500 mil mortos: a tragédia esquecida que dizimou brasileiros durante 3 anos no século 19
Camilla Veras Mota, Camilla Costa e Cecilia Tombesi | BBC News Brasil
Aviso: esta reportagem contém descrições e imagens que podem afetar pessoas sensíveis.
Cerca de 40 anos antes da gripe espanhola, uma catástrofe matou 50 milhões de pessoas no mundo. Desta vez, a principal causa foi a fome.
Uma sucessão de eventos climáticos combinados gerou uma seca sem precedentes em praticamente toda a região equatorial do globo.
No Brasil, a falta de chuvas foi o primeiro capítulo de um flagelo que incluiu uma epidemia de varíola e matou pelo menos 500 mil pessoas entre 1877 e 1879.
Isso era o equivalente a 5% da população do país contabilizada no primeiro censo, de 1872.
A então província do Ceará foi de longe a mais afetada. Só em 1878, o pior ano da seca, 119 mil pessoas morreram e outras 55 mil foram obrigadas a migrar.
A província assistiu à redução drástica de sua população, de cerca de 900 mil em 1876 para 750 mil em 1881, de acordo com o médico Barão de Studart, no livro Climatologia, Epidemias e Endemias do Ceará.
A única tragédia em escala semelhante no país, desde então, acontece neste momento, com a pandemia de covid-19, que já tirou quase meio milhão de vidas em cerca de um ano e meio.
A “Grande Seca”, como ficou conhecida, ocorreu em um momento e em uma proporção diferente — a população brasileira hoje é cerca de 21 vezes maior do que a de 1877, por exemplo.
No entanto, seu impacto foi resultado de uma combinação de fenômeno natural, crise econômica, falhas na assistência à população e disputas políticas — dinâmicas que ainda podem ser vistas no Brasil de hoje.
Um desastre natural ‘ao acaso’
Juntamente com o nordeste do Brasil, as regiões mais duramente atingidas pela Grande Seca foram Índia, Austrália, sul da África, nordeste da China e Mediterrâneo.
Mas, apesar da catástrofe humana e ambiental na época, só recentemente a ciência passou a investigar suas razões.
O primeiro trabalho que analisa a Grande Seca como um fenômeno global do ponto de vista climatológico é de 2018. Nele, a pesquisadora Deepti Singh e seus colegas apontam a combinação de pelo menos quatro eventos recordes e quase simultâneos: um dos piores El Niño de que se tem notícia, redução das temperaturas do Pacífico tropical, aquecimento das águas do Atlântico Norte e uma oscilação de temperaturas no oceano Índico que afetou a temporada de monções.
Em um período anterior ao do aquecimento global, essa equação foi obra do acaso. Ou, em linguagem científica, das oscilações periódicas e naturais do clima, explicou Singh à BBC News Brasil.
Mas o resultado da combinação foi tão intenso que, caso algo do tipo ocorresse hoje, “seus efeitos poderiam ser ainda maiores, já que as mudanças climáticas agravam os desastres naturais”, afirma.
Por outro lado, para alguns pesquisadores, como Mike Davis, da Universidade da Califórnia, a ação humana ajuda a explicar o número tão elevado de mortes causadas por esse fenômeno climático.
Em seu livro Último Holocausto Vitoriano, ele afirma que a desestruturação da economia de subsistência em países como Egito e Índia, provocada pelo colonialismo europeu, foi uma das responsáveis pela fome que decorreu da seca.
No Brasil também, segundo historiadores, a crise econômica e as decisões do poder público agravaram o problema — que se tornaria uma tragédia sem precedentes na história contemporânea brasileira.
A ‘invasão’ dos famintos
Em 1877, cem anos depois da última seca prolongada no Ceará, praticamente não caiu água do céu entre janeiro e março. Sem gado e sem colheita, teve início um grande êxodo dos sertões em direção à capital, Fortaleza.
Ao contrário do que pregava parte dos intelectuais na capital do Império, o Rio de Janeiro, a chuva também não veio nos meses seguintes. E as fileiras de migrantes engrossaram com um exército de famintos.
“Morria-se de fome, puramente de fome nas ruas da cidade, pelas estradas”, escreveu o médico cearense Barão de Studart.
Desesperados, os retirantes comiam o que encontravam pelo caminho — inclusive vegetais venenosos que lhes acabavam tirando a vida.
