O novo clube de Milton Nascimento
É noite de uma terça-feira, última semana de agosto, mas chove como se já fosse janeiro. O aguaceiro deixa muito escorregadio o deque de madeira que dá na entrada da ampla casa do anfitrião, no Itanhangá. Os convidados vão entrando como ensaiados: “Caramba, quase caí!”, “É teste de sobriedade chegar aqui, é?” Íntimos, deixam os guarda-chuvas num canto e vão em direção à sala de estar, no andar de baixo.
— Cadê o Bituqueira? — pergunta o ruivíssimo Dani Black, descendo a escada.
— Blaaaaaaaaaack! — responde Bituqueira, ou Bituca, ou Milton Nascimento, que surge no corredor com um copinho de uísque na mão (é mate, garante) em direção ao abraço do compositor de 25 anos, autor de músicas gravadas por Ney Matogrosso e Zélia Duncan.
Bebe-se vinho, ouvem-se gargalhadas. Em festa de músico ninguém fica preocupado com o som — a coisa se ajeita naturalmente. Quando se encontram na sala, o bandolinista Hamilton de Holanda e o baixista Dudu Lima, que tinham chegado pouco antes de Dani Black, tomam cada um o seu instrumento e começam a dedilhar os acordes iniciais de “Vera Cruz” (se o leitor tiver a música à mão, e aos ouvidos, e quiser colocar antes de continuar a leitura, a gente espera).
Falando alto, com gestos largos e o sorriso característico que lhe fecha os olhos, chega a cantora Maria Gadú.
— Véééi, quase levei um tombo lá fora. Que chuva é essa? — espanta-se ela, o topete meio amarfanhado, antes de dar um abraço dividido em Dani e Bituca (ou Bituqueira, vá lá).
O encontro segue animado: Milton mostra aos amigos uma comenda do Exército que tinha recebido na semana anterior, na cidade de Três Corações, em Minas Gerais, em homenagem à sua obra. Black faz todo mundo rir ao contar que sua mãe, a cantora Tetê Espíndola, tinha tirado nota 79 num karaokê ao cantar “Escrito nas estrelas”, na semana anterior. Hamilton elogia o talento da fadista portuguesa Carminho para Dudu, que não a conhecia, e Gadú comenta que foi convidada pela cantora Anitta para fazer uma versão funkeada do clássico francês “Ne me quitte pas” em seu próximo show. Enquanto isso, Beth Campos, irmã de Milton, chama todos para provarem os sanduíches de rosbife que ela havia preparado para o convescote.
Não é aniversário de nenhum deles, não há uma razão específica para celebrar. É só um homem que gosta de estar entre novos amigos. Com carreiras independentes e poucos trabalhos em comum, cada um conheceu Milton de um jeito. Bituca está sempre na companhia de pelo menos um deles — em gravações, shows, festas. Nessa noite, curiosamente, é a primeira vez que todos os cinco se encontram.
— É o novo clube do Milton — brinca ele, fazendo alusão à mais famosa das suas turmas, que deu origem ao disco-movimento “Clube da Esquina”, de 1972. — Sempre quis conhecer gente nova, trabalhar com gente nova. A juventude me alimenta. São pessoas que chegam e você sente que fazem parte da gente. Isso aconteceu com todo mundo aqui e com tantos outros ao longo da minha vida. Música não tem idade. E a minha casa é para isso. É para a música, para a amizade. Não é para o silêncio nem para a solidão.
Aos 71 anos — e 50 de carreira, celebrados neste mês com o lançamento do CD e DVD “Milton Nascimento: Uma travessia” (Universal)—, Bituca parece ter a mesma idade de seus novos pares quando está entre eles. Chama a casa de shows Studio RJ de Studio RJ (e não de Jazzmania). Anota indicações de vídeos do YouTube que Black lhe passa. Animadíssimo, explica ao jovem a trama do filme “Contatos imediatos do terceiro grau”, como se tivesse acabado de assistir à fita (que ele viu na estreia, em 1977). Faz troça o tempo inteiro, principalmente de Gadú (“Vem cá, desafinada!”). Não há reverências de qualquer parte. Milton está completamente à vontade.
