Primeiro crime por homofobia no brasil aconteceu em 1612
Edison Veiga – BBC
Em 1614, um índio tupinambá foi executado, com a anuência de religiosos da Igreja Católica em missão no Brasil, por conta de sua orientação sexual. Conhecido como Tibira do Maranhão — tibira é um termo utilizado por indígenas para se referir a um homossexual —, seu caso é o primeiro registro de morte por homofobia no Brasil. Ativistas LGBT querem que o personagem seja reconhecido como mártir e fazem campanha para divulgar a história.
A história de Tibira do Maranhão foi resgatada pelo sociólogo e antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia e fundador da organização não-governamental Grupo Gay da Bahia. Seis anos atrás ele publicou um livreto chamado São Tibira do Maranhão — Índio Gay Mártir, com o relato da execução do personagem histórico e uma contextualização do caso.
Desde então, ele vem lutando para dar mais visibilidade ao episódio. Ganhou apoio de um religioso de uma denominação cristã independente, o arcebispo primaz da Santa Igreja Celta do Brasil, que diz reconhecer o martírio e a santidade do indígena. Grupos de luta por direitos dos homossexuais divulgam a importância de sua memória.
No início do próximo ano, Mott pretende encaminhar à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) um pedido para que a Igreja Católica “peça publicamente perdão” pela execução de Tibira e instaure o início de um processo de canonização.
“Estamos dispostos ainda a mobilizar outras igrejas para reconhecê-lo logo como um santo, independentemente do Vaticano”, afirma o antropólogo à BBC News Brasil. Mott defende que Tibira seja reconhecido como “o primeiro mártir da homofobia no Brasil” e busca revestir sua história de simbolismo, em alusão aos crimes de homofobia ainda hoje praticados no país.
Quem esteve por trás da condenação de Tibira — segundo Mott, uma “execução arbitrária e sem autorização do papa nem da Inquisição” — foi o religioso e entomólogo francês Yves d’Évreux (1577-1632), frade capuchinho que integrou expedição francesa ao Brasil Colônia.
E a documentação detalhada, no caso, é o relato do próprio religioso, publicada em livro intitulado História das Coisas Mais Memoráveis Acontecidas no Maranhão nos Anos de 1613-1614.
A execução
No seu livreto, Mott atenta que a narrativa do frade escancara “a visão altamente etnocêntrica e o preconceito da moral cristã contra a sodomia, além de sua ardilosa tentativa de justificar eticamente a pena de morte contra o infeliz selvagem pecador”.
“Um pobre índio (sodomita), bruto mais cavalo do que homem, fugiu para o mato por ouvir dizer que os franceses o procuravam e aos seu semelhantes para matá-los e purificar a terra de suas maldades por meio da santidade do Evangelho, da candura, da pureza, e da clareza da religião Católica Apostólica Romana”, relatou d’Évreux.
“Apenas foi apanhado, amarraram-no e trouxeram-no com segurança ao forte de São Luís, donde deitaram-lhe ferros aos pés; vigiaram-no bem até que chegassem os chefes principais de outras aldeias para assistirem ao seu processo e proferirem sua sentença e sua morte, como fizeram afinal. Não esperou o prisioneiro pelo princípio do processo e ele mesmo sentenciou-se, porque diante de todos disse: ‘Estou morto, e bem o mereço, porém desejo que igual fim tenham os meus cúmplices’.”
O antropólogo pontua que outros relatos da época corroboram a ideia de como os europeus se chocaram com a “diversidade sexual e lascívia exacerbada dos ameríndios”. Em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, o empresário, agricultor e historiador português Gabriel Soares de Sousa (1540-1591) escreveu que “são os tupinambá tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam. Não contentes em andarem tão encarniçados na luxúria naturalmente cometida, são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta”.
Afirmou ainda que “o que se serve de macho se tem por valente e contam esta bestialidade por proeza” e “nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas”.
Quando os capuchinhos franceses chegaram ao Brasil, portanto, já estava consolidada essa imagem de que era preciso “purificar a terra de suas maldades”. Catequizados pelos religiosos, os próprios indígenas se tornaram aliados nesta missão. D’Évreux relata que após ser sentenciado, Tibira teve o direito de pedir para ser batizado — o argumento era que, se ele aceitasse, “apesar de sua má vida passada, iria direto para o Céu apenas se sua alma se desprendesse do corpo”.
O frade conta que, temendo uma repercussão negativa, como se estivesse endossando a execução, resolveram que não seria conveniente que ele próprio o batizasse. Assim, instruiu o carrasco para que o fizesse, “antes de ir ao suplício sem as cerimônias da Igreja”.
