vacilação, Darcy lhe ditava frases incendiárias. Nove em dez historiadores concordam que Darcy Ribeiro apressou o fim do governo Goulart.
O imperador Darcy Ribeiro nunca admitiu seu papel na derrocada daqueles que “cavalgavam com perícia o alazão da história”. Dênis de Moraes encontrou Darcy em seu apartamento de Copacabana em maio de 1988, nove anos antes de sua morte, ocasionada pelo mesmo mal que ele, galantemente, derrotara no passado. A culpa, explicou Darcy, foi dos “esquerdistas louquinhos que queriam mais caos; queriam sair do caos para o socialismo”. O delirante, portanto, se enxerga racional e direitista em um governo que um dia antes de cair defendia a estatização de todas as companhias aéreas em operação no país e cujo ministro da Fazenda foi obrigado a abortar o plano de congelar os depósitos bancários dos brasileiros como forma de debelar a inflação — maluquice posta em prática pouco menos de trinta anos depois por outro governo que, curiosamente, também foi apeado prematuramente do poder. A farsa se repetiu como farsa. O Brasil e sua história não são mesmo para diletantes, como mostra o professor que queria metralhar os adversários, declarar-se imperador e se via como um moderado cercado de “esquerdistas louquinhos”.
“Encerra, Serra. Encerra”
Seis meses antes do golpe, o presidente da União Nacional dos Estudantes, um jovem chamado José Serra, reuniu-se com o presidente João Goulart no Rio de Janeiro. Em nome da Frente de Mobilização Popular, união de grupos de esquerda que apoiava o governo, exigiu que Jango desistisse do projeto que instituía o estado de sítio, uma das muitas de suas fracassadas artimanhas. Ouviu uma resposta surpreendente: “Olha, jovem, tu não precisas te preocupar porque já tomei providências para retirar. Não deixem essa notícia circular, pois vou anunciar depois de amanhã. Mas o estado de sítio não era para agredir vocês, não era contra o povo. Agora, vou lhe dizer uma coisa: eu não vou terminar este mandato, não. Não chegarei até o fim”. O líder estudantil pressentiu o fim. “Fiquei assombrado ao ouvir do presidente, conformado, uma convincente previsão pessimista sobre o destino do seu mandato. Em nenhum momento mais, essa ideia me abandonou”, conta Serra. Nem por isso ele mudou a postura radical, típica da época. Em 23 de agosto, já tinha discursado no comício da Cinelândia em memória do suicídio de Getúlio Vargas. Subiu ao palanque de novo em 13 de março de 1964, na Central do Brasil, quando foi o mais jovem e um dos mais impetuosos a discursar. Jango anteviu o tom extremado e mandou Hércules Corrêa, líder sindical comunista que atuava como mestre de cerimônias, limitar o tempo do presidente da UNE ao microfone: “Vou te anunciar, você dá boa-noite, recebe as palmas e encerra, Serra. Encerra”. Ele, naturalmente, não seguiu as instruções e cuspiu fogo. Chegou a chamar o general Amaury Kruel, à época aliado de Jango, de “traidor incestuoso”. Em 30 de março, na iminência do golpe, instalou-se na sede dos Correios no Rio, transformada em central de informações dos janguistas, sob o comando do coronel Dagoberto Rodrigues. No fim do dia, os tanques que protegiam o local começaram a virar seus canhões para o prédio. Serra fugiu por uma porta lateral e se escondeu na casa do deputado Tenório Cavalcanti, em Duque de Caxias. Deitado em um sofá, ouviu pelo rádio a notícia do incêndio da sede da UNE, na Praia do Flamengo, por paramilitares de Carlos Lacerda. Foi para a Embaixada da Bolívia. Tinha 22 anos. É um dos sete personagens mostrados nestas páginas que podem dar um depoimento direto. Os outros seis são Maria Thereza Goulart, Ieda Maria Vargas, Brigitte Bardot, Cabo Anselmo, Clodesmidt Riani e Carlos Heitor Cony.
O conspirador da Casa da Borracha
Golbery do Couto e Silva teve papel destacado no governo dos generais que gostavam dele — Castello e Geisel — e abandonou o de João Figueiredo, em 1981, por discordar da decisão do presidente de acobertar os terroristas de farda que se explodiram acidentalmente em um Puma no estacionamento do Riocentro, aonde foram com o objetivo de amedrontar a audiência de um show de música popular brasileira. Golbery ajudou a montar a estratégia de devolução do poder aos civis de forma “lenta e gradual”, e os chefes militares dos desastrados do Puma tentavam boicotar o processo de volta à normalidade. Figueiredo, autor da promessa “prendo, arrebento” quem for contra a abertura, cedeu aos radicais.
Criador do Serviço Nacional de Informações (SNI), temido como polícia política (que não era) e por bisbilhotar a vida de adversários e aliados (o que fazia), Golbery foi o mais admirado e odiado personagem do regime militar. Os estudantes o chamavam de Golbery do “Colt” e Silva.
Ele fez muito antes. Nada no dia 31 de março. Passara para a reserva havia dois anos e meio, limitando-se a fazer companhia a Ernesto Geisel, que participava de um grupo volante sempre ao alcance de um telefone. No governo Jânio Quadros presidiu o Conselho de Segurança Nacional, ao qual se subordinava o Serviço Federal de Informações e Contrainformações (SFICI). Ali, no edifício onde havia uma loja da Casa da Borracha, tomou gosto por enxergar tudo pela ótica de “reservado”, “secreto” e “ultrassecreto”. Golbery carimbou “secreto” no bilhetinho em que Jânio, dois dias antes da renúncia, em 25 de agosto de 1961, pedia relatos sobre sua obsessão: anexar as Guianas.
A partir de janeiro de 1962 foi para o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês), sob a ótica de hoje uma ONG mantida por empresários temerosos do caos e das apropriações do governo Jango, que enxergavam como a preparação para a implantação do comunismo no Brasil. Golbery era um tipo raro que pensava com clareza e escrevia com ambiguidade. Para ele, a democracia era participativa, com diversos diques institucionais a separar o poder da vontade popular — não para sabotá-la, mas para servi-la sem solavancos e ameaças à “segurança nacional”. Desconfiava do capital estrangeiro e do livre mercado. Ao Estado caberia dirigir a economia e, para evitar o totalitarismo, seria preciso exercitar o “planejamento democrático”.
Glauber Rocha o considerava “gênio da raça”. Mourão Filho descreveu-o como um “cérebro doentio”.
