Presidente do Peru escapa da degola

“Não fui suficientemente cuidadoso, peço desculpas, mas não sou corrupto”, diz o presidente do Peru

O presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, saúda apoiadores.
O presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, saúda apoiadores. SEBASTIAN CASTAÑEDA EFE

Pedro Pablo Kuczynski (PPK) continuará sendo o presidente do Peru. No último momento, e por somente nove votos, conseguiu evitar o impeachment pretendido pela oposição. A moção que provocaria sua queda por “permanente incapacidade moral” precisava de 87 votos para seguir adiante, mas só conseguiu 79. Houve 19 votos contra o pedido e 21 abstenções. No final foi salvo pela esquerda, já que os parlamentares ligados a Verónika Mendoza se negaram a votar, e um grupo de 10 fujimoristas desobedientes, que decidiram abster-se mostrando a divisão entre Keiko Fujimori, a irmã mais velha, que era favorável à destituição, e Kenji, o caçula, que se negava a apoiá-la e prefere manter Kuczynski para negociar o indulto a seu pai, já muito avançado.

Em uma sessão dramática após uma longa noite de negociações, PPK lutou até o final para continuar no poder após o escândalo por suas ligações com o caso Odebrecht. Para conseguir apelou ao antifujimorismo, o movimento mais poderoso do Peru, e pediu aos demais congressistas que não colaborassem no “golpe” do grupo do caudilho. “Está em suas mãos salvar a democracia ou afundá-la por muito tempo”, disse. Esses argumentos, e a ameaça de entregar o poder ao fujimorismo e gerar uma grande instabilidade, por fim convenceram os parlamentares suficientes.

De maneira muito circunspecta e entre aplausos dos poucos parlamentares que o apoiam (só tem 18 próprios) e o silêncio da enorme bancada fujimorista – 71 de 130 – Kuczynski entrou no Congresso no começo da madrugada para defender-se das acusações e evitar sua queda. Se tivesse sido destituído, seu cargo seria ocupado pelo vice-presidente, Martín Vizcarra, um homem de sua confiança. Mas PPK fez um último movimento. Fez com que Vizcarra e a outra vice-presidenta, Mercedes Araoz, lhe prometessem que renunciariam se ele caísse. O poder iria então ao presidente do Congresso, Luis Galarreta, um homem de Fujimori. Kuczynski colocava assim os antifujimoristas – as duas bancadas da esquerda, a Frente Ampla e o Novo Peru de Verónika Mendoza, e alguns parlamentares de centro – diante da conjuntura de que se o retirassem entregariam o poder ao grupo do caudilho que governou o Peru entre 1990 e 2000, deu um autogolpe em 1992 e ainda está na cadeia por corrupção.

Até o último minuto os fujimoristas buscaram votos e manter seu bloco unido. As câmeras captaram até mesmo parlamentares discutindo com Kenji, que recebeu até o último minuto antes de votar várias ligações em seu celular. O fato de ter sido um Fujimori a salvar Kuczynski de uma manobra feita por outra Fujimori enquanto o patriarca vê tudo da prisão e espera o indulto oferecido pelo presidente dava um caráter novelesco à ocasião. A possibilidade de que PPK tenha acertado o indulto para evitar o impeachment será comprovada nos próximos dias.

Após semanas de dúvidas, o presidente decidiu no último momento defender-se com firmeza. “Venho enfrentar de pé e pessoalmente uma acusação falsa e ominosa, movida por um desejo inconstitucional de me retirar do poder pela força de seus votos. Venho demonstrar minha inocência. O que está em jogo é a democracia, que tanto custou ao Peru recuperar. O povo não perdoa e não esquece. Conquistei tudo em minha vida à base de esforço e trabalho honesto. Venho dizer-lhes olhando-os nos olhos que não sou corrupto e não menti. Jamais favoreci nenhuma empresa. Não tenho nada do que me envergonhar, sempre agi de acordo com a lei e a ética”, disse Kuczynski de madrugada antes de dar detalhes das ligações de sua empresa com a Odebrecht enquanto era o ministro da Economia de Alejandro Toledo para tentar demonstrar que ele não tinha nenhuma responsabilidade nesses casos. Sua versão afirma que ele recebeu o dinheiro porque era o dono da empresa, mas não realizou nenhuma ação e não tomou conhecimento dos contratos de assessoria com a Odebrecht, porque quando entrou na política deixou a empresa em poder do chileno Gerardo Sepúlveda.

