Obra de Spix e Martius serve de alerta 200 anos depois

Inspirados em Humboldt, Johann Spix e Carl Martius percorreram mais de 10 mil quilômetros de paisagens brasileiras. Legado de alemães é apelo à preservação ambiental e tema de mostra itinerante no Brasil e na Alemanha.

    

Retratos em preto e branco de pesquisadores Spix e MartiusSpix e Martius: alemães criaram a base usada até hoje em pesquisas sobre fauna, flora e etnologia brasileiras

Inspirados pelas expedições de Alexander von Humboldt à América Latina realizadas nos primeiros anos do século 19, o zoólogo Johann Baptist Spix e o botânico Carl Friedrich Philipp Martius percorreram durante três anos mais de 10 mil quilômetros das paisagens brasileiras, começando no Rio de Janeiro, passando por São Paulo, Ouro Preto, Salvador, atravessando Minas Gerais, o sertão do Nordeste e explorando a bacia amazônica.

A aventura rendeu um testemunho único sobre o Brasil. Os naturalistas repartiram a vegetação brasileira em cinco biomas (cerrado, caatinga, Mata Atlântica, Floresta Amazônica e pampas), base usada até hoje – tendo havido de lá para cá o acréscimo de um sexto bioma: o Pantanal.

Ainda hoje, 200 anos depois, seu legado é base para estudos culturais, históricos e naturais. Ele também serve como alerta para a conservação do meio ambiente. Os aventureiros alemães testemunharam a atividade mineradora em Minas.

Painel de exposição mostra caminho percorrido por exploradores Spix e MartiusComposta de painéis desmontáveis, mostra itinerante percorre cidades brasileiras e alemãs

“Eles registraram a intensa exploração das minas e advertiram para o perigo da exploração excessiva do meio ambiente. Esse perigo foi confirmado por dois desastres ambientais: um em 2015, em Mariana, e o de 2019, em Brumadinho”, ressalta o pesquisador alemão Willi Bolle, se referindo a duas catástrofes causadas pelo rompimento de barragens de mineração.

Bolle é um dos autores da exposição itinerante Viagem de Spix e Martius pelo Brasil, que celebra os diversos aspectos da longa caminhada dos exploradores alemães, além de traçar paralelos com o Brasil atual.

A exibição pode ser vista deste sábado (10/08) até o próximo dia 26 na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, seguindo depois para São Paulo e Curitiba. Paralelamente, uma réplica da mostra percorre cidades da Alemanha, onde, depois de uma temporada em Berlim, os painéis devem seguir para o sul do país, em cidades e datas a serem confirmadas.

Os 21 banners que compõem a mostra – realizada pelo Instituto Martius-Staden e o Colégio Visconde de Porto Seguro – unem o presente, com fotos atuais das paisagens, ao que foi testemunhado por Spix e Martius no século 19.  “A ideia foi fazer uma exposição de baixo custo, com painéis desmontáveis, que chega em mais lugares com menos investimento”, explica a historiadora Karen Macknow Lisboa, curadora da exibição. Ela é ainda enriquecida com o acervo original dos lugares por onde passa, como em Berlim, no primeiro semestre deste ano. Ao ocupar a biblioteca do Instituto Ibero-Americano, os murais foram acompanhados por mostruários com originais das obras dos aventureiros alemães mantidos pela instituição.

Litografia mostra escravos em atividade mineradora em Minas Gerais, do livro Viagem no Brasil, de Spix e MartiusMineração em Minas Gerais, de “Viagem pelo Brasil”, de Spix e Martius: alemães alertaram para perigo ao meio ambiente

Jornada de desafios

No período da viagem, entre 1817 e 1820, os exploradores viveram muitos martírios, passaram por tempestades, secas, doença, sede. Spix e Martius retornaram à Europa levando uma vasta coleção de amostras e desenhos da fauna, flora e etnografia brasileiras.

Entre os suvenires transportados para a Europa, 6.500 plantas e sementes, 2.700 insetos, 85 mamíferos, 350 pássaros, 150 anfíbios e répteis, além de 116 peixes e 2.700 insetos, exemplares preparados e alguns mesmo vivos – incluindo seres humanos.

A dupla chegou na Alemanha com duas crianças indígenas, de duas tribos distintas, uma menina e um menino, que morreram meses após o desembarque na Europa. “Eles levaram seis índios da Amazônia, dois deixaram no Brasil, dois morreram durante a travessia do Atlântico”, lembra a historiadora Karen Macknow Lisboa.