Adivinhem quem vem jantar
De qualquer maneira, o senhor está convidado para jantar em nossa companhia.” Com essas palavras corteses, o general Emílio Garrastazu Médici selou os fatos consumados: os militares golpistas seriam vencedores e os governistas não oporiam resistência. O convite foi feito na entrada monumental da Academia Militar das Agulhas Negras num encontro noturno em que choviam estrelas nos ombros de seus três participantes e que poderia acabar em troca de chumbo. De um lado, Médici, o comandante da Aman que já havia colocado seus cadetes no entroncamento entre Rio de Janeiro e São Paulo, e Amaury Kruel, o general que contava, chegado de São Paulo com sua tropa. Do outro, saudado por cadetes de luvas brancas e vindo do Rio num carro oficial preto com uma missão impossível, Armando de Moraes Âncora, nomeado ministro da Guerra in extremis para tentar salvar o já condenado governo de João Goulart. O diálogo rascante entre Kruel e Âncora foi testemunhado por Fernando Pinto, à época repórter da revista Manchete, que havia deixado na churrascaria de um hotel de Resende “praticamente todos os repórteres do Rio e de São Paulo encharcando-se alegremente de carne e vinho, enquanto aguardavam o pipocar do primeiro tiro de canhão”. Kruel saudou-o como general, Âncora exigiu ser tratado como ministro. “O senhor não é mais ministro da Guerra”, ouviu em resposta. “Acontece que não fui informado a respeito”, retrucou. “O senhor será oficialmente informado quando retornar ao Rio de Janeiro”, encerrou Kruel. Foi nessa hora que Médici diplomaticamente interferiu com o convite para jantar. Entenderam-se, e Âncora depois explicou que havia ficado aliviado por não se ver na contingência de ordenar um ataque contra jovens e inexperientes alunos da academia. Foi embora como chegou: saudado por cadetes de luvas brancas, enquanto os de uniforme de combate continuavam na beira da estrada, esperando os tiros que nunca chegaram. Solícito e amável no trato pessoal, ao contrário da imagem que depois deixou como general-presidente durante o período mais tenebroso da ditadura, Médici foi um conspirador cauteloso, mas de primeira hora. Pelo menos assim aparece na lista de pioneiros feita por um conhecedor íntimo do assunto, Olympio Mourão Filho, o homem que pôs a tropa na rua antes de todos os outros generais. “Eu já havia falado três vezes ao general Costa e Silva e ele me repelira, e o general Castello nem queria ouvir falar em revolução”, anotou, rancorosamente, Mourão. Médici, ao contrário, acompanhava-o desde 1963 “no pensamento de que a revolução seria indispensável”. Por ter chegado ao cume da carreira longe de futricas, complôs e outros barulhos, Médici era o único general de exército livre de restrições de seus belicosos pares quando foi preciso escolher um presidente que ficasse no lugar da junta militar formada com a doença, e posterior morte, de Costa e Silva. Cinco anos e sete meses depois do encontro de Agulhas Negras, em 30 de outubro de 1969, seu discurso de posse como presidente começou com um tom quase religioso: “Homens de meu país! Neste momento eu sou a oferta e a aceitação. Não sou promessa. Quero ser verdade e confiança, ser a coragem, a humildade e a união. A oferta de meu compromisso ao povo, perante o Congresso de seus representantes, quero-a um ato de reverdecimento democrático”. Remetendo-se a suas origens em Bagé, professou: “Homem da fronteira, creio em um mundo sem fronteiras entre os homens”. Nada no Brasil de Médici reverdeceu ou se abriu, mas o mais improvável dos presidentes em 1964 não precisava mais, em 1969, fazer convites para jantar. Conhecia o seu eleitorado. E sabia exatamente o que fazer.
O conto das cabeças cortadas
A repetição dos prognósticos calamitosos se revelou uma especialidade de Prestes”, escreveu o historiador marxista Jacob Gorender, que sempre teve a grandeza de, sendo um dos mais refinados e respeitados intelectuais da esquerda, denunciar seus deslizes. Luiz Carlos Prestes foi mais Luiz Carlos Prestes do que nunca na crise que culminaria no golpe contra Jango. O Cavaleiro da Esperança da Coluna que levou o seu nome no início dos anos 20, o lendário secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro que apoiou o Estado Novo de Getúlio Vargas depois de ele ter deportado sua mulher, Olga Benário, para os nazistas, o calculista que em 1947 assegurara aos seus pares que o PCB não seria proibido (foi), o chefe do partido que se igualara à UDN na grita contra Getúlio, em 1954, começou 1964 esgrimindo sua especialidade e a levou até a véspera da derrubada do governo que apoiava.
Prestes inaugurou o ano em Moscou. A Nikita Kruschev, num almoço em 7 de fevereiro, garantiu que havia comunistas até no comando das Forças Armadas brasileiras (não havia) e que o golpe era uma impossibilidade, dada a “tradição democrática do Exército, cuja oficialidade era recrutada entre a pequena burguesia mais pobre” (faltou combinar com os russos). Ao palestrar a membros do departamento de relações internacionais do Partido Comunista da União Soviética, cravou: “Se a reação levantar a cabeça, nós a cortaremos de imediato”. Ao voltar para o Brasil, repetiu pelo menos outras duas vezes a diatribe. Numa conferência na Associação Brasileira de Imprensa, em 27 de março, assegurou que não havia condições favoráveis a um golpe reacionário, mas, se este viesse, “os golpistas teriam as cabeças cortadas”. Disse o mesmo — “terão as cabeças cortadas” – a milhares de pessoas no Estádio do Pacaembu, em 29 de março. Foi calamitoso para os comunistas que o tinham como um guia infalível.
Não houve cabeças cortadas, e naquele mesmo 29 de março Prestes iniciaria a fuga para o exílio em Moscou, porque para um comunista brasileiro daquele tempo sempre havia Moscou. O relato é de Maria Prestes, no livro Meu Companheiro — 40 Anos ao Lado de Luiz Carlos Prestes: “Quando estourou o golpe militar, Prestes não estava mais morando conosco. Ele praticamente entrou para a clandestinidade no dia 29 de março, após uma grande festa realizada no Estádio do Pacaembu em comemoração aos 42 anos do PCB. (…) Ao chegarmos em casa, notamos que havia perto da nossa residência um automóvel parado para conserto. Desconfiamos. (…) De imediato o Velho voltou para o nosso veículo e se escondeu lá dentro. Não pudemos nem nos despedir. Só deu tempo de jogar no carro o pijama, o chinelo e a escova de dentes. Assim ele escapou do perigo de ser preso no dia 1º de abril”. Em 9 de abril, policiais do Dops entraram na casa de Prestes e Maria no bairro de Vila Mariana, em São Paulo. Apreenderam vinte cadernetas amarradas por espiral. Suas mais de 3 000 páginas continham nomes, datas, endereços e organogramas ligados ao PCB e simpatizantes entre 1961 e 1963, a narrativa completa do partido na clandestinidade. As cadernetas de Prestes provocaram um inquérito que indiciou 74 pessoas e, em 1966, 54 delas foram condenadas pela Justiça Militar. Sem a papelada, as condenações aconteceriam do mesmo modo, mas não demorou para que as anotações de Prestes fossem transformadas em troféu e provocação. O Jornal pôs em manchete: “Prestes fugiu abandonando a mulher grávida, sete filhos e o listão do PCB”.
Maria ainda lamentaria, na autobiografia, o estrago provocado por um casaco de pele que recebera de presente ao desembarcar em Moscou. A peça foi levada junto com os escritos de Prestes. Escreveu Maria: “Ao abrirem o armário, eles depararam com o tal casaco presenteado pelos soviéticos. Esse fato gerou a notícia que ficou estampada nas páginas dos jornais. Para eles, era um verdadeiro escândalo a mulher de Luiz Carlos Prestes possuir um casaco daquele porte: ‘Vejam como os comunistas tratam suas esposas’ ”. Retornado do exílio em 1979, ele morreu no Rio, em 1990, aos 92 anos, tão Prestes quanto sempre foi.