“Depois de alimentar-se de raízes silvestres (especialmente da mucunã), de algumas espécies de cactus (chique-chique, mandacaru) e bromélias (coroatá, macambira), do palmito da carnaúba e de outras palmeiras, das amêndoas e entrecasca do cocos, o faminto passara a comer as carnes mais repugnantes, como a dos cães, a dos abutres e corvos, e a dos répteis.”
Em dezembro de 1877, 80 mil haviam chegado a Fortaleza, número quatro vezes maior que a população da capital, 19 mil.
Uma multidão que ficava na rua, nas praças, sob a sombra dos cajueiros, como descrevem os livros da época.
O Ceará, além da província mais afetada, é também a que melhor manteve registros estatísticos da migração dos retirantes e do clima. Os únicos dados disponíveis sobre os índices pluviométricos do nordeste no período, por exemplo, vêm da estação climatológica de Fortaleza, diz a pesquisadora Deepti Singh.
No entanto, documentos e jornais da época contam como a seca prejudicou também as províncias vizinhas.
Os governos de Pernambuco e Alagoas, por exemplo, se desentenderam porque ambos julgavam não ter responsabilidade sobre um contingente de 9 mil retirantes concentrados na fronteira. Alagoas dizia que os migrantes só estavam ali porque tentavam chegar ao depósito de alimentos pernambucano instalado em Taracatu; Pernambuco alegava que, tecnicamente, as pessoas ainda estavam em solo alagoano.
O historiador Roger Cunniff, que esteve no Brasil na década de 1960 para pesquisar o tema, relatou este e outros episódios em The Great Drought: Northeast Brazil, 1877-1880 (“A Grande Seca: Nordeste do Brasil, 1877-1880”, em tradução livre).
Em outro trecho, ele narra o desespero de migrantes que cruzam o rio São Francisco de Pernambuco para a Bahia, menos afetada pela seca do que as demais, e invadiam as fazendas para pedir esmolas e roubar.
“Era uma crise de refugiados”, disse à BBC News Brasil Dain Borges, professor do departamento de História da Universidade de Chicago e pesquisador dos séculos 19 e 20 na América Latina.
Se tornaram emblemáticas as imagens chocantes de homens, mulheres e crianças esquálidas feitas dentro do estúdio do fotógrafo Joaquim Antonio Corrêa em Fortaleza.
Ele trabalhou na época com o jornalista José do Patrocínio, enviado pela Gazeta do Rio de Janeiro para o Ceará, de onde narrava a seca sob a rubrica “Viagem ao Norte”.
Segundo o professor do departamento de História da Universidade Estadual do Ceará (UECE) Gleudson Passos, essa foi a primeira vez que uma seca foi registrada em fotografias no Brasil.
A ideia de expor e explorar a miséria dos retirantes era sensibilizar a opinião pública e alertar para a gravidade dos fatos que se desenrolavam nas chamadas províncias do Norte, que parte dos brasileiros do sul do país achava ser exagero.
Os jornais contavam histórias de mulheres que se prostituíam por um prato de comida, de pais que vendem e até mesmo comiam os próprios filhos.
“Se bestializava os miseráveis nessas descrições, inclusive naquelas que querem criar empatia e misericórdia com o retirantes”, disse à BBC News Brasil a professora do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) Verónica Secreto.
A “campanha para sensibilizar finalmente a corte” deu certo. Na capital do Império e nas províncias do Sul, comitês passaram a organizar bailes e banquetes beneficentes em favor das “vítimas da seca”, que suplementassem o auxílio do governo.
A tragédia virou inclusive notícia na imprensa internacional. A Scribner’s Magazine de Nova York chegou a enviar um correspondente ao Ceará para cobrir a seca.
A epidemia de varíola e o ‘dia dos mil mortos’
A tragédia provocada pela fome virou calamidade com a disseminação da varíola, que dizimou parte da população cearense em 1878.
A doença foi registrada bem antes na província da Paraíba, a primeira atingida: 74 pessoas morreram entre abril e maio de 1877, de acordo com os documentos citados por Cunniff.
Nos meses seguintes, o vírus foi percorrendo o caminho da procissão dos retirantes.
Subiu à província do Rio Grande do Norte e atingiu especialmente Mossoró, que recebia os sertanejos paraibanos. E entrou no Ceará pelo município litorâneo de Aracati, destino, por sua vez, de levas de migrantes vindas de Mossoró.
Quando chegou a Fortaleza, mais de 100 mil sertanejos já estavam aglomerados em campos e vivendo em péssimas condições de higiene.
