Há alguns anos, Anna Katharina Schaffner foi vítima dessa estafa “epidêmica”. Começou com uma certa inércia mental e física – um “senso de peso” em tudo o que fazia, como ela define. Até as tarefas mais simples drenavam sua energia, e concentrar-se no trabalho era cada vez mais difícil.
Mesmo quando tentava relaxar, ela se pegava checando e-mails obsessivamente, como se o alívio de suas tensões fosse chegar a qualquer momento pela caixa de entrada. E com o cansaço vinha um senso de desânimo emocional. “Estava desanimada, desiludida e sem esperança.”
Tais sentimentos serão familiares a muitos outros, do papa Bento 16 a Mariah Carey, que já tiveram diagnósticos de exaustão.
Se acreditarmos em relatos na imprensa, trata-se de uma doença moderna; toda vez que Schaffner ligava a TV, via um debate sobre os problemas que enfrentamos na cultura da instantaneidade.
“Todos os comentaristas citavam nossa época como a mais terrível – o apocalipse absoluto para nossas reservas de energia”, diz ela.
Mas será que isso é verdade? Ou nossos períodos de letargia e desmotivação são partes inevitáveis da vida, como resfriados e dores de barriga?
Crítica literária e historiadora da Medicina na Universidade de Kent, no Reino Unido, Schaffner decidiu passer essa história a limpo.
O resultado é seu novo livro Exaustion, A History (Exaustão, Uma História, em tradução livre), um estudo fascinante dos modos como médicos e filósofos entenderam os limites da mente humana, do corpo e da energia.
Não há dúvida de que a exaustão ocupacional é uma preocupação recorrente hoje, com relatos alarmantes vindos de setores que demandam muito emocionalmente do profissional, como a saúde.
Investigações
Um estudo de médicos alemães mostrou que quase 50% dos médicos consultados aparentavam sofrer do chamado burnout, um distúrbio psíquico de caráter depressivo ligado ao contexto ocupacional. Relatavam sentir cansaço o dia inteiro e que apenas pensar em trabalho já motivava uma sensação de esgotamento.
Algo interessante é que homens e mulheres parecem lidar com esse esgotamento de maneiras diferentes: uma pesquisa finlandesa recente apontou que funcionários homens relatando exaustão tinham maior probabilidade de tirar licenças médicas do que mulheres na mesma situação, por exemplo.
Dado que a depressão também tende a envolver letargia e desmotivação, alguns afirmam que o burnout é apenas uma definição “sem estigma” para a mesma condição.
Em seu livro, Schaffner cita um artigo em um jornal alemão que classificava o burnoutcomo uma “versão de luxo” da depressão para profissionais de ponta. “Só perdedores entram em depressão”, dizia o artigo. “Burnout é um diagnóstico para vencedores, ou, mais especificamente, para ex-vencedores.”
Em geral, porém, as duas condições geralmente são consideradas distintas. “Teóricos costumam concordar que a depressão envolve uma perda de autoconfiança, ou até ódio a si mesmo e autodesprezo, o que não é o caso noburnout, onde a imagem de si permanence intacta”, diz Schaffner.
“O ódio no burnout geralmente não se volta contra si, porém mais contra a organização para a qual a pessoa trabalha, ou contra o sistema sociopolítico ou econômico mais amplo.”
O burnout também não deve ser confundido com a síndrome da fadiga crônica, que envolve longos e dolorosos períodos de exaustão física e mental, de ao menos seis meses, com muitos pacientes descrevendo dor física nas menores atividades.
Segundo um argumento, nossos cérebros são simplesmente mal desenvolvidos para lidar com o ambiente moderno de trabalho. A ênfase crescente em produtividade – e a necessidade emocional de se mostrar competente por meio do trabalho – deixa os trabalhadores em um estado permanente de “bater ou correr”.
Esse estado originalmente evoluiu para lidar com situações de perigo extremo. Mas se enfrentamos esse tipo de situação dia sim, dia não, encaramos um pico constante de hormônios do estresse – uma avalanche que nossos corpos lutam continuamente para enfrentar.
E mais: para muitos, essa pressão não acaba no trabalho. Cidades (e dispositvos tecnológicos) estão sempre pulsando com vida, e essa cultura de “24 horas no ar” pode dificultar o ato de descansar a qualquer hora do dia ou da noite. Sem chances de recarregar nossos corpos e mentes, nossas baterias estão funcionando sempre em níveis perigosamente baixos.
Essa é, ao menos, a teoria.
Exaustão na história
Quando Schaffner explorou a história, no entanto, ela descobriu que pessoas sofriam de fadiga extrema muito antes do surgimento do ambiente coupacional moderno. Uma das discussões mais antigas sobre o tema foi escrita pelo médico romano Galen.
Como Hipócrates, ele acreditava que todas as doenças físicas e mentais poderiam ser associadas ao balanço relativo de quatro humores do organismo – sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma.
Um aumento na bílis negra, dizia ele, desacelerava a circulação e congestionava os caminhos do cérebro, trazendo letargia, desânimo, torpor e melancolia.
