40 anos do golpe no Chile – Fidel Castro: amigo ou muy amigo de Allende?
Em novembro de 1971, dois anos antes do golpe militar no Chile, um avião soviético Ilyushin pousava no aeroporto de Santiago trazendo um visitante ilustre: o líder cubano Fidel Castro. Convidado pelo presidente Salvador Allende, Fidel chegava para uma visita oficial de 10 dias. Por conta própria, estenderia a temporada chilena para 24 dias, percorreria todo o país e acabaria se tornando um embaraço ao anfitrião por se intrometer na política local e fazer críticas ao modelo de socialismo pregado por Allende.
O chileno tinha então 63 anos; o cubano estava, aos 45, no auge do vigor político. Era a primeira viagem do revolucionário cubano ao exterior em sete anos. Foi a mais extensa e polêmica estadia de um chefe de Estado na história do Chile, antes de qualquer coisa pelo inédito e ostensivo aparato de segurança. Enquanto Fidel percorria as avenidas da capital em carro aberto ao lado de Allende, dezenas de policiais e agentes seguiam atrás em outros veículos, com a porta aberta e revólveres em punho.
A rigor, a visita tinha a intenção de alavancar a popularidade de Allende, abalada pela crise econômica e pelo desabastecimento que já se avizinhava. Fidel vinha também com a missão de tentar unir a esquerda local, o que não conseguiu. Pelo contrário: suas críticas causaram desconforto em vários setores da Unidade Popular, a coalizão partidária de esquerda que elegeu Allende. E os custos da visita se mostrariam altos.
Há quem defenda que a estadia prolongada de Fidel e os ataques aos “fascistas”, como se referia à oposição chilena, tenham aprofundado a radicalização da extrema-esquerda e dos estudantes e também a polarização no país que, em última instância, levaria ao golpe em 1973. Foi durante a visita do cubano que aconteceu o primeiro dos muitos cacerolazos (panelaços) da classe média contra o governo Allende. Em 1º de dezembro de 1971, 5 mil donas-de-casa de classe média e alta foram às ruas contra o desabastecimento e contra a presença de Fidel. “Fidel na caçarola, temperado com cebola”, bradavam.
Não há dúvidas que Salvador Allende e Fidel Castro tinham visões opostas de revolução. A concepção de Allende sempre foi a de construir o socialismo pela via pacífica. Em 1967, Fidel duvidara publicamente dessa possibilidade, e chegou a chamar de mentirosos os que pregavam o socialismo sem luta armada.
“Os que afirmam, em algum lugar da América Latina, que vão chegar pacificamente ao poder estão enganando as massas”, discursou o líder cubano na conferência da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade). Aparentemente, porém, havia se rendido ao modelo chileno com a vitória de Allende, em 1970. Mas, em território chileno, teve a ousadia de denominar de “processo revolucionário insólito” o que o presidente via como uma revolução pelas urnas.
Na entrevista que fez aos dois líderes durante a visita, o jornalista Augusto Olivares, que se mataria junto com o presidente Allende no Palácio de La Moneda naquele fatídico 11 de setembro, retrata uma conversa relaxada entre dois amigos. Mas, mesmo naquele bate-papo descontraído, saltam aos olhos as diferenças de pensamento dos dois líderes de esquerda. Um Salvador Allende de voz pausada, tranquilo, fala do crescimento da esquerda dentro da legalidade e da pluralidade partidária. Fidel, mais incisivo, insistia com a luta armada e o partido único. Allende, por sinal, não admitia uma só receita para chegar ao socialismo.
No ano passado, a TV pública argentina exibiu o documentário El Diálogo de América, de Alvaro Covacevich, que documentou a conversa entre Fidel e Allende:
O papel que desempenharam os jornais chilenos durante a visita foi, como era esperado, o pior possível: demonizando e satirizando Fidel –até de homossexual o comunista foi chamado. A população, que havia ido às ruas em massa para receber o líder cubano (falou-se em 1 milhão de pessoas) aos gritos de “Fidel, amigo, o povo está contigo!”, deu mostras de cansaço na despedida. Apenas 30 mil compareceram ao estádio nacional para ouvir Fidel falar pela última vez.
Em seu discurso de despedida, o cubano insinuou que o governo Allende deveria partir para a via armada contra a burguesia. “O fascismo trata de avançar e ganhar terreno nas camadas médias e tomar as ruas”, advertiu. “Regressarei a Cuba mais radical do que vim, mais extremista do que vim”. Nos anos seguintes, com o aprofundamento da crise no Chile, ofereceria diversas vezes a ajuda dos revolucionários cubanos. “Mil homens bem treinados poderiam decidir a situação em Santiago”, escreveu Fidel ao amigo. Allende não quis. Após sua morte, em um discurso de homenagem, Fidel faria questão de mostrar que era a sua a posturacorreta: ”Os revolucionários chilenos sabem que já não há nenhuma outra alternativa a não ser a luta armada revolucionária”.
Aos olhos de hoje, pode-se dizer que a chegada do cubano foi no mínimo inoportuna, porque Allende começava, naquele momento, a enfrentar a reação da direita às suas reformas, e a presença de Fidel por quase um mês representou uma provocação desnecessária, fora de hora. Também colaborou para acentuar a divisão entre os chilenos e os temores de que o governo Allende estava tomando os rumos de Cuba. Para os que cuidavam de implantar a paranóia comunista na população, foi um prato cheio.
A 40 anos do golpe que derrubou Allende, a viagem de Fidel ao Chile suscita algumas perguntas sem resposta. O que teria acontecido se Fidel não tivesse ido ao Chile naquele ano? Teria Allende encontrado o caminho da união nacional em torno do seu projeto? A presença de Fidel acendeu um barril de pólvora ou o que fez apenas foi enxergar antes, ao falar repetidas vezes em “fascismo”, que estava prestes a explodir? Allende errou por convidá-lo ou errou por insistir na via pacífica, recusando a ajuda armada que Fidel lhe oferecia? Talvez, naquele momento, tenha faltado, a ambos, cautela?
Mais importante: será que não é mesmo possível, como acreditava Fidel, chegar ao socialismo pela via pacífica, como sonhou Allende? Ou será que, de certa forma, Fidel atrapalhou o projeto de Allende?
Fonte: Carta Capital