— Não é todo mundo que tem essa generosidade com os jovens músicos. Ele é aberto, já experimentou bastante, ouviu tudo, sabe reconhecer um talento. Muitas vezes, o que ele admira num artista ainda nem está maduro, mas tem essa capacidade de antever. Foi assim com Lô Borges, que tinha 15 anos quando Milton o trouxe para o Clube da Esquina — lembra o saxofonista e compositor Chico Amaral, do Skank, parceiro e amigo de Milton, e agora também uma espécie de biógrafo.
Chico acaba de lançar o livro “A música de Milton Nascimento” (Editora Gomes), em que repassa sua musicografia numa série de entrevistas com ele e com outros nomes que fizeram parte de antigas turmas, como Wagner Tiso, Nelson Ângelo e Tavinho Moura.
— Ele está sempre abraçando pessoas novas. Talvez reconheça nesses jovens o passado semelhante de esforço, de fascínio pela música e dificuldades da profissão. Muita gente ouve um artista novo e já o compara a um Tom Jobim. Isso é um massacre. Ele não. Ele apoia, dá canja, mostra novos caminhos, apresenta uns aos outros — observa Chico, autor de hits como “Garota Nacional” e “Jackie Tequila”, mas que também era um músico iniciante quando foi encorajado por Milton.
Milton sempre andou em turmas. A primeira foi aos 13 anos, quando conheceu Wagner Tiso e juntos formaram o grupo Luar de Prata, que depois virou Milton Nascimento e seu Conjunto, que depois virou W’s Boys. Os dois fizeram sucesso e foram convidados a integrar o famoso Conjunto Holliday, de Belo Horizonte, onde gravaram o primeiro compacto.
Logo Milton e Tiso montaram, com o baterista Paulinho Braga, o Berimbau Trio.
— Desde novo, ele tinha esse traço de mesclar, na música, a experiência com a juventude. Os 50 anos de carreira dele são os meus também, porque começamos juntos, vizinhos de rua. Posso dizer: ele sempre se sentiu jovem e quis se cercar de novidade — reforça Tiso, lembrando que Milton volta à sua terra natal com frequência em busca de talentos.
A turma mais famosa, no entanto, foi a que gerou o emblemático álbum “Clube da Esquina”. Quando saiu de Três Pontas para morar definitivamente em Belo Horizonte, aos 21 anos, isso em 1963, Milton foi parar num edifício onde conheceu a família Borges. Eram 11 irmãos, entre eles, Marilton, Márcio e Lô. Aos jovens que compunham pelas esquinas, juntaram-se depois os vizinhos Tavinho Moura, Flávio Venturini, Beto Guedes, Fernando Brant e Ronaldo Bastos. O disco do grupo foi gravado em 1972 — e a música popular brasileira nunca mais foi a mesma.
— Tenho muita sorte. É assim, até hoje, que vão chegando as pessoas novas na minha vida. Chegando, chegando, e ficando — diz Milton, que, não por acaso, tem 136 afilhados de batismo.
Dos músicos que o acompanharam ao longo da carreira, muitos viraram amigos, que, recombinados, foram se transformando em novas turmas. Em 1976, durante a turnê do álbum “Geraes”, ficou muito próximo a dois deles: Paulo Jobim, filho de Tom, e Paulinho Braga, que já conhecia desde o Berimbau Trio.
— Eu já o conhecia da época dos festivais, de quando ele ia lá em casa ensaiar com meu pai. Até que fui tocar flauta com ele. Larguei o escritório de arquitetura em que trabalhava e saímos em excursão pelo Brasil. Eu tinha 26 anos, e foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. O palco tremia, era uma banda muito poderosa. O Milton é muito poderoso. Vira e mexe a gente se encontra na casa dele e sai coisa boa. Em 78, foi o “Clube da Esquina 2”. Em 2007, o “Novas bossas”, com o Jobim Trio (formado por Paulinho Braga, Paulo Jobim e o filho, Daniel) — comenta Paulo Jobim, que acabou de digitalizar o acervo iconográfico e audiovisual de Milton, disponível no site do Instituto Tom Jobim (www.jobim.org).