Embora saibamos hoje que essas afirmações não tinham base científica, a ideia de cérebros cheios de um líquido viscoso certamente captura o estado de pensamento embaçado que pacientes com exaustão descrevem hoje.
Na época em que o cristianismo dominou a cultura ocidental, a exaustão era vista como sinal de fraqueza espiritual. Schaffner destaca os escritos de Evagrius Ponticus no século 4, que descrevia o “demônio do meio-dia”, algo que poderia explicar o olhar perdido de um monge pela janela.
“Era algo muito visto como falta de fé e de vontade – o espírito contra a carne”, afirma Schaffner. Ela diz que um monge relatou como buscava jogar conversa fora com outros irmãos de forma compulsiva e agitada, em vez de se engajar em tarefas produtivas -, mais ou menos do mesmo jeito frenético como as pessoas checam hoje as redes sociais.
Explicações religiosas e astrológicas continuaram a pipocar até o nascimento da medicina moderna, quando médicos começaram a diagnosticar sintomas de fadiga como “neurastenia”.
Médicos sabiam que os nervos transmitiam sinais elétricos, e acreditavam que alguém com nervos fracos poderia dissipar energia como um fio desencapado.
Intelectuais como os escritores Oscar Wilde, Thomas Mann e Virginia Woolf e o biólogo Charles Darwin foram todos diagnosticados com neurastenia.
Médicos culparam as mudanças da Revolução Industrial, embora nervos sensíveis também fossem vistos como sinais de refinamento e inteligência – alguns pacientes até se gabavam da condição.
Apesar de o diagnóstico de neurastenia estar em desuso hoje no mundo, o termo ainda é usado por médicos na China e no Japão – novamente com a alegação eventual de que seja apenas um outro jeito de mencionar a depressão.
Claramente, muitas pessoas ao longo da história se sentiram cansadas como nós, o que sugere que fadiga e exaustão sejam apenas parte da natureza humana. “A exaustão sempre esteve entre nós”, afirma Schaffner.
“O que muda na história são as causas e efeitos associados à exaustão.” Na Idade Média era o “demônio do meio-dia”, e nos anos 1970 era o avanço do “capitalismo selvagem” explorando seus funcionários.
Origem do esgotamento
Na verdade, ainda não sabemos o que nos dá aquele sentimento de “energia” e como ela pode se dissipar de forma tão rápida sem esforço físico. Não sabemos se os sintomas nascem no corpo ou na mente, se são reflexo da sociedade ou do nosso próprio comportamento.
Talvez a verdade seja um pouco de cada coisa: o avanço do conhecimento sobre as conexões entre mente e corpo mostra que nossos sentimentos e crenças podem ter uma influência profunda sobre o funcionamento do organismo.
Sabemos que o sofrimento emocional pode aumentar inflamações e exacerbar a dor – e em alguns casos pode até causar convulsões e cegueira.
“É difícil dizer se uma doença é puramente física ou puramente mental, porque na maioria das vezes se trata das duas coisas ao mesmo tempo”, diz Schaffner. Nesse sentido, não é surpresa que nosso cotidiano possa obscurecer nossa mente e quase paralisar o corpo com letargia.
E isso não significa que os sintomas sejam imaginários ou invenção – eles podem ser tão “reais” como a febre que acompanha os fortes resfriados.
Schaffner não nega o estresse da vida moderna. Ela diz acreditar que isso venha, em parte, da nossa maior autonomia, desde que mais e mais empregos nos deram liberdade para gerenciar nossas próprias atividades.
Sem limites claramente definidos, muitas pessoas exigem demais de si mesmas. “Isso se manifesta principalmente na ansiedade da performance, um senso de não ser bom o suficiente e de não fazer jus às expectativas”, diz a pesquisadora.
Ela também concorda que e-mails e redes sociais podem drenar nossas energias. “De muitas maneiras, tecnologias que foram feitas para economizar energia se tornaram fatores de estresse”, afirma. Hoje é mais difícil do que nunca deixar o trabalho no escritório.
Se a história nos ensinou algo, é o fato de que não há cura para esse mal. No passado, pacientes com neurastenia podem ter sido orientados a descansar na cama – mas o tédio acabava aumentando o sofrimento.
Hoje, pessoas que sofrem de burnout podem receber terapia cognitiva comportamental para ajudá-las a lidar com a exaustão emocional e encontrar meios de recarregar.
“As curas para a exaustão dependem da pessoa. Você tem que saber o que tira e o que te dá energia”, afirma Schaffner. Algumas pessoas podem precisar de estímulos como esportes radicais, enquanto outras podem preferir ler um livro.
“O importante é delimitar as fronteiras entre trabalho e lazer”, diz ela. “Tais fronteiras certamente estão sob ameaça.”
A própria Schaffner descobriu que o maior conhecimento sobre o assunto a ajudou a lidar com os altos e baixos em seus níveis de energia. “Pesquisar e escrever sobre exaustão foi, paradoxalmente, muito energizante.”
“Sou apaixonada pelo tema, e também adorei ler sobre pessoas com experiências semelhantes em diferentes períodos históricos. É muito reconfortante saber que não somos os únicos a nos sentir daquela maneira, e que outros sentiram o mesmo – embora em circunstâncias diferentes.”