A República e a Seca no Nordeste: desafios Históricos

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Enoque Oliveira

Tema antigo quanto são os primeiros registros da ocupação do território nacional, a aridez permanente (agravada com a seca), atravessa os séculos numa proporção assustadora! Tão assustadora quanto é a fragilidade humana para encontrar alternativas benéficas, ao meio físico e às populações nativas dessa imensa região do país.

Remexendo no passado monárquico, Dom Pedro II, surpreso com as imagens captadas no cenário trágico da chamada “Seca de 77” (1877-1880) formulou uma opinião sobre o problema, encabeçando, a partir daquele trágico fenômeno natural, as primeiras iniciativas de um processo de intervenção concreta na região. No percurso de mais de um século comparece no cenário nacional, o governo Lula, com a feliz ideia de retomar aquela iniciativa, associando ações simbólicas: poços, pequenos açudes, cisternas familiares, às intervenções estruturais, lançando as bases de um projeto audacioso para reabastecer consideráveis trechos do Nordeste, com as águas do Rio São Francisco. Águas estas, destinadas ao Oceano Atlântico.

Do ponto de vista do desenvolvimento regional, duas iniciativas de ponta dos dois chefes de Estado, por pretender, entre outras metas, amenizar um problema secular. Mas, do ponto de vista do caráter do povo camponês é importante, por abrir as expectativas das populações à faculdade de almejar, de ultrapassar-se, de trabalhar para si, de pensar nesta natureza, num belo exemplo de grandeza proletária e, de posse desse bem tão precioso, com luta e sabedoria, intervir no seu meio, transformando-o. Pois, quando as sociedades ou as regiões se recusam a cumprir o papel magnífico de criar iniciativas estruturais, de caráter humanístico, os fracassos, os sentimentos derrotistas, os sofrimentos indesejáveis, tudo isso caldeado com os sofismas da propaganda bíblica, transformam-se em angustias sociais terríveis.

O principio em torno do qual está na essência das sociedades gerarem iniciativas arrebatadoras, não se aplica a determinadas categorias de homens e mulheres dos quais, por hábitos arraigados ou desvio de conduta aparentemente congênita, trabalham historicamente no sentido de tornar qualquer iniciativa de âmbito geral, nesta região, imprópria aos interesses do país. Examinando sua faceta histórica, tais categorias utilizam seus instintos perversos para manter-se na posição de sentinelas. E mal se anuncia a intenção de execução de projetos em favor do povo, ou experiências renovadoras capazes de unir às populações, dotando-as do poder de elevar seu nível e capacitá-las para uma luta de alcance maior… Sem tergiversar, tais categorias descem de seus minaretes para, com o seu protesto (combate ou conspiração), representar a mão portentosa da intransigência. Não foi esta a reação selvagem dirigida contra Canudos? Também não se fez sentir semelhante agressão 80 anos depois da guerra, contra o resgate histórico de Canudos, iniciado a partir das comunidades populares de Monte Santo?

No exame do projeto citado, os asseclas de tais categorias logo se levantaram. Cada facção expôs os motivos pelos quais fundava sua recusa: Ali bem próximo, um desses representantes, expondo sua vaidade enfadonha, ameaçava matar-se acaso o projeto não fosse extinto. Adiante, ambientalistas exóticos içando o estandarte partidário da “sustentabilidade”, levantaram seu arrogante “não”. Bem mais além, com ar zombeteiro, ergueram-se esfuziantes os estúdios televisivos, fóruns, assembleias legislativas, reclamando do desperdício de dinheiro e da inconveniência do projeto. Enfim, salve-se quem puder, contanto, no Nordeste mantenha-se o status quo. Pois de todos os quadrantes fervilham opositores ao projeto, prontos a se sacrificar em defesa do rio e da pátria. Alguns justificam seu entusiasmo romântico: no percurso do projeto um ninho de rolinha pendurado na casca gretada de uma aroeira desvanecida pela seca, seria sacrificado! Pobre mente humana! Na caça de vantagens e promoções, nem sequer se dá conta das leis da evolução da matéria. Pois aquele volume de massa liquida, deslocando-se do Rio São Francisco a capital do estado do Ceará, quantos milhares de ninhos poderiam naquela imensidão cálida, prosperar. Para não falar dos peixes e das garças, dos maracanãs e dos calangos, das acauãs e dos pirilampos, das raposas e das roseiras sorridentes e felizes com sua própria existência, sob o amparo da luminosidade dourada da lua cheia, visitando o Sistema da Caatinga.