Para reunir tantas turmas, a casa de Milton sempre aparece nas conversas como o ponto de encontro principal.
— Lembro de uma vez em que Milton alugou uma casa em Búzios, fez uma festa, e tinha uma americana tocando um baixo que me deixou impressionado. Ela era muito boa mesmo. Uma semana depois, ganhou um Grammy. Eu reconheci a foto no jornal: “Era aquela menina que estava tocando na casa do Milton!” Era a Esperanza Spalding — recorda Paulo. — Ele vê uma turma nova, se empolga, faz festas, junta todo mundo. Desde o Clube da Esquina tem sido assim.
Entra e sai de amigos
E foi do mesmo modo com artistas de toda parte, como Naná Vasconcelos, Cássia Eller, Maria Rita, Marina Machado, Simone Guimarães (com as três últimas, gravou o disco “Pietá”, em 2003). Com Tadeu Franco, Celso Adolfo, Elder Costa. E assim agora, com Hamilton de Holanda, Dudu Lima, Maria Gadú e Dani Black.
— Uma coisa que me marcou muito na primeira vez que eu vim aqui foi o repertório. Tinha um show da Marina Machado (atrás da sala da casa, há uma espécie de anfiteatro ao ar livre, onde os amigos de Milton participam de jam-sessions). Ouvi Chico, Jacob do Bandolim, me senti em casa — lembra Hamilton, que até Páscoa já passou no Itanhangá.
Hamilton ele conheceu em Brasília, quando o bandolinista foi participar de um show seu (e tocou “tudo errado”, brinca Milton). Viraram amigos e parceiros musicais, e vão lançar um disco juntos em breve. Dudu Lima ele conheceu quando foi a um show de Stanley Jordan em Juiz de Fora (“quase caí duro”, palavras dele, quando o ouviu tocar). O acaso os reuniu nos mesmos projetos musicais (como o de foco ambiental “Tamarear”, do Projeto Tamar) — e agora, toda vez que passa pelo Rio, o juiz-forano cai na casa do amigo.
— Sempre havia Milton Nascimento nos repertórios de todos os trabalhos que fiz. Acho que sou o músico mais indicado para criar o “Milton Nascimento cover” — diverte-se Dudu.
Já Gadú, Bituca conheceu por acaso, em fevereiro de 2009, quando foi a um show no extinto Cinemathèque, em Botafogo, convidado por um amigo, “para ouvir uma cantora nova”.
— Apaixonei-me — limita-se Milton, abraçando a moça, num dos poucos silêncios que acontecem na sala.
Foi ela, depois, quem trouxe a rebote o amigo Dani Black, cujas composições têm sido bastante elogiadas e estimuladas por Milton.
— A primeira vez que eu ouvi o Milton foi com a minha mãe cantando “Cio da Terra”. Tem uma gravação emocionante com a Clementina de Jesus. A música do Milton sempre foi a música da minha casa — conta Dani.
Gadú tenta buscar alguma razão na conexão emocional que tem com o amigo, com quem já dividiu o palco diversas vezes desde que se conheceram. E também passa por “Cio da Terra”:
— Minha avó tinha um disco do Pena Branca e Xavantinho e eu sempre encasquetei com esta faixa, que o Milton canta no disco. É um mantra, um cântico. Fui assistir ao show deles, só os dois, já na cadeira de rodas, mas fiquei muito decepcionada. Eu tinha 7 anos, e falei para minha avó: “Tá errado.” Não era como a gravação do disco. Eu já tinha uma saudade do Bituca e nem sabia.
Dani Black puxa o “Debulhar o trigo…” de “Cio da Terra”, tendo Milton como uma luxuosa segunda voz. Hamilton serve nova rodada de vinho. A noite está só começando.
Fonte: O Globo