Repaginando o DEM; ex-Arena, PDS e PFL
A ditadura militar se aproximava do fim quando o ex-governador baiano Antônio Carlos Magalhães (ACM) peitou um dos homens mais fortes do regime: o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Matos.
Matos acusara ACM de traição por rejeitar a candidatura do governista Paulo Maluf na eleição indireta para a Presidência e apoiar o oposicionista Tancredo Neves.
ACM retrucou: “Traidor é quem apoia corruptos”.
A declaração expôs o racha que resultaria no partido que, passados 33 anos e após nova metamorfose, volta a se acercar da cadeira presidencial – agora com o nome Democratas (DEM) e liderado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que assumirá o Planalto se Michel Temer for afastado.
“Foi um lance genial”, lembra David Fleischer, professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB).
Criticar publicamente um ministro da ditadura poderia significar o fim de uma carreira política – ou algo pior.
O gesto de ACM surpreendeu ainda mais porque ele pertencia ao Partido Democrático Social (PDS), que apoiava o governo militar e era o sucessor da Aliança Renovadora Nacional (Arena), sustentáculo político do regime após o golpe de 1964.
“Mas ele passou ileso, mostrando que era possível bater no governo sem levar de volta. Foi uma senha de que a ditadura estava acabando”, conta Fleischer.
Início promissor
Em 1985, em meio às articulações no Congresso para a eleição indireta, dissidentes do PDS deixaram a sigla para fundar o Partido da Frente Liberal (PFL).
O partido nasceu forte. Após apoiar a vitória de Tancredo sobre Maluf, ACM foi nomeado ministro das Comunicações, posto que impulsionou sua trajetória política e o fez se afastar do passado arenista.
Como ministro, o baiano viajou para Cuba e conectou a rede telefônica da ilha à do Brasil. Ao ajudar a reaproximar as duas nações, ganhou a amizade do líder cubano Fidel Castro.
“Depois disso, sempre que Fidel viajava para a África do Sul ou para a Argentina, mandava o avião descer em Salvador e ia jantar com o ACM”, conta Fleischer. “O PT ficava irritadíssimo, porque o grande ícone da esquerda latino-americana os esnobava para encontrar um cara que eles viam como reacionário e direitista.”
Partido do sim, senhor?
Outro egresso da Arena e fundador do PFL, o senador pernambucano Marco Maciel também assumiu um ministério após o fim da ditadura – o da Educação. Dois anos depois, migrou para a Casa Civil.
Na eleição de 1994, Maciel se elegeu vice-presidente da República na chapa encabeçada pelo tucano Fernando Henrique Cardoso.
Fleischer, da UnB, diz que o pernambucano teve um papel central no crescimento do PFL. “Era um político muito equilibrado e não dado a radicalismos.”
Segundo o professor, a postura de Maciel punha em xeque a ideia de que a Arena agregava apenas políticos truculentos ou submissos aos militares – crença que rendeu à sigla o apelido de “partido do sim, senhor”.
Fleischer diz que, quando ministro da Educação, Maciel se cercou de assessores qualificados e estimulou as universidades federais a criar centros de estudos regionais, focados na Ásia, África, América Latina e Europa.
“Foi uma ideia interessante, mas infelizmente poucas universidades a adotaram.”
Em 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff, o partido – rebatizado de DEM desde 2007 – voltou ao comando do MEC pelas mãos do também pernambucano Mendonça Filho.
Trabalho nos bastidores
Fleischer conta que mesmo alguns membros da Arena que entraram na política com a ajuda dos militares tomavam decisões que desagradavam a chefia do regime – caso do próprio Paulo Maluf.
Ele diz que, nas eleições indiretas de 1978, o presidente Ernesto Geisel queria que o ex-governador Laudo Natel fosse o candidato do PDS ao governo de São Paulo.
“Mas Maluf trabalhou nos bastidores, no que sempre foi muito bom, e conseguiu ser escolhido como o candidato do partido e ganhar a eleição – um feito formidável.”