ESCOLTA DA DERROTAO presidente do CGT, preso em Minas: “Se o povo não for para a rua não tem governo”
A ilusão da resistência operária
Doutor Jango, o senhor vai me desculpar, mas se o povo não for para a rua não tem governo.” Foi assim, falando ao telefone em um tom exacerbado, que Clodesmidt Riani se dirigiu ao presidente. Tinha suas credenciais como presidente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), além de ser deputado estadual. Na neblina dos acontecimentos do dia 31 de março de 1964, Jango havia localizado o líder sindical em uma reunião na Federação dos Estivadores, no Rio. Sua proposta: convencer Riani a convencer os demais líderes sindicais a desistir da greve geral que tentavam organizar de última hora, para resistir ao golpe. “Estou negociando com o general Kruel; vamos acabar acertando”, argumentou Jango, em sua realidade paralela. “Presidente, nós vamos é para a greve”, encerrou Riani, aplaudido pela firmeza. Na verdade, mesmo dirigentes articulados como Riani agiam taticamente às cegas. Não conseguiam sequer contatar sindicalistas de outros estados. No dia seguinte, o Rio de Janeiro amanheceu sem transporte, mas as prisões se multiplicavam, a greve era um fracasso e parte da população aplaudia os golpistas. Mal Riani acabou um discurso na Rádio Nacional, a emissora foi invadida. No dia 5 seria detido em Juiz de Fora. Cassado, torturado, condenado a dezessete anos de prisão, reeleito deputado e aposentado, voltou a morar na cidade. Tem hoje 93 anos.
DERRUBADOR DE GOVERNOSO Corvo desafiou o almirante janguista: “Aragão, venha resolver essa parada de homem para homem”
A tragédia da vitória
Os civis também sabem morrer”, disse Carlos Lacerda a Humberto Castello Branco quando o general tentou convencê-lo a abandonar o Palácio Guanabara, sede do governo estadual, na noite de 31 de março de 1964. Ou pelo menos é assim que, já perto da morte, em 1977, preferiu lembrar o mais fenomenalmente dramático personagem político em ação à época, capaz de misturar tragédia grega e dramalhão mexicano com mente de intelectual canônico, tradutor de Júlio César, de Shakespeare, e de John Kenneth Galbraith, e coração de apresentador de auditório. Quando se trancafiou no Guanabara, protegido por um batalhão da PM, caminhões de lixo, a fina flor da sociedade carioca e voluntários portando lenços azuis e brancos, tudo podia acontecer. Até um momento descrito como “emocionante” por Marcelo Garcia, assessor de Lacerda: a chegada dos generais e marechais reformados, que vinham aderir à rebelião e defender o Guanabara. “A essa altura, já não havia fuzis nem metralhadoras. Houve distribuição de pistolas. O brigadeiro Eduardo Gomes apareceu dizendo ter sido informado de que Aragão iria atacar o Palácio”, contou Garcia.
Cândido Aragão, almirante esquerdista que havia apoiado a revolta dos marinheiros, e seus fuzileiros nunca apareceram. Tiros, só os da retórica do homem que tinha o apelido de Corvo e a fama de “derrubador de governos”. Alvo de uma tentativa de assassinato, ele virou o jogo e empurrou Getúlio Vargas ao suicídio, também teve influência na patética renúncia de Jânio Quadros e contra João Goulart usava todos os truques do manual. Principalmente os sujos. Em 1963, em uma entrevista ao Los Angeles Times, ele denunciou a infiltração comunista no governo, com a ressalva de que Jango não era propriamente da turma: “Ele é um totalitário, à moda sul-americana. É um caudilho com todos os recursos dos tempos modernos”. A entrevista motivou uma malograda tentativa de pren¬dê-lo (ou sequestrá-lo, já que a ordem de prisão, a ser efetuada por militares, não era oficial). No dia do golpe, usando uma japona preta sobre a camisa branca para dificultar que fosse alvejado, conseguiu fazer pronunciamentos no rádio, na televisão e por altofalantes instalados no palácio. Comparou Jango ao fratricida Caim: “O que fizeste de teus irmãos que iam ser mortos por teus cúmplices comunistas, de teus irmãos que eram roubados para que tu te transformasses no maior latifundiário e ladrão do Brasil? Abaixo João Goulart!”. Desafiou o comandante dos fuzileiros: “Aragão, covarde, incestuoso, deixe os seus soldados e venha decidir comigo essa parada. De homem para homem. Quero matá-lo com o meu revólver”. Como nada disso aconteceu, caiu de joelhos e agradeceu a Deus quando os míseros três tanques que guardavam o Laranjeiras, o palácio presidencial, passaram para o Guanabara. Três anos depois, estava na Rua Leyenda Patria, em Montevidéu. “Estou procurando a casa do presidente João Goulart. Não sei o número porque perdi o papel”, disse a uma brasileira que não reconheceu. Maria Thereza Goulart levou-o ao marido. Os dois ex-inimigos, ambos cassados, abraçaramse e planejaram a nunca materializada Frente Ampla. A ditadura havia definitivamente derrubado o “derrubador de governos”.
O cabra marcado
De uma coisa Miguel Arraes nunca duvidou: qualquer que fosse o lado a sacar primeiro a garrucha o acertaria também. Para seus inimigos da direita — Carlos Lacerda era só o mais barulhento —, o governador de Pernambuco era um rematado comunista; para seus competidores da esquerda — Jango na primeira fila —, um incômodo umbuzeiro a fazer-lhes sombra. No dia 31, quando já estava claro quem havia atirado mais rápido, seu destino foi selado. Teria sido deposto naquela mesma tarde, não fosse o fato de o comando militar local, ocupado com as muitas tarefas que envolvem derrubar um governo, achar que essa poderia esperar até o dia seguinte. Arraes, afinal, encontrava-se “docilmente confinado em seu palácio, já quase impossibilitado de nos trazer perturbações”, como escreveu na autobiografia o general Joaquim Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército e desafeto de longa data do governador. (“O instinto herdado de meu pai, um caçador de onças, fez-me ver nele desde a primeira hora um inimigo”, disse o general. “Declarei-lhe guerra desde que o conheci. E isolei-o, afinal, na solidão de um penhasco perdido no meio do Atlântico.”)
No Palácio do Campo das Princesas, ninguém dormiu naquela noite. Magdalena, mulher de Arraes, passou a madrugada arrumando as malas dos nove filhos para despachá-los de manhã à casa da avó. Por via das dúvidas, fez também a do marido. No dia anterior, quase 1 000 pessoas haviam sido presas no estado, incluindo o líder comunista Gregório Bezerra, que, amarrado à traseira de um caminhão por um ex-policial, escapou por pouco de ser trucidado na rua (“Este é o comunista que queria destruir os lares de vocês. Agita agora, traidor!”, gritava seu captor).
Quando raiou o dia 1º de abril, o almirante José Dias Fernandes, o mesmo que na véspera havia garantido a Arraes que Pernambuco “resistiria a qualquer tentativa de golpe”, voltou ao palácio — desta vez para comunicar que “houve uma revolução”, visto que “as Forças Armadas não podiam mais suportar a baderna”. O governador teria de demitir seu secretário de Segurança e se comprometer a não usar a PM contra o Exército. Arraes respondeu que não governaria sob condições. Quando, mais tarde, o coronel João Dutra de Castilho veio para lhe dizer que estava deposto, Arraes perguntou se estava também preso. “O senhor pode ir para casa”, disse o coronel, ao que Arraes respondeu que a residência do governador era o Palácio das Princesas e, portanto, era lá que ficaria. Das janelas do salão nobre, via-se a Praça da República tomada por canhões do Exército apontando para o jardim.
