Justiça obriga União a transportar órgãos para transplante
A decisão tem caráter liminar e é resultado de uma ação civil proposta pelo Ministério Público Federal (MPF). O pedido ministerial envolveu aspectos mais amplos no que se refere aos meios logísticos para o deslocamento de órgãos e tecidos entre estados. A preocupação do MPF é em relação, principalmente, ao transporte de corações e pulmões que precisam ser transplantados em no máximo quatro e seis horas, respectivamente, para que não percam a validade.
Elaborada pela procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira, a ação partiu de uma investigação iniciada em 2013 para apurar irregularidades na gestão da Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), do Ministério da Saúde. Durante a apuração, foram descobertos problemas nas condições logísticas para o transporte de órgãos como coração e pulmão, quando doador e receptor estão em estados diferentes. A tarefa de viabilizar o deslocamento é de responsabilidade da Central Nacional de Transplantes (CNT), órgão vinculado à Coordenação Geral do SNT. O problema se tornou evidente quando veio à tona o caso do menino Gabriel Langkamer Assis, de 12 anos, que morava no Distrito Federal e morreu enquanto aguardava um transplante de coração.
No dia primeiro de janeiro deste ano, surgiu, na cidade de Pouso Alegre, no Sul de Minas Gerais, um coração compatível para Gabriel. Procurada, a Força Aérea Brasileira (FAB) argumentou que não poderia buscar o órgão. A justificativa? Não havia “missão” militar definida que pudesse atender à solicitação. Duas semanas após a negativa, o menino faleceu, não suportando mais a espera por um coração sadio.
Em decorrência da divulgação desse caso, o MPF aprofundou a apuração sobre as dificuldades logísticas para o transporte de órgãos e tecidos entre as unidades da Federação, alegadas pela própria CNT. A constatação foi que, em relação a coração e pulmão, quase nunca é possível fazer o deslocamento por meio de aeronaves comerciais, “tendo em vista o curto tempo de isquemia (período em que podem ficar sem irrigação sanguínea) dos órgãos” . Por isso, o MPF considera fundamental o auxílio da FAB nesses casos. No entanto, o serviço vem sendo negado de forma sistemática pela FAB, fato que tem impactos em uma constatação preocupante: em 2014, o sistema perdeu 70 corações que haviam sido captados para doação e, em 2015, outros 71 órgãos foram descartados. Em todos os casos, o motivo foi a falta de condições logísticas para que os órgãos doados chegassem aos receptores
De acordo com a Portaria nº 2.600/2009, que regulamenta a lei que trata de transplantes, quando um órgão é captado em um estado, ele deve oferecido, primeiro, a um paciente do próprio estado, de acordo com a classificação na lista única nacional. Caso isso não seja possível, o passo seguinte é ofertar a paciente de outras unidades da federação na mesma macrorregião (sul, sudeste, norte, nordeste e centro-oeste). Se, ainda assim, não houver uma pessoa em condições de receber, o órgão deve ser disponibilizado à CNT, para que possa ser utilizado em outros estados do país. Nesses casos, cabe à CNT apoiar as Centrais de Notificação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) – vinculados às secretarias estaduais – na organização logística da atividade.
Força Aérea Brasileira
Seguindo essa lógica, o MPF verificou que nos casos assumidos pela CNT, normalmente tem se utilizado de uma cooperação técnica firmada entre o Ministério da Saúde, a Secretaria de Aviação Civil, o Comando da Aeronáutica e as companhias aéreas nacionais, por meio da qual as empresas comprometem-se a realizar gratuita e prioritariamente o transporte das equipes de transplante e dos órgãos doados, em seus voos comerciais. Embora a responsabilidade da FAB não esteja citada expressamente no acordo, a atividade vem sendo assumida ao longo dos anos, ainda que de forma inconstante, sobretudo nos casos de transplante de coração e pulmão. Nesse sentido, o MPF constatou que do total de 3.882 transportes de órgãos realizados no ano de 2015, 34 ficaram a cargo da FAB.
No caso do menino Gabriel, a FAB alegou “questões operacionais” para negar o pedido. No entanto, o MPF consultou os registros dos voos da FAB do ano de 2016 e verificou que não houve saída de aviões nos dias 1º ou 2 de janeiro. No período das festas de Réveillon, foi feito, apenas, o transporte do presidente do Supremo Tribunal Federal, nos dias 30/12/2015 e 04/01/2016. “ Enquanto aeronaves da FAB – disponíveis para voo – ficam paradas em solo sem utilidade (ou são utilizadas para deslocamentos não urgentes de autoridades diversas), perdem-se corações , pulmões e VIDAS, porque o Sistema Nacional de Transplantes não tem, no momento, outra alternativa logística de transporte interestadual de órgãos tão sensíveis à sua disposição”, ressaltou a procuradora em um trecho da ação.
Ao mesmo tempo em que a FAB recusa alguns pedidos, também aceita fazer o transporte de órgãos espontaneamente e exclusivamente em outros casos. O MPF cita diversas situações, que inclusive foram noticiadas pela própria Força Aérea , em que o deslocamento de aeronave, pilotos, mecânicos e outras pessoas envolvidas na logística desse transporte foram utilizados exclusivamente para captação de órgãos. Para o Ministério Público, as justificativas apresentadas para as recusas não se sustentam e,por isso, pediu na ação que o comando da aeronáutica seja obrigado a realizar o transporte sempre que não houver outro meio. Apesar de não ter especificado a obrigação da FAB na decisão, o juiz determinou que o serviço deve ser prestado pela União, utilizando os veículos de que dispõe.
Para garantir o cumprimento da legislação referente ao transporte de órgãos entre estados, o Ministério Público, pediu que a Justiça obrigue o Ministério da Saúde a regulamentar e disponibilizar os meios logísticos necessários ao transporte de órgãos, tecidos e partes do corpo humano destinados a transplantes, nas hipóteses de competência da CNT, sempre que doador e receptor estiverem localizados em diferentes estados da Federação. O MPF reforça, em seu pedido, que sejam definidas as competências de cada ente envolvido (Força Aérea Brasileira e demais entes públicos, companhias de aviação civil e/ou táxi aéreo etc), as prioridades de requisição do serviço e as respectivas responsabilidades, em caso de recusa não justificada. A ação civil pública tramita na 4ª Vara Federal em Brasília