Índígena da etnia maxuruna, retratado em livro dos aventureiros alemãesÍndígena da etnia maxuruna, retratado em livro dos aventureiros alemães

“Como eles adquiriram essas crianças é ainda um ponto de interrogação, mas tudo indica que elas foram escravizadas ilegalmente”, frisa. ″Citamos isso nos painéis da mostra de maneira crítica. Mas também situamos dentro do contexto da época, quando esse tipo de prática não era incomum”, ressalta. “O próprio Martius, em seu díário, quando mais velho, retoma o episódio e faz uma espécie de mea-culpa em relação a isso.”

Parte da coleção etnológica brasileira dos exploradores ainda pode ser vista em museus de Munique. Artigos de caráter etnográfico, como máscaras indígenas, adereços, armas e outros utensílios se encontram no Museu dos Cinco Continentes, também na capital bávara.

O material foi usado como base para a produção de uma série de estudos sobre botânica e zoologia brasileiras, publicados nos anos seguintes. O relato da jornada em três volumes, Reise in Brasilien(Viagem pelo Brasil), está entre as primeiras dessas obras.

Martius foi responsável pelo lançamento da maior parte dos livros. Mesmo com saúde abalada nos anos seguintes, Spix finalizou alguns trabalhos importantes, contendo descrições de espécies de animais tropicais. Mas parte de sua contribuição foi impressa após ele ter morrido, em 1826, quase seis anos após deixar o Brasil, de doença adquirida nas matas tropicais.

Ariranha-azulAriranha-azul, descrita pela primeira vez por Johann Spix, ganhou nome científico que homenageia o pesquisador alemão

Exuberância brasileira

Em seus escritos, os autores descrevem e ilustram detalhadamente aspectos da exuberância natural do Brasil. Uma das contribuições de maior destaque de Martius é a monumental Flora Brasiliensis, ainda considerada a mais importante obra sobre a botânica brasileira, distribuída em 15 volumes subdivididos em 40 partes, originalmente publicados na forma de 140 fascículos individuais e lançados ao longo de seis décadas O trabalho descreve um total de 22.767 espécies.

Das mais de 3 mil espécies de animais catalogadas pela primeira vez pelos naturalistas alemães, algumas acabaram sendo batizadas em homenagem aos pesquisadores. Um exemplo é o nome científico da ararinha-azul, que homenageia Spix: Cyanopsitta spixii. Atualmente considerada extinta na natureza, a espécie (a mesma do personagem principal da animação da Disney Rio)só é encontrada em cativeiro.

Capa de exemplar original de Reise in Brasilien (Viagem ao Brasil) visto sob vitrinePrimeira edição de “Reise in Brasilien” exibida em Berlim: em alguns lugares, mostra é acompanhada por material original

A missão de Spix e Martius foi realizada por ordem do rei da Baviera, Maximiliano José 1º, e tinha como meta principal a formação de um acervo científico para seu recém-fundado reino. A dupla de cientistas aproveitou uma carona na missão austríaca que acompanhava a comitiva da arquiduquesa austríaca Maria Leopoldina. Ela embarcava rumo ao Brasil para se casar com Dom Pedro 1°. No retorno, os naturalistas foram homenageados pelo monarca bávaro com o título de cavaleiros, incluindo a denominação de nobreza “von” a seus sobrenomes.

Imagens históricas e recentes

Nos painéis da mostra Viagem de Spix e Martius pelo Brasil, as gravuras históricas que integram as obras dos naturalistas alemães são comparadas com fotos recentes feitas por Willi Bolle e pelo diretor do Instituto Martius-Staden, Eckhard Kupfer, em viagens que buscam retraçar os passos dos cientistas europeus. Eles já passaram por Minas Gerais, Bahia, produzindo o documentário em vídeo Travessia do sertão: no caminho de Spix e Martius.

“O objetivo da nossa viagem era conhecer esses lugares, ver o que continua existindo e registrar as transformações que ocorreram”, destaca o pesquisador.

Radicado no Brasil desde 1966, o alemão Willi Bolle e tem se dedicado há anos a pesquisar a topografia cultural da metrópole São Paulo, passando pelo sertão, até a Amazônia. “Nesse sentido, o trajeto é praticamente o mesmo, e no meio do percurso descobri que os meus inspiradores foram Spix e Martius.”

A mobilidade da exposição também permite que ela seja emprestada gratuitamente a escolas, para realização de ações pedagógicas. Mais informações podem ser obtidas com o Instituto Martius-Staden.

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

Junto às margens

Os índios da etnia munduruku habitam principalmente as regiões de florestas, às margens de rios. Estão distribuídos especialmente no vale do rio Tapajós, no Pará, e nos estados do Amazonas e Mato Grosso. Atualmente, estima-se que a população de índios munduruku seja de 12 a 15 mil.