Pobre espírito humano!  Se ao menos uma vez na história houvesse manifestado sua indignação contra os grileiros das terras ribeirinhas às margens do São Francisco, região de considerável pressão do desmatamento e da grilagem. Ou, com igual penhor, habitasse em suas mentes um filete de sensibilidade para combater as feridas sociais, nem precisaria lembrar-lhes do rigor revolucionário de Thomas Morus contra os senhores feudais, açambarcadores das terras dos camponeses da Grã-Bretanha; mas apenas indicar-lhes ia, como peça de aprendizagem cultural, a leveza comovente de Shakespeare, censurando o espírito expansionista da feroz Inglaterra:

“É sobre a Inglaterra que o sol inteiro brilha? O dia e a noite,

não existem senão na Grã Bretanha? No volume global do mundo

a “nossa” Inglaterra parece ser esse próprio volume,

e não apenas uma parte dele;

peço te que te lembres que o ninho de cisnes que vês no grande lago,

contém seres vivos que não fazem parte da Grã Bretanha” (citado pelo ensaísta inglês William Hazlitt)

Mas, olhando a questão com zelo, pelo ângulo do humanismo, vale lembrar: os ditos carregadores da sustentabilidade, só não tiveram a percepção de olhar para o outro ângulo do mapa – o ângulo da vida, onde milhões de trabalhadores, por sua importância histórica e econômica, merecem dispor de água para lavar o suor de seu rosto; como também, usar esse líquido nas fontes de produção e se elevar na escala social desse importante país.

Também não se deram conta de indagar se não merece abastecer-se de água, os compatriotas do Estado do Ceará em retribuição a esse Imorredouro centro de exportação da força de trabalho, destinada a produzir a riqueza nos mais diversos ciclos econômicos desse país.

Nessa linha, jamais indagaram ao povo de Pernambuco e Bahia, Estados produtores de quatro séculos da riqueza da cana, se eles merecem ter água em suas casas, cisternas, lavouras, praias, etc.

No centro dessa turbulência, indagam as sentinelas, querendo comover a sociedade com seu sentimentalismo piegas: Mas como transportar água para tão longe se existem famílias nas proximidades do rio privadas desse bem? A colocação é tão capciosa, como é a intenção de fazê-la É tal como se a jaqueira do morro da ilha de Itaparica indagasse do tamarindeiro da planície à beira-mar: Também eu não tenho direito de me saciar do sal do mar da Baia? A filosofia ajuda a resolver a questão: o fato da jaqueira ser privada diretamente de saciar-se do sal (mas indiretamente cabe ao homem provê-la) não justifica impedir milhares de roseiras de embelezar as paisagens da ilha. Ainda quando um trabalhador comum acometido de problemas do coração não tivesse acesso ao hospital particular de alto porte, não significa inviabilizar a pesquisa do coração.

Retomando ao tema dos desafios históricos: no espaço intermediário entre as duas iniciativas apontadas, aparece a Republica. Da fase da propaganda republicana e de suas aspirações, muitos cronistas se ocuparam. A indagação pertinente é: quais possibilidades ou entraves impediram a republica de encontrar uma alternativa consistente para o problema? Nesse intervalo entre Dom Pedro II e o governo Lula, criou-se o DNOCS, para dar resposta ao problema da aridez e das secas. Com igual aspiração, fundou-se a SUDENE, órgão destinado a promover o desenvolvimento do Nordeste. Por quais motivos, causas e circunstâncias internas e externas, esses dois organismos não alcançaram sucesso, como alcançou em região parecida, os Estados Unidos da América, transformando áreas quase desertas no maior celeiro de alimentos da era contemporânea?