Ninguém conseguiu provar que houve corrupção. Mas muitos acreditam que PPK mentiu. Ele sempre disse que não teve nenhuma relação profissional com a Odebrecht, inclusive ante o Congresso. Quando a Odebrecht detalhou os contratos com a empresa de PPK, o escândalo explodiu. Ele nega ter mentido, disse que nunca soube nada desses contratos, mas pediu perdão por suas escassas explicações até agora. “Lamento sinceramente não ter percebido antes, mas isso não me transforma em um corrupto e não é uma infração à Constituição. Compreendo que deveria ter oferecido um conjunto de documentos. Não fui suficientemente cuidadoso, mas não sou corrupto. Peço à nação sentidas desculpas por não explicar minha conduta profissional. Jamais menti ao povo peruano. Jamais recebi uma propina. Jamais incorri em um conflito de interesses. Mas peço desculpas porque não soube explicar, não prestei atenção às formas da política. Devia ter percebido a tempo o grave clima de ingovernabilidade. Continuo aprendendo”, disse como resumo de sua autocrítica.

Mas além do escândalo em si, por atrás havia uma clara disputa de poder que ele mesmo chamou abertamente de “golpe”, até o ponto de pedir ajuda à Organização dos Estados Americanos, que enviou dois observadores para acompanhar a sessão. Por isso Kuczynski usou armas políticas e procurou repetir o mecanismo que o levou à presidência do Peru há só um ano e meio. PPK tinha as eleições perdidas. Era um candidato muito preparado, mas sem carisma, quase acidental, que esteve prestes a não ir para o segundo turno. Mas então, quando Keiko Fujimori já saboreava a vitória, entrou em funcionamento um mecanismo infalível em um país onde toda a política há 27 anos gira em torno do mesmo sobrenome: o antifujimorismo.

Ocorreram manifestações, intelectuais, analistas e jornalistas influentes fizeram o resto para convencer os peruanos de que deveriam evitar que Keiko Fujimori tomasse o poder. Até Verónika Mendoza, líder de esquerda, muito afastada do campo ideológico de um ex-banqueiro de investimentos liberal como PPK, pediu o voto por ele com o único objetivo de parar a filha de Fujimori. E com o trabalho de todos conseguiram o que parecia impossível. Por somente 40.000 votos, no último suspiro, Kuczynski ganhou. E o fez graças a um antifujimorismo no qual ele nunca acreditou, tanto que fez campanha para a filha do caudilho em 2011. Mas esse antifujimorismo alheio é a base de seu limitado poder e de novo apelou a ele para salvar-se de uma tentativa de impeachment. Kuczynski fala de “golpe” e tenta colocar os parlamentares da esquerda, os mesmos que foram fundamentais para sua vitória, diante da responsabilidade de entregar o poder aos Fujimori se ele for destituído.

A esquerda novamente foi essencial. Os 20 deputados eleitos há um ano e meio pela Frente Ampla se dividiram em dois grupos. Os 10 fiéis a Mendoza decidiram não apoiar o impeachment de PPK. Entre os outros 10 existiram dúvidas. Wilbert Rozas, porta-voz da Frente Ampla, indicou o voto a favor: “Não somos fujimoristas de ocasião, vamos combater a corrupção de direita e esquerda. Não existem corruptos amigos e inimigos. Nas ruas bradam para que os corruptos saiam, precisamos limpar o país. As prisões estão cheias de pobres e não dos que levam o dinheiro do povo em braçadas”. Mas Marco Arana, o líder do grupo, pareceu recuar: “Kuczynski não é digno, mas também não podemos permitir que o fujimorismo tome o poder. Votaremos com consciência”. No final esses 10 últimos votaram a favor, de modo que a decisão dos fiéis a Mendoza de abandonar o Congresso para não votar foi fundamental para que a moção não fosse adiante.

Miguel Torres, porta-voz da Força Popular, o grupo de Fujimori, foi muito contundente: “o principal servidor público decidiu nos enganar. Temos um presidente da República que mentiu, que demonstrou sua incapacidade para distinguir entre o correto e o incorreto. São mentiras de Estado, demonstram que ele não pode continuar ocupando o cargo”. Durante 12 horas, após as duas que Kuczynski e seu advogado utilizaram para a defesa, os parlamentares se sucederam em turnos intermináveis a favor e contra enquanto os jornalistas faziam contas que mudavam a todo momento graças a constantes negociações e reuniões.