Eram os chamados “currais do governo” ou abarracamentos, a solução encontrada pela administração local para lidar com os refugiados.
“(Os abarracamentos) Eram verdadeiras palhoças”, descreve o professor Gleudson Passos. “Umas colunas de pau, geralmente feitas de madeira de carnaúba, e uma cobertura. Esses espaços eram cercados e lá se amotinavam as populações que vinham dos sertões, para que elas não entrassem na cidade.”
Sem saneamento adequado, essas aglomerações foram decisivas para que a varíola explodisse na cidade.
“Os sertões haviam conseguido conter surtos de varíola antes da seca, mas foram eventos isolados e as autoridades não tinham dado importância suficiente a eles a ponto de tomarem medidas efetivas para que fossem eliminados. O deslocamento e a concentração da população afetada pela seca forjou as condições ideiais para o surgimento de uma epidemia”, escreveu Cunniff em The Great Drought.
Apesar do desastre humanitário, os abarracamentos continuariam sendo usados em secas posteriores, sob o nome de “campos de concentração”.
Nos arredores da capital cearense, dez desses currais reuniam cerca de 110 mil pessoas conforme os registros feitos à época pelo farmacêutico Rodolpho Teóphilo.
Em seu livro Varíola e vacinação no Ceará, ele descreveu a situação no pico da epidemia, quando hospitais estavam em ocupação máxima e as ruas, repletas de cadáveres — em dezembro de 1878, Fortaleza viveu o que ficou conhecido como o “dia dos mil mortos”.
Entrou setembro de 1878 e a seca tocava ao período mais agudo. O êxodo do sertão para o litoral era incessante e vasto.
A varíola propagou-se como um incêndio ateado na base de uma meda de palhas secas e alimentado por um fole.
No fim de outubro já não havia mais esperanças de restabelecer o serviço hospitalar mais ou menos regular dada a cifra de variolosos.
O pânico já começava a abater o ânimo da população mais agasalhada e domiciliada na área urbana, concorrendo para isso o triste e repugnante espetáculo do transporte dos cadáveres de variolosos pelas ruas mais públicas de Fortaleza.
Imagine-se um cadáver, meio putrefato, vestido apenas de ligeiros trapos, amarrado de pés e mãos a um pau, conduzido por dois homens, ordinariamente meio embriagados, e se terá visto o modo como porque iam para a vala os retirantes mortos de varíola em Fortaleza.
Quantas vezes as famílias chegando às janelas de suas casas entravam horrorizadas porque deparavam com estes esquifes estendidos nas calçadas e ao lado os carregadores, que, excitados pelo álcool, descansavam da carga palrando sem descanso.
Em dezembro, a peste atingiu o período agudo.
Tinha Fortaleza o aspecto de sombria desolação. A tristeza e o luto estavam em todos os lares. O comércio completamente paralisado dava às ruas mais públicas a feição de uma terra abandonada.
Os transeuntes que se viam eram vestidos de preto ou mendigos saídos dos lazaretos com sinais recentes de bexiga confluente que lhes esburacou a cara ou deformou o nariz.
A 10 do mês o cemitério de Lagôa Funda recebia 1.004 cadáveres! Esse assombroso obituário, de um dia, encheu de pânico a quantos dele tiveram notícia.
Por que o Brasil foi tão afetado?
Diferentes pesquisadores apontam erros e omissões do poder público da época que adicionaram à tragédia climática uma calamidade humana.
No entanto, a pobreza em que a região Nordeste já estava imersa foi um ingrediente essencial da catástrofe, diz Cunniff.
“Planejadores urbanos e regionais modernos usam o argumento convincente de que secas prolongadas como essa teriam efeitos mínimos em sociedade munidas de transporte adequado, uma indústria não agrícola e recursos razoavelmente distribuídos. Essa lógica não pode ser contestada. Se essa sociedade existisse no nordeste do Brasil em 1877, nenhuma ação emergencial teria sido necessária: não teria havido crise”, escreveu o pesquisador no artigo O Nascimento da Indústria da Seca.
A pobreza à qual ele faz referência tem como pano de fundo a decadência da economia do algodão. Anos antes, com os preços recorde no mercado internacional devido à interrupção da produção nos Estados Unidos, o cultivo havia atraído para o Ceará milhares de migrantes de outras províncias do nordeste.
Com o fim da guerra civil americana e a retomada da produção no país, contudo, os preços despencaram na Bolsa de Algodão de Manchester, no Reino Unido, e a produção entrou em declínio.