Aqui há um simbolismo que não passa incólume aos olhos dos pesquisadores. No batismo cristão, Tibira foi chamado de Dimas. De acordo com a hagiografia, São Dimas é considerado o “bom ladrão”. Foi um dos homens crucificados ao lado de Cristo que, arrependido de seus erros em vida, recebeu a promessa de que ainda naquele dia estaria no Paraíso.
Para o Grupo Gay da Bahia, reside neste fato o principal argumento que permitiria qualificá-lo como santo mártir: assim como o “bom ladrão” foi posteriormente reconhecido como santo, o mesmo deveria ocorrer com o indígena brasileiro.
“Recebeu o batismo com tranquilidade e sem tristeza, na presença dos principais selvagens, depois do que um dos principais, chamado Caruatapirã, lhe disse estas palavras: ‘Tens agora ocasião de estares consolado e de não te afligires, pois presentemente és filho de Deus pelo batismo que recebeste (…) com permissão dos padres. Morres por teus crimes, aprovamos tua morte e eu mesmo quero pôr fogo no canhão para que saibam e vejam os franceses que detestamos as sujeiras que cometeste. Mas repara na bondade de Deus e dos padres para contigo, expelindo Jurupari para longe de ti por meio do batismo, de maneira que apenas tua alma saia do corpo vá direto para o Céu ver Tupã e viver com os Caraíbas que o cercam. Quando Tupã mandar alguém tomar teu corpo, se quiseres ter no Céu os cabelos compridos e o corpo de mulher antes do que o de um homem, pede a Tupã que dê o corpo de mulher e ressuscitará mulher, e lá no Céu ficarás ao lado das mulheres e não dos homens’.”, escreveu o frade. Na mitologia indígena, Jurupari é o próprio mal — seria o equivalente ao demônio do cristianismo.
Na sequência, em seu relato, D’Évreux apressou-se a corrigir essa interpretação feita por Caruatapirã do evangelho cristão. “Desculpareis este pobre selvagem, não cristão e nem catecúmeno, falando da ressurreição. Ele nos ouviu ensinar que em um dia ressuscitariam todos os homens, regressando cada alma do lugar em que estava para ocupar o seu corpo, acrescentando o que pensou ser indiferente à ressurreição, isto é que, uma alma recebe um corpo de homem ou de uma mulher, no que se enganou”, pontuou.
Tibira foi levado a um canhão instalado na muralha do forte de São Luís. Amarram-no pela cintura à boca da arma. Quando lançaram fogo, “em presença de todos os principais, dos selvagens e dos franceses (…), imediatamente a bala dividiu o corpo em duas porções, caindo uma ao pé da muralha, e outra no mar, onde nunca mais foi encontrada”, registrou o frade.
Mott atenta para o fato de que não há notícia no Brasil de nenhum outro condenado que tivesse sido executado assim, na boca de um canhão.
São Tibira
A iniciativa do antropólogo ecoa em outras entidades de defesa dos direitos dos homossexuais. “[A eventual canonização de Tibira] seria muito importante. Quem se doa a uma causa, a uma luta, vira mártir, não importa se é hétero, gay ou lésbica, travesti ou transexual, binário ou não binário”, diz à BBC News Brasil ativista Agripino Magalhães, da ONG Aliança LGBT+. “O que importa é que ele foi morto, deu a vida em prol de um sentido maior.”
“Venho da base da Igreja Católica e graças a Deus sempre fui respeitado lá. Sempre me dediquei a pastorais sociais e a própria Igreja Católica muitas vezes fala que ser santo não tem a ver com sexualidade”, completa Magalhães.
Arcebispo primaz da Santa Igreja Celta do Brasil, o historiador Sérgio Muricy — cujo nome religioso é dom Bernardo da Ressurreição — é o primeiro religioso a reconhecer a santidade de Tibira.
“Fiquei impressionado com a narrativa histórica e a força exemplificadora da homofobia no período colonial no Brasil”, comenta ele, à BBC News Brasil. “O índio Tibira chegou a ser supliciado, o que me chamou a atenção, de forma cruel e sem direito de defesa, sendo assassinado, motivado por sua orientação sexual.”
Como ele mesmo explica, sua denominação religiosa segue a “linha católica”. “Nessas igrejas, em condições especiais, você pode atribuir santidade sem precisar de milagres. Temos dezenas de santos e santas que foram canonizados pelo seu heroísmo em defender a fé apostólica e católica. A Igreja pode proclamar um santo pelo martírio (…) sem precisar da comprovação de milagres. São santos pelo testemunho de defesa da fé”, argumenta ele.