Vieram prendê-lo às 19h15. O grupo liderado pelo coronel Frederico Pimentel encontrou o governador deposto à mesa de jantar, ao lado de um tio, uma irmã e um cunhado — as crianças já estavam na casa da avó. Arraes levantou-se, convidou os oficiais para o terraço e lá recebeu a ordem de prisão, assinada pelo general Bastos. Deixou o palácio no Fusca do cunhado, cortesia do coronel Pimentel, e no dia seguinte partiu para o cárcere no penhasco perdido em meio ao Atlântico — preso como comunista e janguista, duas coisas que nunca foi.
REALISMO SEM MÁGICAJK não convenceu Jango de sua máxima: “Elege-se pelo povo, mas governa-se com os olhos voltados para as classes armadas”
A reeleição que nunca houve
Havia seis candidatos a presidente em 1964. Todos, portanto, interessados em chegar até 1965. Ou seja, empurrar a crise até a próxima eleição presidencial. O mais interessado de todos era Juscelino Kubitschek (os outros candidatos eram os governadores Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Miguel Arraes; além do próprio presidente João Goulart e seu cunhado Leonel Brizola, no caso de uma feitiçaria constitucional que os livrasse da inelegibilidade). As pesquisas de opinião já davam 37% dos votos para que ele voltasse à elegante cidade que havia criado do nada, deixando uma nada bela encrenca econômica, mas a imagem de político inovador nas realizações públicas e conciliador nas tratativas particulares. À véspera do golpe, conciliação era uma moeda em falta até mesmo no trato entre dois homens pouco sanguíneos como JK e Jango. A aliança política entre o PTB de Goulart e o PSD de Juscelino estava irreversivelmente deteriorada.
Em 1963, o presidente avisou o senador, eleito por Goiás, que ele não mais poderia contar com o apoio do PTB para sua candidatura presidencial. Em 15 de março, propôs ao Congresso mudar a Constituição e permitir a sua reeleição. “Ele passou dos limites. Saiu da legalidade que o sustentava”, reagiu Juscelino. Mesmo contra todas as evidências, na manhã de 31 de março Juscelino ligou para o Palácio Laranjeiras. Quando finalmente o atenderam, mandou chamar o oficial do dia e ditou: “Aqui está falando o senador Juscelino Kubitschek. Anote no seu livro de ocorrências que eu estou tentando telefonar para o presidente João Goulart há várias horas e ninguém atende”. Quando Jango retornou a chamada, JK apelou-lhe que interrompesse a marcha da insensatez. Suas palavras não surtiram efeito e, se surtissem, dificilmente mudariam o rumo dos acontecimentos. Quarenta minutos depois, Juscelino soube por José Maria Alkmin — que havia sido seu ministro da Fazenda e era casado com uma prima sua — que o golpe já estava em curso. Às 4 horas da tarde, Jango pediu a JK que o visitasse no já quase vazio Laranjeiras. Recebeu-o no quarto. Juscelino sentou-se em uma das camas e fez o apelo final: “Você tem de fazer dois manifestos. Um tranquilizando a nação em relação ao problema do comunismo. O outro, às Forças Armadas, em que você evoca para si o problema da Marinha e resolve tudo no respeito aos regulamentos e à hierarquia”. Como havia feito com todos os conselhos semelhantes, Jango se recusou: “Se eu fizer isso dou uma demonstração de medo, e um homem com medo não pode governar o país”. JK, que havia sobrevivido às próprias crises militares e aplicava só dosadamente a tática do confronto, tinha uma máxima mais realista: “No Brasil, e¬¬lege-se pelo povo, mas governa-se com os olhos voltados para as classes armadas”. Onze dias depois, JK votava no Congresso para que o general Humberto Castello Branco se tornasse o primeiro presidente do regime militar. Em pouco tempo, como todos os outros candidatos em potencial à eleição que nunca existiu em 1965, estava cassado e exilado. “Caí na armadilha do Castello Branco”, disse anos depois. “Caímos todos.” Menos o primo torto, José Maria Alkmin, que virou vice de Castello.
O homem do cofre
Ademá, Ademá, é mió e num faz má”. Com sotaque arrastadamente caipira, a dupla Alvarenga e Ranchinho parodiava o comercial do mais conhecido analgésico da época. Quem mais gostava era o próprio Adhemar de Barrros, o governador paulista com uma trajetória política convoluta: médico e culto, fazia-se de bronco; de engajado na Revolução Constitucionalista em 1932 , em 1938 já era interventor em São Paulo nomeado justamente por Getúlio Vargas; populista criador original do “rouba mas faz”, rejeitado pelas elites paulistas, assumiu ao lado delas uma das correntes de apoio à conspiração anti-Jango e chegou a março de 1964 com tudo encadeado, inclusive um manifesto de sua autoria assinado por outros seis governadores para os quais a situação nacional ia de “má a piorrr”, para ficar no dialeto.“Esta revolução vem atrasada de um ano”, disse no Palácio dos Campos Elíseos, na manhã de 31 de março. Ele próprio era um adesista relativamente recente: só entrou de cara, mas sempre com uma margem de segurança, quando viu que era impossível uma aliança com o PTB de Jango que o levasse à Presidência, perdida no voto para Jânio Quadros. A conspiração em São Paulo tinha um alto nível de organização, envolvendo políticos, militares, empresários e estudantes anticomunistas — numa de suas manifestações, a lista de clubes onde armazenavam faixas é conhecida até hoje por frequentadores das classes endinheiradas: São Paulo Golf Club, Jockey, Pinheiros, Monte Líbano, Ipê, Harmonia e Paulistano. Nada porém se comparou à gigantesca Marcha da Família com Deus pela Liberdade, montada em apenas cinco dias, como reação ao comício de 13 de março da Central do Brasil, com a participação de meio milhão de pessoas (“Verde e amarelo, sem foice e martelo”, dizia uma das inúmeras faixas). Representado na Marcha pela mulher, Leonor, Adhemar sobrevoou-a de helicóptero. Segundo o historiador Hélio Silva, “Adhemar pensava que o movimento revolucionário implantaria um triunvirato: um general, um ministro do Supremo Tribunal Federal e um elemento civil da conspiração, que seria ele. Nos seus planos, haveria divergências e, em seis meses, dominaria o triunvirato e chegaria a chefe da Nação”. Na verdade, dois anos depois do golpe ele estava cassado. Morreu em 1969, de um ataque cardíaco sofrido durante visita ao santuário de Lourdes. Quatro meses depois, um comando da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares roubou um cofre, com 2,5 milhões de dólares não contabilizados, que estava na mansão de uma amante de Adhemar de Barros, no Rio. A ação armada foi comandada por Carlos Araújo, com apoio de retaguarda de sua companheira e namorada, uma jovem militante de óculos de fundo de garrafa chamada Dilma Vana Rousseff.