Mitigar os efeitos da recessão no nordeste não estava entre as prioridades do governo central, que concentrava seus investimentos nas províncias mais próximas da capital do Império.
Mesmo depois que a Grande Seca irrompeu, a região continuou em segundo plano.
Não houve urgência para articulação de socorro, fosse financeiro ou material. O Rio de Janeiro demorou a acreditar que havia um problema — e a disputa política entre o Partido Conservador, que estava no poder, e o Partido Liberal contribuiu nesse sentido.
Em um discurso na Câmara dos Representantes no início de 1877, o escritor José de Alencar, então deputado conservador, acusou a oposição de fazer uso político da climatologia e afirmou que as chuvas deveriam voltar a cair na região em pouco tempo.
Entre seus antagonistas estavam o senador liberal Tomás Pompeu de Sousa Brasil, que levou uma comitiva do Ceará nessa mesma época para pedir socorro à administração imperial.
Pompeu, que era cientista e colecionava estatísticas climatológicas do Ceará, também se contrapôs à ideia popular entre parte dos intelectuais da época de que os responsáveis pela seca eram os próprios retirantes.
A seca só passou a ser vista como um problema de Estado, que deveria ser objeto de políticas públicas de mitigação, depois do desastre de 1877 a 1879, diz o professor titular aposentado do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC) José Nilson Campos em Secas e Políticas Públicas no Semiárido: Ideias, Pensadores e Períodos.
Esse período, aliás, expôs falhas graves na resposta do governo brasileiro a emergências do tipo.
Roger Cunniff cita três em The Great Drought: primeiramente, um sistema de comunicação ruim mesmo para a época, que dificultou o acesso das autoridades a informações precisas sobre o que estava acontecendo.
Em segundo lugar, a inabilidade do governo imperial de coordenar as ações dos presidentes de província e uma estrutura do Estado excessivamente centralizada, que impediu que as administrações locais tivessem acesso a dinheiro para socorrer necessitados “até que o governo imperial decidisse que a situação era grave o suficiente para justificar um auxílio emergencial”.
E finalmente, mesmo quando o governo central foi convencido a aprovar o envio desses recursos, ele foram muitas vezes utilizados de maneira ineficiente pelos governos locais ou destinado a indivíduos que aproveitaram para fazer dinheiro com o negócio da seca.
O historiador Gleudson Passos ressalta que nos jornais do período eram frequentes as denúncias de corrupção, algo difícil de ser comprovado naquela época, dada a falta de órgãos de controle no Brasil Império.
Segundo pesquisadores, a “ração” de farinha, arroz e carne seca que passou a ser comprada e distribuída aos retirantes como parte do auxílio também era de baixa qualidade, o que contribuía para que eles permanecessem fracos e com a baixa imunidade.
Com a crise do sistema escravista no Brasil, os refugiados da seca foram considerados candidatos a substituir da força de trabalho dos escravizados.
“Houve até uma disputa pelos retirantes, que se transformavam em migrantes para outras regiões”, afirma Secreto. As elites da região Amazônica, por exemplo, os queriam para o serviço nos seringais; já São Paulo, para o trabalho nos cafezais. Mas oligarquias locais não queriam perder o que enxergavam como eleitores potenciais, além de mão de obra.
Intelectuais liberais da época como o abolicionista André Rebouças defendiam que a melhor maneira de “salvar” os retirantes da fome era pagar-lhes por trabalhos, pequenos ou grandes.
“Nessa conjuntura da crise da escravidão, ele pensou nisso como uma solução nacional. No lugar de trazer imigrantes italianos, que era a solução paulista, ele dizia: ‘A solução está aqui dentro, é só a gente administrar bem a seca’.”
“Rebouças chegava a comparar os nordestinos com o que valia um escravo na época. Era uma maneira de vender para as elites a ideia de que seria proveitoso ajudar aquelas pessoas”, acrescenta a pesquisadora.
Dessa forma, os refugiados da fome nos sertões, aglomerados nos “currais do governo” e mal alimentados pelas rações de baixa qualidade, tinham que trabalhar em obras públicas ou em serviços da administração local para conseguir dinheiro para produtos de necessidade básica.
“As pessoas literalmente morriam de fazer esforço nas obras”, diz a historiadora.
Foi nessas condições que o vírus da varíola encontrou a população do Ceará em 1878.
Além dos abarracamentos cheios de pessoas com a saúde debilitada, foi decisivo o fato de que cerca de 95% da população da província, também a mais afetada pelo vírus na região, não havia sido vacinada.