Ainda assim, a influência de políticos da Arena/PDS no governo militar era limitada, diz o professor.
“No governo Costa e Silva (1967-1969) eles tinham algum espaço, mas nos anos de chumbo, no governo Médici (1969-1974), tinham pouco. Só quando Geisel assumiu, em 1974, voltou a haver mais diálogo.”
Já economistas filiados à Arena – entre os quais Delfim Netto, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen – tiveram papel importante durante todo o regime e ajudaram dar uma marca ao partido.
Segundo a cientista política Camila Rocha, da USP, os empresários que nos anos 1980 fundaram os primeiros centros de pesquisa e debate (think tanks) brasileiros pró-livre mercado tinham laços com o PFL – especialmente com a família Bornhausen, de Santa Catarina.
O banqueiro Olavo Setúbal (1923-2008), do Itaú, também integrou o partido.
Rocha, que pesquisa a nova direita brasileira, diz que a legenda preservou as bandeiras econômicas mesmo após as mudanças de nome.
“Claro que entre prefeitos, vereadores e deputados estaduais do DEM você encontra todo tipo de ideologia, mas a elite do partido continua defendendo essas posições.”
Ela afirma que um dos mais conhecidos economistas liberais do país, o atual presidente do BNDES, Paulo Rabello de Castro, ajudou a redigir o programa econômico do DEM em eleições passadas.
Segundo Rocha, ainda que tenha perdido espaço após o fim do governo FHC, o partido mantém “capacidade de atração” entre os grupos da nova direita. Cita como exemplo a filiação ao DEM de Fernando Holiday, um dos líderes do Movimento Brasil Livre (MBL), eleito vereador em São Paulo em 2016.
Ela diz ainda que a Fundação Liberdade e Cidadania, ligada ao partido, “integra redes internacionais conservadoras e é razoavelmente atuante nesses círculos” – postura rara, senão única, entre as demais siglas brasileiras.
Rocha define o DEM como um partido “conservador nos costumes e pró-livre mercado na economia”.
Para Fleischer, da UnB, trata-se de um partido de “centro-direita”.
“Na época da Arena estavam na direita porque não tinha alternativa. Hoje não são tão radicais – o [deputado federal Jair] Bolsonaro não caberia, por exemplo”, diz o professor.
Livre iniciativa e empreendedorismo
Egresso do PDS e do PFL, o atual presidente do DEM, senador Agripino Maia (RN), diz à BBC Brasil que hoje o partido é de “centro”.
Ele afirma que as principais bandeiras da sigla são a “defesa da livre iniciativa e o empreendedorismo”.
“Direita é a defesa do capital privado em detrimento de qualquer outra coisa. Para nós, em primeiro lugar, vem o emprego e, depois, o capital privado.”
Agripino cita ainda, entre as principais posições do partido, “a formação da individualidade pela via da educação, a distribuição de renda, a proteção à propriedade privada e o prestígio ao agribusiness”.
Os dois últimos pontos parecem conflitar com duas diretrizes do DEM listadas em seu site: a defesa da reforma agrária, “possibilitando o acesso à propriedade fundiária e seu efetivo aproveitamento”, e de uma reforma urbana “que consagre a prevalência do interesse coletivo”.
O partido diz ainda defender a “concessão de prioridade nacional para o Nordeste” e a “preservação dos diferentes aportes à formação da cultura brasileira, especialmente a contribuição negro-africana e a indígena”.
Para Camila Rocha, ao assumir essas propostas, o partido tenta acenar a outros públicos. “É muito difícil ganhar eleições no Brasil só com um discurso pró-mercado.”
Nova embalagem
O movimento para o centro ganhou um impulso simbólico com o abandono do termo “liberal” e a fundação do Democratas, em 2007.
Naquela época, o partido – antes uma das maiores forças do Congresso – tentava se reorganizar na oposição.