A constelação da gaúcha
Aos 18 anos, Ieda Maria Vargas era a mulher mais linda de todas as galáxias. Pelo menos aos olhos dos cinco jurados que no dia 20 de julho de 1963 a elegeram Miss Universo. Linda e abstraída de questões políticas. Quando chegaram a Miami as primeiras notícias da deposição do presidente João Goulart, ela só notou algo estranho no comportamento do pai, que estava nervoso e fumando muito. As coisas iam mudar, e para pior, dizia ele. O motivo estava no doce apadrinhamento da política brasileira. Consagrada com o título e recebida em palácio pelo presidente, ela só poderia cumprir suas elevadas funções com o consentimento paterno se a família fosse toda para os Estados Unidos, uma mudança economicamente inviável. Solução: Jango nomeou o conterrâneo José Vargas, professor remotamente aparentado com Getúlio Vargas, para um cargo diplomático em Miami. Era o risco de perdê-¬lo que causava inquietação ao pai de Ieda nos instáveis dias do fim de março e começo de abril de 1964.
O regime mudou, mas a vida da família continuou a mesma. O pai manteve o cargo e Ieda, sua rotina de miss, dividida entre a casa da família em Miami Beach durante o dia e as noites passadas num hotel, em companhia de uma chaperona, espécie de governanta, que a acompanhava também nas viagens ao exterior. “Acho até que para os militares foi mais interessante ter uma miss do Brasil”, relembra Ieda. Convidada para um jantar em Brasília com o novo general-presidente, Humberto Castello Branco, avaliou: “Um baixinho cheio de superstições. Evitava passar sob escadas e arcos”. Mas com poder. Quando enfrentou dificuldades em trazer para o Brasil um Impala, carrão da GM que poucos brasileiros podiam ter, apelou ao baixinho. Problema resolvido. Ieda manteve contato com o casal Goulart, exilado no Uruguai, e ficou amiga de Maria Thereza, que viria a ser sua madrinha de casamento: “Falávamos de roupa, revista, filho. De política, nada”. As conexões de Ieda na constelação gaúcha tinham uma complexidade adicional: uma prima dela se casou com um dos filhos de Emílio Garrastazu Médici. “Desde que era mocinha até o tempo em que ele foi presidente, passamos muitas noites jogando biriba.” Chamava-o pelo apelido familiar, Milito.
E Búzios criou essa mulher
Brigitte Bardot estava arrumando as malas em 31 de março de 1964. Encerrava um dos períodos mais tranquilos de sua trajetória infernal de celebridade assediada e atormentada, vivido na pouco conhecida vila de pescadores chamada Armação de Búzios. Acabava ali também o chamado verão dos inocentes, quando os biquínis já estavam incorporados às areias do Rio e adjacências, as primeiras pranchas de fibra de vidro apareciam no Arpoador e, sob o sol de até 35,8 graus, três mulheres ocupavam a imaginação dos brasileiros: a jovem e comentada primeira-dama Maria Thereza Goulart; a angelical miss Universo Ieda Maria Vargas; e a escandalosamente sensual BB. Trazida por um namorado com ligações com o Brasil, o playboy Bob Zagury, ela havia desembarcado de um DC-8 da Panair no Galeão, em 7 de janeiro, usando um casaco de gola de pele e com a aura de deusa do sexo que a acompanhava desde E Deus Criou a Mulher. Feito oito anos antes, o filme ainda era comentado em voz baixa quando havia crianças na sala: Brigitte aparecia nua. Quando ocorreu o golpe, os pais da atriz chegaram a procurar informações na Embaixada do Brasil em Paris. BB continuou embriagada pelo espumejante “mar de champanhe azul” que encontrou aqui: sem entender exatamente o que acontecia, em 4 de abril festejou com amigos no Rio, na boate Top Club, a vitória do novo regime. “Adorei a revolução no Brasil. Não houve morte nem tiros”, foi a declaração colocada no inesquecível biquinho, quando voltou a Paris.
Mineiro contra as fúrias
“Deus faça com que eu esteja enganado, mas creio ser este o passo do presidente que irá provocar o inevitável, a motivação final para a luta armada.” O líder da maioria na Câmara dos Deputados, Tancredo Neves, era um homem temente da potestade divina, mas sabia muito bem como estavam incontroláveis as forças já à solta quando João Goulart contrariou seu apelo final ao bom-senso e decidiu comparecer à festa dos sargentos no Automóvel Clube, no Rio de Janeiro, no dia 30 de março, o empurrão final para o golpe pelo que representava de um quase literal tapa na cara da hierarquia militar. Dezessete dias antes, um ainda pouco conhecido cineasta de cabeleira encaracolada chamado Glauber Rocha havia lançado um filme difícil de entender (filmou uma coisa; na hora da montagem, quis outra), mas de título fácil de ser guardado: Deus e o Diabo na Terra do Sol. Tancredo tentava puxar Jango para o lado do primeiro titular do filme de Glauber, mas os que empurravam para o lado do segundo eram mais fortes: os conselheiros militares, chamados de “generais do povo”, achavam que o presidente sairia consagrado da festa. Horas depois, os generais do mundo real já estavam com a tropa na rua. A divisão entre os militares legalistas e os golpistas (e, entre estes, os da linha branda e os da linha dura) era um espelho dos rachas em curso no Brasil de 1964. O partido de Tancredo, o PSD, também estava dividido (da mesma forma que o outro partido criado por Getúlio Vargas, o PTB; as diferentes lideranças sindicais; as linhagens comunistas divergentes; e, notoriamente, a própria família presidencial). Nem o mais hábil dos hábeis políticos mineiros, nem o homem que dava nó em pingo d’água, que havia sido primeiro-ministro no interregno parlamentarista criado para contornar o primeiro surto golpista contra um João Goulart elevado a presidente pela renúncia de Jânio Quadros, controlaria as fúrias à solta, mas Tancredo tentaria até o fim. Como Jango, foi para Brasília no dia 1º de abril e enfrentou a manobra do presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, para declarar a vacância da Presidência com um inútil contracomunicado combinado com o chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, no quase vazio Palácio do Planalto, para desmoldar a realidade: o presidente já estava mesmo em retirada. “Comunico ao Congresso Nacional que o senhor João Goulart deixou, por força dos notórios acontecimentos de que a nação é conhecedora, o governo da República”, proclamou Moura Andrade já na madrugada do dia 2. “Canalha, canalha, canalha”, sibilou Tancredo. Quando ficou claro que os militares estavam para ficar e o general Castello Branco seria eleito presidente pelo Congresso, comentou com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, colega de partido e favorito para uma reeleição que nunca aconteceria: “Eu tenho todos os motivos para votar em Castello e não vou votar; você tem todos os motivos para não votar e vai”. Falou e fez: foi o único político do PSD a não chancelar Castello. Num embate final com forças sombrias na terra do sol, morreu, em 1985, sem assumir o primeiro mandato presidencial pós-ditadura. É um dos dois personagens retratados nestas páginas a ter um neto, Aécio Neves, aspirando à Presidência; o outro é Miguel Arraes, avô de Eduardo Campos.
