Desde 1993, uma onda de assassinatos brutais de mulheres, seguida da exposição de seus corpos pelas ruas de Ciudad Juárez – muitas vezes sem os seios e os olhos -, toma conta desta cidade no estado de Chihuahua, no norte do México, localizada na fronteira com os Estados Unidos.
Em quase todos os casos, não se encontram os criminosos, e, por não saberem a quem atribuir os crimes, os jornais os noticiam como “as mortas de Juárez”. As mortes são retratadas apenas como homicídios simples.
Em 1998, a antropóloga da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM), Marcela Lagarde y de Los Ríos, usou pela primeira vez na América Latina o termo “feminicídio” para descrever esses assassinato em Ciudad Juárez.
Lagarde estudou a série de mortes na cidade como um fenômeno social e identificou semelhanças entre os casos: eles começavam com um cativeiro prolongado, em que a vítima sofria sadismo sexual, mutilação e morria por asfixia. Em seguida, seus corpos eram abandonados em espaços públicos.
Para a pesquisadora, a importância de chamar os casos de feminicídio era evidenciar que não se tratavam somente de um homicídios simples, mas de crimes de ódio extremo e específico contra mulheres.
A nomenclatura foi cunhada em 1992 pela pesquisadora feminista sul-africana Diana Russell. Mas, na época, não se popularizou nas demais regiões do mundo.
Em 2003, Lagarde foi eleita deputada federal no México e criou a Comissão Especial do Feminicídio para investigar os crimes contra mulheres em Ciudad Juárez, tornando o termo “feminicidio” conhecido em todo o país.
Com base nos estudos da comissão, a antropóloga concluiu que, apesar dos assassinatos em Ciudad Juárez terem características próprias do contexto social local – uma região localizada na fronteira com Estado do Texas onde vivem estrangeiros ilegais de muitos países e há uma disputa constante por poder entre latifundiários e cartéis de drogas – o feminicídio acontece em todo o México e outros países da América Latina.
Ao concluir que o crime era uma característica de como a violência de gênero ocorre no México, Lagarde propôs a criação da Lei do Feminicídio no país em 2007.
A divulgação dos casos de violência em série contra mulheres em Ciudad Juárez gerou a princípio uma preocupação regional. Meses após a experiência mexicana, Costa Rica, Guatemala e Colômbia criaram suas versões da lei mexicana.
Atualmente, 16 países latinos tipificam o feminicídio: Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Peru, República Dominicana e Venezuela. O Brasil foi o último a fazê-lo, em 9 de março de 2015.
A legislação latina mais dura é a mexicana, com prisão de 40 a 60 anos. Já se levada em conta apenas a América do Sul, é a colombiana, com pena de 33 a 50 anos.
No Brasil, assim como ocorre com estupro, genocídio e latrocínio, o feminicídio é um crime hediondo, e a pena varia entre 12 e 30 anos de prisão.
Dar nome ao problema
Por causa da impunidade das mortes e desaparecimentos em Ciudad Juárez, há anos sem solução, entidades mexicanas afirmam que é difícil fazer uma estimativa exata do problema na cidade.
As estatísticas anteriores aos anos 2000 são ainda mais difíceis de serem levantadas, pois não se usava então o termo para diferenciar o homicídio simples do crime de ódio contra mulheres.
O Observatório Cidadão Nacional do Feminicídio (OCNF) estima que mais de 1 mil mulheres foram mortas desde 2008 em Ciudad Juárez. Já a Promotoria Especializada em Investigação e Perseguição de Crimes Zona Norte diz que, de 1993 a 2013, cerca de 1.818 mulheres desapareceram.
Os crimes em Juárez têm aumentado desde 2008, quando o ex-presidente Felipe Calderón (2006-2012) instaurou uma política de guerra ao narcotráfico.
O mesmo ocorreu no Brasil. Crimes famosos contra a vida de mulheres, como o caso da advogada Mércia Nakashima e da estudante Eloá Pimentel, assim como o desaparecimento da modelo Eliza Samudio, foram tratados como assassinatos por terem sido anteriores à Lei do Feminicídio no país.
Assim como no México, as estatísticas brasileiras são elevadas: entre 1980 e 2013, foram assassinadas cerca de nove mulheres por dia no Brasil, ou 106.093 mulheres em três décadas. Se considerado o período entre 2003 e 2013, houve um aumento de 252% nos assassinatos de mulheres no país em comparação com as duas décadas anteriores.
A palavra teria sido usada pela primeira vez no Brasilem 2008, segundo os registros do mecanismo de busca do Google, pouco menos de um ano após a criação da Lei do Feminicídio no México.
Em março de 2015, mês em que foi promulgada a Lei do Feminicídio do Brasil, pela então presidente Dilma Rousseff, a palavra alcançou seu pico de uso na internet do país, segundo o buscador.
Professora do departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Lourdes Maria Bandeira explica que a palavra é um neologismo que diferencia os assassinatos de mulheres cometidos por homens pelo fato da vítima ser do sexo feminino.
“Trata-se do assassinato de mulher no contexto da violência intrafamiliar, pela sua condição de ser mulher, cujas motivações mais comuns são o ódio, a misoginia, o desprezo, o sentimento de perda da propriedade masculina sobre a mulher (seu corpo e sua mente), em uma sociedade patriarcal e sexista demarcada pelas desigualdades de gênero e raciais”, explica Bandeira.