Até que a legenda levou um duro golpe em 2010, quando o ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab deixou o DEM e levou vários colegas para seu recém-criado Partido Social Democrático (PSD) – entre eles, a senadora Kátia Abreu, hoje no PMDB.
A bancada da sigla minguou, e houve até quem previsse que o partido acabaria.
O DEM ganhou novo fôlego em meio aos protestos contra Dilma Rousseff, quando alguns de seus expoentes – caso do senador ruralista Ronaldo Caiado (GO) – souberam surfar no sentimento anti-PT com duros discursos contra o governo.
O partido votou em bloco pelo impeachment da petista e aderiu à base do governo Temer.
Mas a tacada que deixaria a sigla à porta do Planalto foi dada em julho de 2016, na articulação para a vitória de Rodrigo Maia na disputa pela Presidência da Câmara.
A eleição era especialmente importante porque, com a posse de Temer, o presidente da Câmara se tornara o próximo na linha sucessória para o Palácio do Planalto.
O cargo estava vago após o Supremo Tribunal Federal afastar o deputado federal Eduardo Cunha, envolvido na Operação Lava Jato.
No Congresso desde 1999, Maia conseguiu unir partidos da base e da oposição numa candidatura de oposição a Cunha, que tentava emplacar seu aliado Rogério Rosso (PSD) no posto.
Com o apoio de deputados de 13 partidos – inclusive parte do PCdoB -, Maia ganhou de Rosso por 285 votos a 170.
‘Ditadura no DNA’
Segundo Agripino, a mudança do nome para DEM foi sugerida pelo ex-governador catarinense Jorge Bornhausen, que anos depois também acompanhou Kassab rumo ao PSD.
O rebatismo foi ironizado por adversários políticos. Em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que, mesmo mudando de nome, o partido tinha “a ditadura em seu DNA”.
Agripino rejeita o laço com os militares e diz que o partido nasceu justamente por se contrapor à ditadura na disputa entre Tancredo e Maluf.
“Optamos por apoiar um adversário nosso, Tancredo, porque ele tinha compromisso com a democracia. O PFL foi fundado para fazer uma aliança que possibilitasse uma eleição direta para presidente da República”, diz o potiguar.
No entanto, em possível ato falho, Agripino usa o mesmo termo empregado pelos militares ao se referir ao golpe de 1964: “Associar-nos à revolução é um equívoco”.
O senador rebate outras críticas comuns ao partido: a de que a abrigaria “dinastias políticas” e teria pouco espaço para mulheres.
O próprio Agripino é filho de um político da Arena, o ex-governador potiguar Tarcíso Maia, além de primo do ex-prefeito carioca César Maia, pai de Rodrigo Maia.
Mendonça Filho, o ministro da Educação, é filho do deputado arenista José Mendonça Bezerra. Outro membro do partido em ascensão é o prefeito de Salvador, ACM Neto, herdeiro político do ex-governador baiano.
Segundo Agripino, trata-se de “coincidências”. Alguns herdam a vocação política dos pais, mas o ingresso no partido não se dá por “herança.”
Sobre a fraca presença feminina, diz que “não somos diferentes da média da política brasileira”.
Nas últimas semanas, conforme Temer passou a cambalear com as denúncias da JBS, cresceram os rumores de que o DEM poderia absorver congressistas do PSB (Partido Socialista Brasileiro) interessados em integrar um eventual governo Rodrigo Maia.
Muitos no Congresso avaliam que, se assumir o posto de Temer, Maia seria o favorito numa eventual eleição indireta à Presidência e se credenciaria para concorrer outra vez ao cargo, em 2018.
Agripino confirma as tratativas com os socialistas. “Há conversas em curso, até porque o grupo conversando conosco tem uma afinidade forte com o pensamento do partido.”
Questionado sobre a permanência do DEM na base do governo, diz que ela depende da qualidade das explicações de Temer.
“Estamos prisioneiros da consistência dos argumentos do presidente. Enquanto estivermos protegidos pelos argumentos, o apoio está garantido.”