O presidente de plantão
“Vamos para o palácio, pois o senhor vai ter de assumir a Presidência.” Não é qualquer político que ouve uma frase dessas, mas Paschoal Ranieri Mazzilli, filho de imigrantes italianos que havia ascendido a presidente da Câmara, não era calouro no assunto: já preenchera lacunas interinas quatro vezes, a mais importante delas depois da renúncia de Jânio Quadros. Nem por um minuto teve a ilusão de que naquela madrugada de 2 de abril de 1964 seria diferente. Sabia que era uma espécie de presidente de plantão para emergências, à altura da brincadeira picante que o comparava a um absorvente feminino: o homem que sempre estava no melhor lugar, nos piores dias, para evitar derramamento de sangue. Seguindo o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, que havia ajudado o impulso golpista ao declarar a vacância da Presidência, e um grupo de deputados paulistas, todos armados, Mazzilli chegou a um Palácio do Planalto às escuras onde se desenrolou uma cena de cinema. No 4º andar, Darcy Ribeiro e Waldir Pires imaginavam resistir em nome do governo deposto. No 3º, iluminado por palitos de fósforo até que se encontrasse um contínuo para acender a luz, Mazzilli tomava posse às 3h45 da madrugada. Entre os presentes, deputados que se tornariam vultos da futura oposição, como Ulysses Guimarães e Nelson Carneiro. Mazzilli era presidente da República pela quinta vez, seu juramento de lealdade à Constituição não valia nada e mandava menos do que nunca. Ocupou o cargo por treze dias, enquanto o poder armado articulava a eleição do general Castello Branco no Congresso. Ribeiro e Pires deixaram o palácio. Mazzilli pediu garantias ao general Costa e Silva. Não houve derramamento de sangue.
Memórias da sexta-feira, 13
“O presidente João Goulart dormiu sob os louros de uma noite de massas empolgadas por seu governo e não ouviu os tropéis de uma cavalgada que partiu dos setores que se assustaram, incentivados por um jogo político que vinha de muito longe, que vinha desde quando, pela primeira vez, depuseram Getúlio Vargas.” Num livro iniciado no calor dos acontecimentos, quando ainda estava asilado na Embaixada do Peru, o paraibano Abelardo Jurema, ministro da Justiça do governo recém-derrubado, descreveu assim o turbilhão que marcou o salto no abismo de Jango, o comício da Central do Brasil. Intitulou-o com a data de mau agouro em que a radicalização tomou conta do palanque: Sexta-feira, 13. Dezenove dias depois, na tarde de 1º de abril, Jurema resolveu seguir para Brasília, como já havia feito o presidente a quem serviu com lealdade. Percebeu que nunca chegaria lá pelos olhares dos oficiais que o acompanhavam no aeroporto militar do Santos Dumont. Uma patrulha dos golpistas já vitoriosos chegava com a ordem de levá-lo preso. Com eles seguiu para a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, na Praia Vermelha. Entre os muitos erros de condução dos assuntos políticos e militares cometidos por Jango, a quem sempre se referia com simpatia, anotou mentalmente mais um: “Como estavam enganados aqueles que subestimavam as escolas do Exército e que, para elas, fizeram concentrar toda a oficialidade hostil ao governo da República”. No coração do movimento golpista, Jurema viu uma “oficialidade disposta a tudo. Nas fisionomias de cada um senti lampejos até de ódio”. Nesse ambiente, foi um alívio ser recebido com “cortesia e respeito” pelo comandante, general Jurandir Bizarria Mamede. Surrealisticamente, jantaram juntos. O garçom desmaiou no meio do serviço. De madrugada, Jurema disse que se considerava dispensado da “proteção” oferecida por seu anfitrião na condição de hóspede involuntário: tinha residência fixa, era parlamentar eleito e havia servido a um governo constituído. Bizarria Mamede consultou por telefone o general Castello Branco e voltou sorrindo: Jurema estava liberado. Dali, abrigouse no apartamento de um amigo e depois pediu asilo na embaixada peruana. Ao chefe dos policiais que foram procurá-lo em todos os cantos de sua casa em Botafogo, um jovem auxiliar, conterrâneo de Jurema, replicou: “O senhor já viu paraibano se esconder debaixo da cama?”.
Um duro entre os duríssimos
“Assumo eu o comando do Exército, por ser o mais antigo dos generais presentes no Rio.” Com essas palavras, Arthur da Costa e Silva definiu a mudança de regime num Palácio da Guerra quase vazio, em 1º de abril de 1964. Também esboçou um racha que se replicaria ao longo das duas décadas de ditadura. O golpe militar havia sido orgânico, brotando como uma força coletiva dos diversos comandos, unificados pelo que viam como a destruição iminente das Forças Armadas. Mas nem bem começava a dança dos quepes e a organicidade já tinha ido para o espaço. O comando do movimento e do país passou a ser disputado por Humberto Castello Branco, líder do grupo chamado de Sorbonne, e pelo próprio Costa, apelidado de Croupier, mais antigo, mais bem qualificado como primeiro da turma na disputa da Escola Militar que se prolongava por toda a duração da carreira dos envolvidos e mais rápido em assumir posições de controle nas horas decisivas de desmantelamento do governo. Com alguma resistência, o “homem da tropa”, que em 1º de abril se autodesignou chefe do Comando Supremo da Revolução, perdeu para o rival mais intelectualizado e melhor de articulação. “Muito astucioso e muito esperto”, como definiu Carlos Lacerda, o governador com quem se atritou logo nos primeiros dias do novo regime, o Croupier teria de esperar a sua vez na trincheira poderosa do Ministério da Guerra. Assim resumiu o historiador Hélio Silva os choques daí decorrentes: “Em um momento crucial, uma ala extremada, que constituía a associação Líder, considerou a hipótese da deposição de Castello. A ocasião esperada era um almoço, na Vila Militar, a que compareceram Castello e Costa e Silva. O ministro da Guerra, porém, preferiu manter Castello sob custódia. Assim, quando sua candidatura foi levantada, não havia quem a ela se opusesse”. O bigode, a cara de mau e os óculos escuros fariam de Costa e Silva a imagem estereotipada do ditador latino-americano. Mas o homem que endureceu a ditadura e assinou o Ato Institucional nº 5, uma aberração liberticida do começo ao fim, planejava uma espécie de redemocratização, mesmo à sua moda. Pretendia anunciá-la no 7 de setembro de 1969. Em 28 de agosto, começou a sentir dificuldade para falar e outros sintomas de trombose. Embarcado em Brasília, desceu no Rio e pronunciou suas últimas palavras para a mulher, Yolanda, que sempre lhe pedia repouso: “Você tinha razão”. Morreu três meses e meio depois. Uma linha mais dura ainda já estava no poder.
CROUPIER FAZ SEU JOGODisputas quatro-estrelas: no primeiro embate, Costa e Silva perdeu para Castello; no segundo, para a trombose cerebral
Nem na lei, nem na marra
Foi como se nada tivesse acontecido do lado de fora da Câmara. O deputado pernambucano Francisco Julião, do Partido Socialista Brasileiro, líder das Ligas Camponesas — a entidade que cresceu defendendo salários justos para os trabalhadores do campo, caixões mais baratos para as crianças ceifadas pela alta mortalidade infantil e a reforma agrária (“na lei ou na marra”) —, fez na tarde de 31 de março de 1964 seu último discurso antes do exílio. “Quero desta tribuna dizer que quem está nas ruas não é a revolução, é a contrarrevolução. (…) Não há de ser um banqueiro que vai salvar o Brasil. Quem vai salvar o Brasil é seu povo, são os trabalhadores, a sua gente humilde.” Foi aparteado uma única vez pelo deputado Adauto Cardoso, da UDN, que se ergueu para dizer que seu partido “não anistiaria os promotores da anarquia”. Daquela tarde até 7 de abril, Julião passou os dias fechado no Congresso. Quando viu que a prisão era iminente, salvou-o uma carona no táxi do mesmo Adauto Cardoso. Numa folha de jornal, Adauto rabiscou um bilhete a Julião: “Está tudo perdido”. Na primeira etapa rumo à fuga que o levaria ao México, Julião foi parar — disfarçado, com codinome Antônio — numa manifestação em Belo Horizonte convocada pelo general Mourão Filho e pelo governador Magalhães Pinto, o banqueiro.
