Shakespeare escreveu trechos de ‘A tragédia espanhola’

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Por quase dois séculos, pesquisadores têm debatido se 325 linhas da peça “A tragédia espanhola”, publicada por Thomas Kyd em 1602, foram, na verdade, escritos por William Shakespeare.

No ano passado, o pesquisador britânico Brian Vickers usou uma análise de computador para defender que as chamadas “passagens adicionais” foram escritas pelo bardo. A afirmação foi aclamada como um dos últimos triunfos da análise high-tech de textos elizabetanos (do período em que a Elizabeth I governou o Reino Unido, de 1558-1603).

Só que, agora, um professor da Universidade do Texas afirma ter chegado a algo mais próximo da prova definitiva, depois de usar um método à moda antiga: a análise da confusa caligrafia de Shakespeare. Em um conciso artigo de quatro páginas, que sai em setembro na revista “Notes and Queries”, Douglas Bruster defende que várias idiossincrasias das passagens adicionais — inclusive versos estranhos que chocaram alguns céticos, por serem claramente inferiores ao estilo de Shakespeare — são explicadas por uma leitura errada da caligrafia do autor.

— O que temos aqui não é algo mal escrito, mas sim mal manuscrito — disse Bruster, em entrevista por telefone.

Defender que Shakespeare é o autor dos versos pode ser uma empreitada perigosa. Em 1996, Donald Foster, um pioneiro da análise de texto por computador, ganhou manchetes ao afirmar que Shakespeare era o autor de um obscuro poema elizabetano, “Elegia para um funeral”. Seis anos depois, ele voltou atrás, depois que análises de Brian Vickers e outros mostraram que o texto era de outro autor.

Editores corroboram descoberta

Desta vez, editoras de renomadas publicações acadêmicas apostam que os argumentos cuidadosamente metódicos de Bruster, somados ao trabalho anterior de Vickers e outros, vão fazer a afirmação ser levada a sério.

— Isso é o mais próximo a que podemos chegar — disse Eric Rasmussen, professor da Universidade de Nevada e editor, com Jonathan Bate, da edição das obras completas do bardo publicada pela Royal Shakespeare Company. — Acho que, agora, podemos dizer com alguma autoridade que, sim, é Shakespeare o autor. As digitais dele estão por toda parte.

Rasmussen e Bate vão incluir “A tragédia espanhola” na edição com todas as peças em que Shakespeare atuou como colaborador, que será publicada em novembro. E Douglas Bruster planeja incluir as passagens adicionais em sua nova edição da série Riverside Shakespeare (rebatizada como Bankside Shakespeare).

Levando em conta toda a obra do bardo, as passagens adicionais podem ser a primeira adição ao cânone feita sem disputa, desde que a colaboração de Shakespeare na peça “Eduardo III” passou a aparecer em edições acadêmicas com suas obras completas.

O teatro elizabetano era intensamente colaborativo, com dramaturgos trabalhando com peças antigas ou se unindo para criar obras novas, à moda dos especialistas em roteiro de Hollywood. As “passagens adicionais”, incluídas ao texto original mais de uma década depois de Thomas Kyd tê-lo escrito, atualizaram a peça sobre uma vingança sangrenta com um pouco de realismo psicológico, à época na moda. Não se sabe se Kyd, morto em 1594, chegou a encontrar Shakespeare pessoalmente.

A hipótese de Shakespeare ter escrito as passagens adicionais — baseada, em parte, pela semelhança entre Hamlet e a cena em que um pai fala sobre a morte do filho — surgiu pela primeira vez em 1833, levantada por Samuel Taylor Coleridge. Mas foi uma posição minoritária entre os pesquisadores durante o século XX. Mesmo depois de as pesquisas passarem a usar as análises por computador para detectar padrões linguísticos sutis.

Pesquisadores falam há tempos das idiossincrasias da caligrafia de Shakespeare, para explicar esquisitices nas primeiras edições de suas peças. Numa delas, de 1604, por exemplo, a mãe de Hamlet, Gertrude, é chamada de Gertrad.

Douglas Bruster era um dos que achava as passagens adicionais mal escritas demais para serem de Shakespeare.

— Uma vez que você percebe que a caligrafia foi responsável pelos erros, deixam de ser versos ruins. Na verdade, é um trecho maravilhoso — diz Bruster.

Achar versos de Shakespeare na peça de outro autor pode não trazer a empolgação da descoberta de um poema inédito do bardo. Mas o artigo de Bruster reflete o interesse acadêmico no autor de “Rei Lear” como um dramaturgo que colaborava com outros artistas — inclusive em peças que não saíram somente de sua própria pena.

— Shakespeare não era um gênio solitário. Ele era um trabalhador do teatro. Se a companhia precisasse de uma peça, ele ia se juntar a outros dramaturgos para escrevê-la — diz Brian Vickers.

Fonte: O Globo

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