As opiniões quanto à situação real da região são diversas quanto comoventes: “No modelo brasileiro não é conveniente desenvolver a região Nordeste. O Nordeste é atrasado por causa da seca. A origem da miséria e do atraso está nos dirigentes políticos. O Nordeste é assim por ter um povo vagaroso, de origem mestiça, eivado de fanatismo e analfabetismo. O Nordeste tem essa configuração pela baixa aspiração de seu solo. Tal situação resulta do salário dos deputados…”

É longo o calendário para tão pouca vibração! Nada aí desperta emoção. O Nordeste tem essa configuração por milhares de causas e circunstancias. É detentor de uma terra bela e produtiva, (haja vista as grandezas do solo com a intervenção de água e tecnologia, na região nordeste da Bahia) por uma série de causas. De uma verdade, porém, ninguém pode se furtar: A aridez permanente e a seca, pela sua extensão e profundidade, representa o mais significativo desafio desse país. Um desafio dessa ordem não será solucionado pela vontade única de uma autoridade humana ou divina. Mas através das leis inevitáveis do movimento da humanidade, através da maior soma de esforços. Da vontade e empenho de milhões de brasileiros. Mudanças profundas, estruturais não se fazem com o grito sonoro de aves agourentas: “Este governo não fez nada. O meu partido quando chegar ao poder vai resolver tudo”! Questões desse porte só se encaminham com a participação e a força consciente e inconsciente da vida. A verdadeira vida dos homens e mulheres, tomada nos seus interesses essenciais: comida, saúde, amor, emprego, repouso, lazer, associada ás aspirações intelectuais dirigidas para o estudo, a pesquisa, a ciência, a cultura em geral, abrangendo a tudo quanto enaltece o espírito humano, envolvendo assim, todos os ângulos do conhecimento, do saber, do trabalho produtivo- Tudo quanto constrói e eleva o nível do povo.

O povo não é uma entidade abstrata “os fanáticos de Canudos”. “A mestiçagem degenerada”. “Os retirantes Nordestinos”. “Os devotos de Antonio Conselheiro”. O povo compõe esse mar humano de milhões de vontades, aspirações, desejos, egoísmo, revolta, trabalho, sentimento, rebeldia, sensibilidade, nas mãos do qual está a força, a energia para modificar as coisas, ao mesmo tempo donde provem essa sabedoria para transformar, agitações espontâneas, manifestações de rua em movimentos de permanência, guiados, pelas massas conscientes, organizadas, politizadas, prontas para colocar as coisa simples e as transformações estruturais a serviço de todos.

A República, não podia resolver tais problemas, nem esta era a sua aspiração. Das origens da propaganda, com suas campanhas mal sucedidas, passando pela republica velha e nova, ela não era nem nunca representou os interesses do povo e da região nordeste. Após a proclamação (1889), a única coisa inteligente a fazer, em termos de reformas significativas, era cuidar dos três maiores desafios: a questão do Negro e dos Mestiços. A questão da Seca e a questão da Terra. Numa visão avançada do progresso material global, aquele era o caminho para promover o desenvolvimento do país, tudo mais devia passar para um plano secundário. Mas, para decepção dos sonhadores, como Silva Jardim e outras vozes francas da propaganda republicana, mantivera-se intocável os três principais desafios nacionais. O negro fora lançado ao léu na condição de trabalhador livre, mas sem suporte para garantir sua sobrevivência, logo em seguida cai no abandono, reduzindo-se a triste sorte de semisservo da burguesia republicana. No Norte, a Seca fazia cena, dizimando gente, riquezas, agravando a aridez permanente. Mas, a pior, das piores omissões foi: a República, violando a beleza e o desvelo dessa mão de obra centenária, por ausência de patriotismo, não usou de suas armas para esmagar a oligarquia rural. Em seguida, devolver aos negros e mestiços a terra. Pois nela, haviam trabalhado e produzido com entusiasmo a mercadoria mais cobiçada da Europa Ocidental- a riqueza do Novo Mundo. Foram quatro séculos de exuberância nacional, cujo ciclo de riqueza inominável passou pelas mãos dos negros e mestiços, para depois serem destinadas às matrizes europeias, e já no século XIX para os Estados Unidos. O Norte, como era chamada a região, foi mantido inalterável, cabendo-lhe o papel de reprodutor de mão de obra barata, exportável, na condição de “instrumento inconsciente”, ás finalidades históricas das classes econômicas, incorporada pejorativamente à classificação de” retirantes nordestinos”. Esse descaso tinha raízes profundas e teria registro trágico na escolha de prioridades do Brasil moderno. Certamente essa situação não se deve a ausência de personagens históricos no centro do poder. Ruy, ministro da Fazenda era o homem mais importante do governo Provisório. Caxias, Floriano, Castelo Branco, etc. Todos do Nordeste, no entanto pouco interviram para modificar aquele cenário. Por uma razão vital do processo histórico: o destino de um povo ou de uma região independe de uma personalidade histórica. Na democracia ou na ditadura, na guerra ou na normalidade política, imperadores, presidentes, ditadores, julgam ter o domínio sobre o povo. Atribuem suas ordens, palavras ou atos, à realização dos acontecimentos e para lhes dar suporte em todos os bancos de escolas, postam-se os historiadores convincentes do poder ou da grandeza desses homens qualificados de grande. O processo histórico desmente essa afirmativa. Pois a marcha dos acontecimentos depende do movimento de milhares de homens e mulheres. Deles, exclusivamente depende, em todas as eras, a condução da história humana e dos regimes políticos.