Julião e as ligas ganharam destaque internacional numa série de artigos do New York Times de 31 de outubro e 1º de novembro de 1960 escrita pelo jornalista Tad Szulc, que depois se tornaria um respeitado biógrafo de Fidel Castro e João Paulo II. Um trecho: “O surgimento de uma situação revolucionária é cada vez mais nítido por toda a vastidão do Nordeste brasileiro, golpeado pela pobreza e afligido pela seca”. Para o sociólogo Josué de Castro, que fazia a cabeça da esquerda naquele tempo, as linhas escritas por Szulc poderiam ser comparadas a “uma segunda carta de Pero Vaz de Caminha”. O Nordeste virou preocupação para o governo dos Estados Unidos. Grupos de parlamentares começaram a visitar o que parecia uma Cuba em gestação, inclusive pelo treinamento de guerrilha dado a militantes da liga. Na verdade, quando o golpe eclodiu, as Ligas Camponesas já tinham sido enfraquecidas pelo próprio governo Goulart, que irrigara o caixa dos sindicatos. Em seu derradeiro palavrório, Julião anunciou “dispor de 500 000 camponeses para responder aos gorilas”. Nenhum camponês apareceu para o enfrentamento. Nem na lei, nem na marra.
O cronista na trincheira
Um pouco a contragosto, a caminho de casa, o homem mais forte se apoia no braço do mais fraco, que segura um enorme guarda-chuva aberto sobre a cabeça de ambos. Estão sem palavras, embora fossem homens de palavras: Carlos Heitor Cony (o mais forte, fragilizado por uma operação de apendicite) e Carlos Drummond de Andrade (o mais fraco, porém generoso com o convalescente). Chovia em Copacabana naquele 1º de abril de 1964 e eles haviam acabado de ver uma cena quase surreal. No meio da rua, um oficial empilhava dois paralelepípedos — dois míseros paralelepípedos — com o objetivo de “deter os tanques do I Exército”, caso houvesse resistência ao golpe. Na verdade, o comandante do I Exército, general Armando de Moraes Ancora, leal ao governo, já havia desistido, com palavras que ficaram conhecidas. “Já decidi que não vou abrir fogo contra os cadetes, porque será um peso que não tirarei mais de cima de meus ombros — matar a mocidade militar da minha terra”, disse quando soube que alunos da Academia Militar das Agulhas Negras marchavam com os rebelados.
Cony só pensava na risível trincheira, que acabou na sua crônica publicada no dia seguinte no jornal Correio da Manhã: “O I Exército, em sabendo que havia tão sólida resistência, desistiu do vexame: aderiu aos que se chamavam rebeldes. (…) Recolho-me ao meu sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia”. Política, “um assunto que eu desprezava”, não aparecia até então em suas crônicas, embora tivesse dado palpites, por telefone, ao editorial publicado em 1º de abril, sob o título “Fora!”: “A Nação não mais suporta a permanência do senhor João Goulart à frente do governo. (…) Jogou os civis contra os militares, os militares contra os próprios militares. É o maior responsável pela guerra fratricida que se esboça no território nacional”. Ninguém esperaria, portanto, que, no dia 2, Cony assinasse uma crônica como aquela, ironicamente intitulada Da Salvação da Pátria.
Era só o começo. Da sua trincheira de palavras, passaram a ser lançados paralelepípedos fulminantes contra o novo regime, chamado de Revolução dos Caranguejos. “Qualquer violência que praticarem contra mim terá um responsável certo: o general Costa e Silva”, disparou ele em 5 de maio. Cony chegou a ceder seu espaço no Correio — que logo romperia com o regime — para que outros protestassem. Em colaboração com o escritor e, à época, militante comunista Ferreira Gullar, cutucou: “Os intelectuais brasileiros precisam, urgente e inadiavelmente, mostrar um pouco mais de coragem e de vergonha”. Servindo de exemplo ao próprio apelo, Cony foi preso pela primeira vez no ano seguinte, no famoso ato de protesto de um pequeno grupo de intelectuais na entrada do Hotel Glória, quando olhou bem para o presidente Castello Branco e disparou um palavrão que pode ser resumido em três inconfundíveis letras: “fdp”.
Sozinho na ilha da razão
De ambos os lados dos acontecimentos de 1964 havia homens brilhantes, honrados, indecisos, aproveitadores ou canalhas. Do lado da esquerda, provavelmente nenhum era tão excepcionalmente qualificado quanto o economista paraibano Celso Furtado. Estava em sua sala na sede da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, no Recife, quando soube que a Voz da América noticiava a eclosão de um levante militar em Minas contra João Goulart. Não chegava a ser uma surpresa para Furtado, ilha de razão em meio ao caos de uma administração comandada por um presidente que considerava “fraco”. Na Sudene, sentia-se assediado pelas demandas do Partido Comunista e pouco sobrava do Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, que havia apresentado como ministro do Planejamento. “As reformas de base foram mal definidas e usadas como bandeiras de mobilização de massas, sem viabilidade em face da estrutura do poder vigente no país”, analisou o próprio Furtado, anos depois da madrugada em que saiu da sede da Sudene e foi ao encontro do governador Miguel Arraes. Encontrou-o de roupão, falando ao telefone. Juntos souberam que o general Amaury Kruel havia aderido aos rebeldes. Pela manhã, foi à sede do IV Exército e disse que, se quisessem prendê-lo, tinha endereço certo. Voltou à Sudene e, à noite, sentindo-se só, quis ouvir música — na juventude, havia sonhado ser crítico musical. Talvez pelo canto final de vitória, escolheu Alexandre Nevsky, de Prokofiev, compositor que sobreviveu ao stalinismo acatando no fim da vida as “correções” oficiais em sua poderosa obra. Dias depois, em Brasília, Furtado escutou no rádio lerem o seu nome na primeira lista de pessoas cassadas da vida pública. Sentiu-se homenageado.
A voz do Professor
Um político carioca “com formidável capacidade de manobra e engodo” que pretendia “debilitar o ânimo do povo” com uma proposta absurda de “capitulação às forças conservadoras”. Isso quem dizia de Francisco Clementino de San Tiago Dantas eram, teoricamente, seus aliados do PTB. Na verdade, inimigos com formidável poder de fogo: a “esquerda negativa” liderada por Leonel Brizola, que sabotava a proposta de reformas consensuais já estruturalmente debilitada da “esquerda positiva”. A distinção havia sido criada pelo próprio Professor, como o homem de óculos de fundo de garrafa era chamado em reconhecimento ao intelecto extraordinário, à carreira jurídica notável e à distinção alcançada na política como ex-ministro da Fazenda e das Relações Exteriores. Moderado numa hora de múltiplas radicalizações, ele foi um dos muitos que fizeram a peregrinação de 31 de março ao Palácio Laranjeiras, aonde chegou num Aero Willys velho dirigido por seu ex-secretário particular José Gregori. A um João Goulart de semblante esgotado, que conjecturava tardiamente nomear um interventor federal no já rebelado Estado de Minas, ele disse: “Não devemos nos deixar perturbar pelas emoções. É hora de manter a cabeça fria”. Estava certo e errado ao mesmo tempo: acreditava numa iminente intervenção americana que acirraria uma guerra civil devastadora. O porta-aviões Forrestal e sua coorte de navios de guerra realmente haviam sido colocados a caminho do Brasil, transportando o apoio de que os conspiradores mais precisavam — combustível —, mas nunca chegaram a cruzar o Equador. O homem da esquerda positiva, já consumido pelo câncer, deu a Jango um motivo, ainda que a posteriori, para fazer o que fez: nada.