Apesar de a imunização contra varíola já ser amplamente conhecida naquela época, o governo central e os locais há anos falhavam em organizar uma ampla campanha.
Barão de Studart e RodolphoTeóphilo acrescentam outros dois obstáculos: de um lado, resistência por parte da própria população e, de outro, matéria-prima de baixa qualidade para a fabricação da vacina no nordeste enviada pelo Rio de Janeiro.
A “linfa” que veio a capital, como era chamada a vacina, chegou a causar pústulas e feridas em quem a tomava, aumentando ainda mais a desconfiança.
Em meados de 1878, “a epidemia havia tomado proporções tais que a ação dos poderes públicos se limitava a assistir os doentes que estavam recolhidos às enfermarias e enterrar os mortos”, relatou Teóphilo.
“Em forçada resignação esperava-se que o tempo resolvesse tão angustiosa crise. A solução estava prevista: a varíola só se extinguiria quando atacasse o último indivíduo não imune.”
A situação só começou a melhorar em 1879, depois que os números de infecções e mortes caiu naturalmente.
“Que nos reservaria o novo ano? O mês de janeiro registou ainda a enorme cifra de 2.134 óbitos por varíola em Fortaleza, mas em fevereiro descia o número a 176 e em março, a 107. Saciara-se o minotauro”, escreveu Studart.
Duas sindemias,143 anos de diferença
Em agosto de 2020, Richard Horton, editor-chefe da revista científica The Lancet, afirmou que a pandemia de covid-19 deveria, na verdade, ser considerada uma sindemia — uma situação em que a nova doença, ao interagir com outras já existentes em um contexto ambiental e de profunda desigualdade social, tem um impacto exacerbado.
A sindemia de covid-19 já deixou mais de 3,7 de milhões de mortos globalmente — Estados Unidos, Brasil e Índia tiveram as maiores perdas, em números absolutos.
O mundo do século 19 era muito diferente do atual, desde seus sistemas de governo predominantes até a dificuldade de obter informações sobre doenças ou fenômenos climáticos, como uma seca excepcional.
Mesmo assim, o conceito de sindemia também se aplica à Grande Seca de 1877-79, na avaliação do historiador Gleudson Passos.
Naquele caso, ele explica, um “conjunto de forças sinérgicas formou uma trama” que relacionou diferentes crises — social, econômica, ambiental e produtiva —, de forma que o resultado dessa combinação foi muito pior do que seria cada uma delas isolada.
Como não havia um registro centralizado oficial de óbitos no Brasil, não é conhecido o número definitivo de mortes causadas pela seca — que inclui, segundo todos os especialistas consultados, os mortos por varíola no período.
A estimativa de 500 mil vítimas poderia ser, portanto, conservadora. Cálculos do projeto Our World in Data, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, indicam que o Brasil teria perdido até 750 mil durante os três anos de estiagem, epidemia e crise no nordeste.
Mesmo com todas as diferenças entre os momentos históricos, a maior tragédia humana documentada até então no país se explica por uma combinação de fatores que ecoa nos dias atuais.
A pandemia de covid-19, que começou em janeiro de 2020, está prestes a registrar meio milhão de mortos no Brasil — que podem ser ao menos 35% mais, segundo alguns pesquisadores. Pouco mais de 11% da população está completamente imunizada contra o vírus (após ter recebido as duas doses), cinco meses após o início da vacinação.
Nos últimos meses, especialistas têm repetido que a fatura macabra da pandemia poderia ser menor no país, não tivesse o vírus encontrado terreno fértil para se proliferar.
Sua avaliação é que o país já se encontrava fragilizado por uma crise econômica quando se deparou com um evento global de proporções devastadoras.
Além disso, o governo federal demorou a levar a crise a sério e perdeu-se em conflitos políticos em vez de dar uma resposta consistente ao problema — faltaram testes em massa, barreiras sanitárias, coordenação entre Ministério da Saúde e secretarias estaduais.
Por fim, criou um auxílio emergencial que não teve fôlego para acompanhar a longevidade da crise e errou na compra e distribuição das vacinas.
O historiador Dain Borges ressalta que, diferentemente do Brasil do século 19, hoje é claro que o Estado teria recursos para enfrentar melhor uma crise sanitária e social desse tipo.
“Acho que o governo brasileiro há um ano tinha capacidade de ter diminuído a crise e não o fez. Pensando nisso, é bem mais difícil julgar os erros dos governos brasileiros de 1878 e 79”, conclui.