Porem, a República Velha não foi um regime inativo. Fez progresso em vários setores. Principalmente contribuiu para o enriquecimento licito ou ilícito de uma pequena parcela da sociedade brasileira. E fez disso a obra prima da tática para derrotar o povo. A avaliação de tudo quanto ela desencadeou, confirma: no quesito violência contra as massas pobres, embora agisse em desacordo à razão e a consciência humana, fez cumprir a agressão, como parte de uma estratégia visando facilitar o processo de apropriação de capitais por uma minoria. Minoria esta capaz de invejar as grandes fortunas dos ricos das matrizes capitalistas. Resultando dessa concessão, a estúpida desigualdade entre as regiões e entre as classes. Se as manifestações de rua pretendem mudar algo como até agora não tem feito supor, devem começar por atingir esse alvo central- o poder econômico, e o sistema financeiro em geral. Sintetizando, esse processo de domínio, de concentração da riqueza, geradora da desigualdade, se fez sob forte dose de repressão. E as atuais fontes de violência: Filmes, vídeo games, novelas, etc, devem se orgulhar de haver transformado a violência selvagem da Republica (velha e nova) no mar de terrorismo televisivo – ultima novidade em escola de criminalidade, destinada a destruir e infernizar as populações negro-mestiças.

O Brasil não é Estados Unidos. Nem progresso material depende da cor da pele, nem se mede o valor de uma terra pela aparência exótica ou verdejante. As ideias acima esboçadas, secularmente repetidas, refletem o cunho banal de uma visão de mundo conservadora, fatalista, abstrata, derrotista, mas também escondem obscuros interesses. No conjunto, podem ter causas concordantes para produzir resultados favoráveis a determinados setores como ainda expressam o ceticismo e a inconveniência de quem pretende ferir o povo para tirar proveito de sua realidade.

Ao longo desse período estudado, os historiadores procuraram constranger, quanto denegrir a imagem da terra e do povo do Nordeste. Como parte dessa estratégia, dissociaram a seca do modelo político econômico vigente no país. Mais grave foi, em vez de responsabilizar esse modelo perverso, gerador da miséria, associado ao atraso planejado, imposto pela elite econômica, com o apoio de determinados governos, por sua convicção absoluta e ingênua, culpa-se a terra e o povo pela cor de sua pele. Finalmente, a última seca, alonga-se numa voracidade incontrolável. Rompendo os anos de 2010, 2011, 2012, 2013, desafiando todas as iniciativas simbólicas ou estruturais até então encaminhadas pelo homem. A natureza mostra-se tão mais eficiente nas demonstrações de seu poder. Diante de uma situação tão grave, nada se modificará com propaganda de baixo calão, esteio da politicagem oportunista “o meu partido no poder vai acabar com a seca”. Nem com milagre de comerciante de Deus. A lição da história diz: é com luta, com disciplina, com idealismo, com participação, com movimentos organizados na realidade prática…! Por aí certamente, e com esses pensamentos unificados, quando as circunstancias permitirem, a região passará a sentir um influxo novo. Este o desafio do dia de amanhã.

 

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