…e tudo acabou na mais longa ditadura
Os golpistas em geral tinham um objetivo comum a uni-los todos: acabar com o governo de João Goulart e livrar o Brasil do perigo vermelho. Derrubado Jango e afastado o risco da “comunização”, como se dizia na época, era hora de festejar. A imprensa, em peso, celebrou o golpe, com a solitária exceção da Última Hora. “Fora!”, gritava o Correio da Manhã, ao comemorar a queda de Jango. O ex-presidente Juscelino Kubitschek, então senador, simpatizou com a ideia de ver um general comandando o país até a eleição presidencial de 1965, na qual era favorito. Carlos Lacerda, governador da Guanabara, deu entrevista saudando a vitória militar e não conteve as lágrimas: “Obrigado, meu Deus, muito obrigado!”. A classe média do Rio de Janeiro, aliviada, reuniu milhares de pessoas na Marcha da Vitória, abençoada pelo cardeal dom Jaime Câmara, para quem o golpe contara com o “auxílio divino obtido por nossa Mãe Celestial”.
ABENÇOADAS…Em abril de 1964, senhoras da sociedade carioca organizam a Marcha da Vitória, que seria abençoada pelo cardeal dom Jaime Câmara
Atingido o objetivo que unira a todos e passada a euforia, a carranca da realidade reapareceu. O arco dos aliados pró-golpe não tinha mais o elo sólido em comum, e logo começaram pressões — e contrapressões — para endurecer e perpetuar o regime. Uma semana depois do golpe, o Correio da Manhã protestava contra a queima de exemplares do jornal nas bancas, numa operação que “possuía todos os requintes de intolerância e barbárie característicos dos regimes totalitários”. Dois meses depois do golpe, JK, que votara a favor do general Humberto Castello Branco para presidente da República, estava cassado. Três meses depois do golpe, Lacerda já percebera que os civis não seriam mais que coadjuvantes no regime militar e chegou a chamar Castello Branco de “Napoleanão”, em referência ao estilo imperial do militar de 1,64 metro de altura. Dois anos depois do golpe, a classe média, assustada com a reação truculenta do regime contra os protestos estudantis, já não reconhecia o governo que apoiara. Em 1968, quatro anos depois do golpe, a indignação popular saiu às ruas do Rio depois do assassinato, pela Polícia Militar, de um estudante de 18 anos. O protesto entraria para a história como a Passeata dos Cem Mil e foi abençoado por dom Jaime Câmara, o mesmo cardeal que, anos antes, louvara os militares vitoriosos. Por fim, no dia 13 de dezembro de 1968, o general Arthur da Costa e Silva, segundo general-presidente, baixou o AI-5, o ato institucional que o autorizava a fechar o Congresso, cassar mandatos parlamentares, censurar a imprensa e governar por decreto.
Com o AI-5, quatro anos, oito meses e treze dias depois do golpe, estava oficialmente proclamada a ditadura militar. Por que o golpe deu origem a um regime moderado inicialmente e acabou na mais longa e brutal ditadura da história do Brasil? Quase sempre, as rupturas fogem do controle. Em seu clássico Anatomia das Revoluções, o historiador Crane Brinton, morto em 1968, mostra que boa parte das revoluções começa com esperança, triunfa sob líderes moderados e, sob o peso das inevitáveis contradições internas, acaba por se radicalizar e naufraga no autoritarismo. O ciclo se repetiu nas revoluções inglesa, francesa e russa, que terminaram, respectivamente, sob o comando de um ditador regicida (Oliver Cromwell), um corso belicista (Napoleão Bonaparte) e um tirano paranoico (Josef Stalin). Nesse processo de radicalização autoritária, Brinton, inspirado na declaração de um revolucionário francês do século XVIII, escreveu o seguinte: “A revolução, como Saturno, devora os próprios filhos”.
…E ABENÇOADOSEm junho de 1968, em protesto contra arbitrariedades da ditadura, o Rio faz a Passeata dos Cem Mil, abençoada por dom Jaime Câmara, o mesmo cardeal que louvou o golpe
Em 1964 não aconteceu uma revolução. Os militares não tinham um conjunto doutrinário capaz de dar ao golpe esse caráter orgânico e profundo. Mas houve uma ruptura que, de certo modo, reprisou o ciclo descrito por Brinton. Triunfou sob o comando de Castello Branco, um militar culto, de formação liberal e avesso ao barbarismo autoritário, e acabou sob o tacão implacável de Emílio Garrastazu Médici — de todos os generais-presidentes o que menos se incomodou com o uso da força bruta. Por volta de 1970, o golpe já esfacelara as instituições nacionais e devorara alguns de seus filhos mais pródigos. Perdera apoio até de um pedaço da elite e dos políticos conservadores.
O triunfo dos radicais de qualquer ideologia e em qualquer regime decorre de circunstâncias muito específicas, mas, em geral, relaciona-se à organização e ao ambiente. Os radicais são mais disciplinados e mais obstinados que os moderados. Por isso, costumam se organizar com mais competência e empenho. São ainda favorecidos por um ambiente em que toda manifestação de moderação é vista como covardia. No regime de 64, os radicais, sob o apoio ou o silêncio de comandantes militares, endureceram o regime a ponto de implantar o terrorismo de Estado para combater o terrorismo de esquerda. Explodiram bombas e colocaram presos no pau de arara. A direita extremista, que antes do golpe atuava por sua conta e risco, transferiu-se para dentro da máquina do Estado, anarquizando a ordem militar. E a radicalização da linha dura criou um ambiente no qual qualquer gesto de prudência equivalia a sinal de fraqueza.
Subvertido pela tortura e pela anarquia, o regime viveu a ilusão de que poderia eliminar o inimigo na clandestinidade do porão e no silêncio da censura. A tortura e o combate à esquerda armada cumpriram o objetivo imediato, mas apodreceram o regime moralmente. Disso, a ditadura jamais se recuperaria. A pensadora Hannah Arendt explicou: está fadada ao fracasso toda política de Estado cujo objetivo seja fazer seus adversários “desaparecer em silencioso anonimato”. A força bruta descarnou o regime. Até hoje, meio século depois do golpe, num Brasil em quase tudo diferente do de 1964, os comandantes militares não admitem que “fugitivos”, “desaparecidos” e “suicidas” foram, na verdade, assassinados. Sendo uma instituição baseada na ética, na honra e na lealdade, as Forças Armadas ainda precisam reconhecer para a sociedade que esse passado é condenado também pelos militares.
Fonte: Veja