“O índio Tibira foi martirizado em uma boca de canhão. Não se tem notícias de nenhum martírio com esta crueldade na história do Brasil. Um martírio sem processo judicial, sem julgamento. Proclamar São Tibira do Maranhão, que foi martirizado pela sua orientação sexual, é fazer esta reparação histórica, criar um símbolo de resistência para a comunidade LGBT+ e proporcional às igrejas cristãs”, acredita Muricy.
“Muitas já estão revendo e corrigindo ou apagando seus preconceitos com os gays. A oportunidade de acolhimento a todos os cristãos independe de sua orientação sexual. Pelo relato que descreve o suplício de São Tibira, ele foi batizado pelos seus algozes antes de morrer. Então ele morreu cristão, reunindo as condições necessárias para sua canonização ou proclamação de santidade.”
O arcebispo diz que no “cristianismo celta, que foi católico e ortodoxo” há a “liberdade de instituir devoções particulares”. “Eu institui minha devoção ao índio Tibira pelo martírio, suplício por sua sexualidade e exemplo para o combate à homofobia”, ressalta. “Pretendo propor à minha igreja que São Tibira seja proclamado e reconhecido como santo mártir, dispensando processo de canonização. Somos uma igreja inclusiva, acolhemos todo ser humano, independente da orientação sexual.”
“Realizamos casamentos homoafetivos e ordenamos mulheres para todos os graus da ordem sacerdotal. Se temos santos protetores de praticamente todas as profissões e situações, por que não podemos ter um santo que proteja a comunidade LGBT+, historicamente perseguida até os dias atuais na maior parte dos países? Negar a possibilidade de colocar no altar São Tibira do Maranhão é homofobia estrutural”, defende.
Em abril, ele solicitou ao artista plástico Miguel Galindo que produzisse uma imagem sacra de Tibira. Segundo Muricy, trata-se de um artista com experiência em produzir quadros que retratam santos. “Conversei com ele sobre as características de São Tibira e não foi surpresa para mim o resultado, pois já sabia da capacidade artística dele. Ficou bom e expressivo”, comenta.
“Ele me mandou a história do santo e eu fiz minha criação em óleo sobre tela”, conta à reportagem Galindo. Muricy adquiriu a tela original. Mott encomendou também uma reprodução. “Trata-se da primeira tela devocional de São Tibira do Maranhão”, define Muricy.
Canonização
O arcebispo da Igreja Celta acredita que solicitar ao Vaticano que analise a canonização de Tibira é “uma positiva provocação para ajudar na sensibilização de acolhimento” da comunidade LGBT. Para ele, a Igreja Católica “precisa evoluir no processo de respeito a todos os seres humanos, independentemente da orientação sexual”.
Procurado pela BBC News Brasil, o arcebispo de Natal, dom Jaime Vieira Rocha, presidente da Comissão Especial para a Causa dos Santos da CNBB, afirma que não há “nenhum conhecimento oficial sobre processos” referentes a Tibira do Maranhão.
Ele explica que a Igreja costuma ouvir “o pedido de fiéis leigos” em relação à canonização de santos. Um exemplo recente é o caso do papa João Paulo 2º (1920-2005), canonizado em 2014. “Logo após sua morte o povo aclamava: ‘santo subito'”, recorda.
Rocha explica que costumam ser várias as etapas para que alguém seja reconhecido como santo. “O caminho para a canonização passa por etapas. Normalmente, se torna um ‘servo de Deus’ com a abertura do procedimento. Se ele apresentar as virtudes heroicas necessárias, é proclamado ‘venerável’, sem dias festivos ou igrejas em sua homenagem, mas pode ter rezas e materiais impressos em seu nome. Caso se prove um milagre por sua graça, pode ser beatificado, então ser venerado pela diocese local. A canonização acontece com a comprovação de um segundo milagre”, explica.
“Ao se tornar santo, é inserido no calendário universal da Igreja e pode ser venerado em todo o mundo”, ressalta o religioso. Atualmente existem em andamento 52 processos de beatificação de figuras brasileiras — que já tramitam no Vaticano. Em âmbito local, há ainda 16 veneráveis e 68 servos de Deus.
O arcebispo de Natal lembra ainda que há uma possibilidade de alguém ser declarado santo sem precisar passar por todo esse processo de comprovação de milagres. É a chamada canonização equipolente.
“O papa pode elevar um candidato à dignidade de santo sem a necessidade de comprovação de milagres, desde que três requisitos sejam cumpridos: a prova da antiguidade e constrância do culto ou devoção popular ao candidato a santo, o fato histórico de sua fé católica e de suas virtudes, e a fama de milagres por ele intermediados”, frisa.