Da “menina dos olhos” de Adolf Hitler restaram apenas ruínas.
Uma quadra exterior com pista de corrida e prédios depredados ao longo de seus 80 anos são o legado da primeira Vila Olímpica permanente da história dos Jogos modernos.
O espaço em Wustermark, nos arredores de Berlim, hospedou cerca de 4 mil esportistas e técnicos de 50 países para a Olimpíada de 1936, no auge do regime nazista.
Para a sua construção, não foram medidos esforços nem recursos. O complexo foi planejado para fazer parte do esforço de propaganda da Alemanha nazista, e a capital alemã se preparou para ser uma vitrine do Terceiro Reich e projetar os ideias nazistas de superioridade ariana.
Só que, inesperadamente, foram atletas negros americanos que se sobressaíram na competição.
A grande estrela foi o corredor Jesse Owens, que ganhou quatro medalhas de ouro: nas provas de 100 m, 200 m, revezamento 4×100 m e salto em distância. Cornelius Johnson, outro americano negro, conquistou ouro no salto em altura, e Hitler deixou o estádio para não ter de cumprimentar o atleta.
Ambos os atletas americanos ficaram hospedados na Vila Olímpica, que apesar de ser batizado de Vila da Paz, se tornaria um moderno complexo militar após a partida dos atletas.
A ideia de erguer a vila para abrigar todos os atletas, entretanto, não partiu do governo alemão. Desde a década de 1920, o Comitê Olímpico Internacional recomendava que os países-sede encontrassem alternativas econômicas para hospedar as delegações, evitando a ocupação total dos hotéis da região.
“Na Alemanha, até meados de 1933 a ideia era usar algum quartel existente para abrigar os participantes do evento. No entanto, recursos foram liberados para a construção do complexo militar próximo a Berlim. Dessa maneira, o governo aproveitou essa oportunidade para transformar o local inicialmente na Vila Olímpica”, explica o historiador Emanuel Hübner.
Concertos no café da manhã
Construído em um terreno de 550 mil metros quadrados, o complexo possuía 141 dormitórios – que tinham entre 8 e 13 quartos duplos -, uma quadra esportiva do mesmo tamanho da existente no Estádio Olímpico, piscina coberta, ginásio, restaurante, teatro, pequenas salas para treinamento de luta e pontos de encontro com bancos em áreas verdes.
Havia ainda uma imponente recepção e um lago artificial, onde foi montada uma sauna seca.
“O grande destaque do complexo na época era a sauna finlandesa”, conta o guia local Bernd Redder.
Ele lembra que a vila também tinha um então moderno sistema de telefonia (cada dormitório possuía um telefone com moeda, no qual era possível fazer ligações internacionais) e um serviço de concierges para atender às necessidades dos visitantes – eram dois para cada ala, que falavam o idioma dos hóspedes.
Havia ainda uma programação cultural variada, com direito a concertos no café da manhã, almoço e jantar, além da apresentação de filmes e peças de teatro.
Propaganda
Mas nem todos os participantes dos Jogos de 1936 ficaram ali. No decorrer dos dois anos de construção do espaço, desenhado para receber cerca de 4 mil pessoas, o número de atletas inscritos chegou a 4,8 mil.
Assim, quase mil esportistas, entre eles todas as mulheres que competiram em Berlim, foram hospedados em outros locais.
“Os dormitórios eram considerados muito simples para abrigar as mulheres. Por isso, elas foram alojadas em uma moradia estudantil localizada quase ao lado do Estádio Olímpico”, afirma Hübner, lembrando que homens e mulheres passaram a dividir o mesmo alojamento somente a partir da década de 1990.
A Vila Olímpica cumpriu todas as expectativas: mostrou ao Comitê Olímpico Internacional que era possível abrigar os atletas com baixos custos e levou ao mundo a imagem de uma Alemanha pacífica e aberta – os visitantes foram embora impressionados com a hospitalidade do país sede.
“Os Jogos Olímpicos de 1936 e a vila foram objetos de propaganda internacional para a imagem do regime nazista”, explica o historiador.
O complexo serviu ainda de modelo para o alojamento que deveria ser construído no Japão para o evento de 1940 – uma Olimpíada que acabou não ocorrendo por causa da Segunda Guerra Mundial.
O fim da Olimpíada, porém, foi marcado por um evento trágico: três dias após o encerramento, o corpo do oficial da Wehrmacht [forças armadas alemãs durante o Terceiro Reich] responsável pela construção do complexo foi encontrado morto junto ao lago.
Wolfgang Fürstner, que meses antes havia perdido o posto de diretor do espaço por denúncias de que teria sangue judeu, se suicidou no local.
Reforma e decadência
Com a saída dos últimos atletas, no início de setembro, a Vila Olímpica foi ocupada pelos militares, como era planejado.
Isso envolveu uma série de transformações. A piscina, o ginásio e a quadra foram preservados para o treinamento dos soldados, o prédio do teatro virou uma escola militar e o restaurante foi reformado para se tornar um dos hospitais mais modernos da época.
O complexo foi utilizado pelos nazistas até o fim da guerra, quando acabou ocupado pelo Exército soviético. Sob seu aval, a população utilizou o material de construção disponível ali para reconstruir suas casas, e os dormitórios não usados pelos militares foram demolidos.
Na década de 1960, o espaço voltou a receber atletas ao tornar-se um centro de treinamento de um clube militar soviético. Nos anos 1980, foram erguidos três prédios habitacionais típicos da União Soviética, conhecidos na Alemanha como Plattenbau, para abrigar oficiais e famílias de militares transferidos para a região.
Detalhes da ocupação da antiga Vila Olímpica durante a Guerra Fria ainda são um mistério.
“Infelizmente não temos muitas informações sobre como os militares soviéticos utilizaram o complexo, pois até hoje os arquivos são confidenciais”, explica Hübner.
Saques e depredações
Com o fim da União Soviética, em 1992, o complexo foi devolvido ao Estado de Brandemburgo.
Declarado patrimônio histórico no ano seguinte, o local ficou praticamente abandonado e se tornou alvo de saques e depredações.
A piscina que funcionava até o início da década 1990, por exemplo, virou uma ruína após um incêndio destruir o seu telhado em 1993.
Em 2005, a Fundação DKB, ligada ao banco de mesmo nome, comprou o espaço e o transformou em um museu a céu aberto. O teto da piscina e dois antigos dormitórios foram restaurados, e o projeto é que a antiga Vila Olímpica volte a ser habitada.
“Será transformada em um novo bairro nos próximos dez anos”, conta Barbara Eisenhuth, responsável pelo projeto na fundação DKB.
Parceria com a prefeitura de Wustermark, o plano prevê a restauração do antigo restaurante, que deve receber apartamentos.