“Matar bandido é o que era exigido como bom resultado por meus superiores.” A frase de um policial militar do Rio, que não se identificou, consta no relatório “‘O bom policial tem medo’: Os custos da violência policial no Rio de Janeiro”, da entidade humanitária Human Rights Watch, divulgado nesta quinta-feira. O documento de 117 páginas mostra que os agentes mataram cerca de 8 mil pessoas na última década na cidade, sendo 645 no ano passado. Em 64 casos analisados, a ONG encontrou provas de tentativas de acobertamento das execuções.
Segundo o relatório, quase todos os 64 casos, ocorridos desde 2006, foram relatados como “confrontos” pela polícia. Os laudos e os depoimentos de testemunhas, porém, indicam que esses embates nunca aconteceram, de acordo com a ONG. No total, 116 pessoas foram mortas, sendo 24 com menos de 18 anos.
Um dos casos analisados é o do assassinato de cinco jovens, alvejados pela polícia quando iam lanchar, no dia 28 de novembro do ano passado, em Costa Barros, na Zona Norte do Rio. “Em seus depoimentos à polícia civil, os policiais militares disseram que atiraram no carro onde os jovens se encontravam depois que um deles atirou em sua direção pela janela do carro. Porém, duas testemunhas disseram à polícia civil que viram um dos policiais usando uma luva colocar uma arma na mão de uma das vítimas. Peritos criminais concluíram que não havia resíduo de pólvora nas mãos de nenhum dos cinco rapazes mortos”, analisa o estudo.
O número de homicídios cometidos pela polícia chegou a cair de 1.300, em 2007, para 400 em 2013. Mas os índices voltaram a crescer. Em 2015, para cada policial morto em serviço no Rio, a polícia matou 24,8 pessoas – mais que o dobro do que na África do Sul e três vezes mais do que nos EUA.
Relatos de policiais
Para escrever o relatório, o pesquisador pesquisador espanhol César Muñoz Acebes entrevistou 88 pessoas – 34 deles policiais civis e militares da ativa ou da reserva. Dois agentes admitiram ter participado de execuções e de sessões de tortura, além de terem forjado provas contra as vítimas.
Um PM, identificado como Danilo, disse ter participado de uma operação cujo objetivo era executar traficantes e confiscar armas. Segundo o agente, o índice de violência estava alto na comunidade e a polícia precisava dar uma resposta. O local não foi divulgado. Na ocasião, um policial que estava no grupo executou um traficante que já estava ferido e não oferecia resistência.
“Eu não denunciei por medo até de morrer, porque essas pessoas não têm escrúpulos”, contou o PM à ONG, referindo-se a outros agentes.
O medo de denunciar colegas de farda aparece em outros depoimentos. De acordo com o documento, os agentes dizem que essa imagem negativa da corporação atrapalha o trabalho deles:os criminosos ficam mais violentos quando acham que serão executados e a comunidade para de apoiar as ações policiais.
– Não se pode esperar que o policiamento de proximidade funcione quando a polícia continua a executar membros das comunidades que deveria proteger – disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil.
O estresse gerado por essas situações também tem impacto negativo no trabalho dos agentes que estão nas ruas. Muitos PMs atribuíram o uso excessivo de força letal a uma “cultura de combate” disseminada na corporação e à corrupção dentro dos batalhões.
Recomendações
O relatório afirma que o governo do estado prometeu investir na segurança pública, em preparação para os Jogos Olímpicos, mas não fez o suficiente para acabar com as execuções extrajudiciais cometidas por policiais. Para Muñoz, a principal falha da política de segurança do Rio é não lutar contra a impunidade desses agentes.
– Não estamos pedindo nada extraordinário, apenas investigações adequadas. Mas não adianta culpar apenas a Polícia Civil. A responsabilidade final é do Ministério Público estadual (MP), que está dormindo e precisa acordar. Ele deve desempenhar um papel mais ativo de controle externo da polícia – explicou o pesquisador.
Em entrevista à Human Rights Watch, o Procurador-Geral de Justiça, Marfan Martins Vieira, disse acreditar que grande parte dos confrontos reportados são simulados e admitiu que o Ministério Público apresentou denúncias em “muito poucos” casos.
Entre as recomendações feitas pela ONG, estão o investimento de recursos e apoio técnico para o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp), do MP, para que ele possa fiscalizar as investigações conduzidas pela polícia civil. À PM, a entidade humanitária sugere acoplar câmeras nos coletes de agentes em todo o estado.
Procurada, a PM disse que se posicionará depois de analisar as informações. Em nota, a corporação informou que o Comando da Polícia Militar tem tomado medidas para reduzir os números de autos de resistência, como o Programa de Controle do Uso da Força e Disparo de Armas de Fogo, treinamentos e estágios ministrados pelo Comando de Operações Especiais (COE) e a utilização do Estande Virtual de Tomada de Decisão. Ainda de acordo com a polícia, houve uma redução de 24,12% no número de execuções por policiais no primeiro trimestre de 2016, em relação ao mesmo período de 2015.
A Polícia Civil ainda não se posicionou sobre o estudo. Já o Ministério Público diz que “vem atuando em diversas frentes no intuito de reduzir o número de mortes decorrentes de intervenção policial”:
“O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) vem atuando em diversas frentes no intuito de reduzir o número de mortes decorrentes de intervenção policial e de outros delitos praticados pelos agentes de segurança
Entre 2010 e 2015, período mencionado no relatório do Human Rights Whatch, o MPRJ ofereceu denúncia em 278 dos 988 casos investigados pela polícia nesses seis anos, cabendo ressaltar o aumento significativo de proposituras de ações pelos membros da instituição. Foram 7 denúncias em 2010; 14 em 2011; 34 em 2012; 43 em 2013; 84 em 2014; e 96 em 2015
Relevante iniciativa foi a criação do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP), ocorrida em dezembro de 2015, com a incumbência de auxiliar os órgãos de execução do Ministério Público encarregados do controle externo da atividade policial, da fiscalização do sistema prisional, da tutela de direitos transindividuais relacionadas à segurança pública e da repressão aos homicídios decorrentes de intervenção policial.
Além de outras iniciativas, o grupo vem trabalhando junto às instituições de segurança pública no fomento à capacitação permanente dos policiais militares e civis.
No âmbito da PMERJ, estão sendo ministradas instruções, com a participação semanal de integrantes do GAESP, aos policiais militares inicialmente selecionados para o programa de capacitação, em razão de terem atuado em regiões do estado com altos números de registros de ocorrência com morte. O objetivo do programa é atingir todos os policiais que atuam no policiamento ostensivo.
Em paralelo, o GAESP está trabalhando diretamente com as Áreas Integradas de Segurança Pública, seguindo o mesmo critério de número de mortes decorrentes de intervenção policial, com a finalidade de realizar trabalho preventivo que reduza o número dessas ocorrências.
No campo da repressão, vem prestando auxílio aos órgãos de execução do Ministério Público que apuram as responsabilidades dos agentes públicos envolvidos nas mortes durante conflitos, atuando nos inquéritos policiais através de contato direto com a Polícia Civil”.