Os parlamentares que falaram contra o impeachment não utilizaram argumentos de defesa de Kuczynski, mas principalmente ataques a Fujimori. Vários lembraram que com o fujimorismo no poder ocorreram os maiores escândalos de corrupção da história recente do Peru, até o ponto de aparecerem vídeos de propinas a parlamentares. E lembraram que a filha, Keiko, também está envolvida no escândalo Odebrecht, que no Peru está levando de roldão quase toda a política. Dois ex-presidentes do país estão na prisão – Fujimori e Ollanta Humala – um fugiu aos EUA – Toledo – e outro possui graves suspeitas contra si – Alan García.

Desde que Fujimori e seu autogolpe de 1992 acabou com os partidos peruanos, a política não se recuperou e vive à mercê de constantes instabilidades que fazem com que todos os presidentes abandonem o poder com uma péssima avaliação popular. O Peru é um Saturno que devora seus políticos, ninguém se salva.

Kuczynski, que começou já frágil com uma vitória apertada e apenas 18 deputados fiéis, durante um ano e meio utilizou a estratégia de apaziguamento com o fujimorismo. Experimentou de tudo. Concedeu-lhes até cinco cabeças, as dos ministros que eles forçavam que fossem demitidos. Inclusive se mostrou disposto a conceder o indulto a Alberto Fujimori, o patriarca, na prisão por corrupção desde 2007. A família Fujimori é tão complexa que a filha mais velha, Keiko, está brigada com o pai e não quer que o indultem. Mas o segundo filho, Kenji, se mantém fiel ao progenitor e negocia com PPK o indulto. Ambos batalham pelo poder do partido. O PPK também buscou essa divisão e sobretudo o apaziguamento, mas sempre fracassou. Por isso, na última hora, o presidente se concentrou em utilizar uma arma muito mais eficaz, a mesma que o levou ao poder, o antifujimorismo. Mas ao mesmo tempo também procurava – e conseguia – que a divisão na família Fujimori o ajudasse a se salvar. Logo se saberá que preço pagou o presidente por essa traição dentro do grupo que continua dominando de uma ou outra maneira a política peruana.

O FATOR SURPRESA DO INDULTO A FUJIMORI COMO ELEMENTO DE DESESTABILIZAÇÃO

JACQUELINE FOWKS, LIMA

O Peru não seria o mesmo se não surgisse um elemento imprevisto e de distração nesse momento de crise política. Quando o advogado de Kuczynski começava a defesa na sessão do Parlamento, circulou no Twitter o relatório de uma junta médica que recomenda o indulto humanitário de Alberto Fujimori.

Em meio à surpresa diante do relatório médico, circulou também na mídia a solicitação do próprio Fujimori de comutação de pena, recebida pela Comissão de Graças em 15 de dezembro.

O relatório da junta médica recomenda o “indulto por razões humanitárias” e argumenta que “a reclusão é condicionante da redução do sistema imunológico, o qual agrava negativamente [sic] o controle da enfermidade neoplásica, podendo ser causa de nova recidiva”.

A notícia circulou rapidamente e gerou comentários dentro e fora do Congresso onde se discutia a destituição do presidente, sobretudo nas redes sociais. Diante do escândalo, o Ministério da Justiça rapidamente tuitou que o documento “não está na Comissão de Graças Presidenciais, portanto o documento não existe para o setor”, mas não disse que é falso ou apócrifo. Tudo parece indicar que foi, portanto, um vazamento controlado pelo Governo.

Uma fonte da situação afirmou que se tratava de um documento oficial, mas foi interpretado como uma tentativa de mostrar que teria havido uma negociação entre Kuczynski e o fujimorismo. Isso poderia influenciar os 20 votos da esquerda, que sempre rechaçaram esse indulto, a aprovar o impeachment do presidente. Os votos desses deputados são definitivos.

Ana María Vidal, secretária executiva adjunta da Coordenação Nacional de Direitos Humanos, disse ao EL PAÍS que não havia clareza sobre o documento porque o Ministério da Justiça não tinha sido contundente ao se pronunciar a respeito.

“Por que soubemos há tão pouco tempo do pedido de comutação de pena? Por que o Ministério não disse se o relatório médico tem validade ou não? Fujimori parece estar explorando várias saídas para conseguir sua libertação, mas ainda há um julgamento oral pendente pelos crimes de Pativilca (cometidos pelo Grupo Colina, o destacamento do Exército que cometeu execuções extrajudiciais no governo de Fujimori). O Ministério da Saúde tampouco conseguiu a formação dessa junta médica em suas normas legais”, criticou a porta-voz da principal rede de organizações civis de direitos humanos.

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