A importância de haver um nome e uma lei específicos para o assassinato de mulheres motivados por seu gênero, segundo a diretora do Instituto Patrícia Galvão, Marisa Sanematsu, é dar visibilidade ao problema e exigir a atenção do poder público.
“Esses assassinatos devem deixar de ser assunto só para os movimentos de mulheres e pesquisas acadêmicas e demandar políticas públicas para enfrentá-lo”, explica Sanematsu.
O conceito de feminicídio a partir da experiência do México
Apesar de haver diferentes definições sobre o que é este crime segundo o texto de cada legislação nacional, todos os países latinos consideram o feminicídio um assassinato de mulheres causado por violência máxima exercida contra as vítimas por seu gênero.
No México, segundo o OCNF, o termo representa o “assassinato violento de mulheres cometido por misoginia, discriminação e ódio contra este gênero, em que familiares ou desconhecidos realizam atos de extrema violência brutalidade sobre os corpos das vítimas, em um contexto de permissividade do Estado que, por ação ou omissão, não cumpre com sua responsabilidade a vida e a segurança das mulheres”.
Desde que o termo foi adotado pelas leis de vários países latinos, estatísticas de órgãos internacionais têm separado os homicídios simples dos casos de feminicídio. A preocupação atual destes órgãos são os países em que este crime mais ocorre.
Sanematsu explica que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil só fica atrás de El Salvador, Colômbia e Guatemala entre os países com o maior número de feminicídios na América Latina.
“Mas é preciso dizer também que a qualidade das estatísticas está frequentemente relacionada à importância que os governos dão para o problema”, esclarece a diretora. “Em outras palavras, números baixos nem sempre refletem a real dimensão do problema em um país”.
Para Bandeira, outro problema sobre o tema na região é a existência de interpretações equivocadas. Segundo a socióloga, os casos mais comuns são quando envolvem assassinos em série, psicóticos e loucos.
“Estes crimes são consequências de um sistema de exclusão, mas as autoridades apontam somente como causa problemas educacionais, drogas e desagregação e omitem que os agressores são sempre homens e as vítimas, meninas e mulheres”, pontua.
A socióloga avalia ainda ser cedo para fazer avaliação dos efeitos ou funcionamento das leis de feminicídio na América Latina, principalmente no Brasil, onde ela está há apenas um ano em vigor.
Brasil e México: uma tragédia em comum
As diferentes interpretações sobre feminicídio entre países se dão porque esses crimes estão geralmente associados a cada contexto político e social.
Segundo Sanematsu, “nas regiões onde o Estado não está presente ou tem relações promíscuas com o tráfico, como é o caso de Ciudad Juárez, por exemplo, as mulheres ficam ainda mais vulneráveis à violência”.
Ela afirma que, toda vez que os ambientes doméstico e familiar reforçam as desigualdades de gênero entre pais, mães e filhos, estes se tornam lugares propícios para o feminicídio.
Por isso, de acordo com ela, esta é uma morte característica dos países latinos, marcados por sociedades histórica e culturalmente machistas e patriarcais.
Se no México uma das causas do feminicídio é o tráfico de drogas nas fronteiras, no Brasil, segundo dados de 2015 do Mapa da Violência, está relacionado com a violência doméstica – e se concentra em cidades interioranas com menos de 100 mil habitantes.
A cidade brasileira que mais mata mulheres por crimes de ódio relacionados a questões de gênero é Barcelos, de apenas 20 mil habitantes, no interior do Amazonas.
Assim como no caso mexicano, a violência extrema também está presente nos assassinatos cometidos por brasileiros.
Bandeira pontua que são comuns casos de feminicídio em que brasileiras morrem por “faca, peixeira, canivete, espingarda, revólver, socos, pontapés, garrafa de vidro, fio elétrico, martelo, pedra, cabo de vassoura, botas, vara de pescar, asfixia, veneno, espancamento, empalamento, emboscadas, ataques pelas costas, tiros à queima-roupa, cárcere privado, violência sexual e desfiguração”.
“A quantidade de facadas verificada em algumas situações é expressiva – há situações em que as vítimas foram atingidas por dezenas delas, o que tende a indicar tanto a intenção de provocar um sofrimento antes da morte quanto o desejo de expressar a condição de poder ao aniquilar fisicamente a mulher”, explica a socióloga.
Por ter fortes relações com a violência em âmbito familiar, a pena por crimes de feminicídio pode ser agravada no Brasil se a vítima estava grávida, se era mãe de recém-nascido ou se estava na companhia de filhos e/ou pais no momento do crime.
“Pode-se afirmar que, de modo geral, as mulheres brasileiras estão unidas por uma tragédia em comum: tiveram decepadas mãos, pés, dedos, braços, pernas, seios e orelhas, a pele foi rasgada por facão, o rosto foi desfigurado com soda por namorados e ex-maridos, os cabelos foram arrancados etc.”, descreve Bandeira.
Sanematsu explica ainda que, no Brasil, assim como foi preciso criar uma lei específica para buscar conter a violência doméstica – a Lei Maria da Penha – “é importante ter uma lei que não apenas dá nome a esse trágico fenômeno, mas menciona que mulheres são mortas por serem mulheres, que existem motivações e circunstâncias muito específicas que precisam ser dimensionadas por meio de estatísticas”.
Fonte: BBC Brasil