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

A cacica

Atualmente, algumas aldeias de munduruku são representadas por mulheres, conhecidas como cacicas. Maria Anicéia Akay Munduruku, da região do Alto Tapajós, faz parte do movimento pela demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu e contra a construção de hidrelétricas. Ela não fala português: para se comunicar com os demais fora da comunidade, ela precisa da ajuda na tradução, feita pelo marido.

Brasilien Volkstamm Munduruku Demarkation

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

As ameaças

Os moradores da Terra Indígena Sawré Muybu aguardam a homologação do território que habitam há pelo menos três séculos. A área, de 178 mil hectares, sofre ameaça principalmente de madeireiros, garimpeiros e, agora, pode ser impactada pela construção de hidrelétricas. Como estratégia, os indígenas iniciaram a autodemarcação do território com instalação de placas que imitam as oficiais.

Brasilien Volkstamm Munduruku Tapajos Fluss

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

A essência da vida

Para os mundurukus, o rio Tapajós é a essência da vida indígena. Eles dependem de suas águas principalmente para se alimentar e se locomover. Estudos apontam a existência de mais de 110 espécies de peixes, além do peixe-boi e ariranha. Animais como anta e tamanduá-bandeira também vivem às margens do rio.

Brasilien Volkstamm Munduruku Alltag

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

Trabalho diário

Na época de chuvas, que vai de dezembro a maio, o nível do Tapajós chega a subir sete metros. Já na estação seca, de junho a novembro, a água volta ao curso normal. Nos igarapés da aldeia Sawré Muybu, indígenas tomam banho, lavam a louça e a roupa no começo e no final do dia.

Brasilien Volkstamm Munduruku Kinder

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

Professores indígenas

As crianças munduruku frequentam a escola da aldeia, sob orientação de professores indígenas. Normalmente, apenas o ensino fundamental é oferecido nas comunidades. Na foto, as meninas brincam na sala de aula compartilhada na aldeia Sawré Muybu durante o período de férias escolares. Alguns animais, como macaco, papagaio, cachorro e capivara convivem com as crianças na aldeia.

Brasilien Volkstamm Munduruku Kaxidi Getränk

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

A bebida tradicional

Em ocasiões especiais, como visitas à comunidade, as famílias mundurukus preparam uma bebida conhecida como kaxidi. Ela é feita de batata-doce, farinha de mandioca e caldo de cana ou açúcar. Embora consumam principalmente alimentos cultivados nas roças, alguns produtos não tradicionais fazem parte da dieta há algum tempo, como açúcar, sal, café, e são comprados na cidade cerca de uma vez por mês.

Brasilien Volkstamm Munduruku Maniokmehl

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

Mandioca, batata-doce, cará e banana

A farinha é o principal alimento nas aldeias mundurukus. Ela é fabricada artesanalmente, por quase toda a família. A mandioca, plantada na roça familiar, é triturada, ralada e depois torrada num tacho aquecido com lenha. O produto é armazenado em sacos de estopa e servido praticamente em todas as refeições. Além da mandioca, os índios cultivam principalmente batata-doce, cará e banana.

Brasilien Volkstamm Munduruku Teles Pires Wasserkraftwerk

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

A ameaça

Vista aérea da hidrelétrica Teles Pires, construída no leito do rio homônimo, afluente do Tapajós, localizada na divisa dos estados do Pará e Mato Grosso. Pronta desde 2015, a usina tem potência instalada de 1820 MW, mas ainda está praticamente sem produzir eletricidade devido à falta de linhas de transmissão. A cor verde mais clara indica área de floresta que foi submersa.

Brasilien Volkstamm Munduruku Sao Manoel Wasserkraftwerk

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

Participação chinesa

Imagem aérea mostra obras de construção da hidrelétrica São Manoel, com início de operação prevista para janeiro de 2018. Com participação da indústria chinesa, empreendimento está orçado em R$ 2,2 bilhões. A usina também está localizada no rio Teles Pires, afluente do Tapajós, e terá capacidade para gerar 700 MW.

Brasilien Volkstamm Munduruku Tapajos Fluss

MUNDURUKUS ÀS MARGENS DO TAPAJÓS

Perda da terra e fim da subsistência

Se construída, a hidrelétrica São Luiz do Tapajós ficará nesse trecho do rio, que tem águas verde-azuladas, corredeiras, praias, cachoeiras e igarapés. Os reservatórios poderão inundar até 7% da Terra Indígena Sawré Muybu. Para os mundurukus, o barramento do rio significa a perda de território e dos meios de subsistência, além de piorar qualidade da água e interferir na reprodução dos peixes.

Autoria: Nádia Pontes

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