Fogo das ‘Escondidas’ de Beata Santainha

DSCF6813

O início de minha saga de andarilho no cargo de autoridade policial deu-se aos 21 anos de idade na cidade de Prado, município litorâneo cercado de cacau, índio, mar, floresta e muitas súplicas religiosas.

Naquela época, Prado era cidade de moças puritanas, de excessivo escrúpulo e invejável rigor moral, que não se soltavam das rédeas dos pais, os temidos coronéis do cacau, homens valentes que tinham a proteção de “cabras” de confiança portando “papo-amarelo”, um rifle de repetição de calibre 44 que quando usado no “cocoruto” do presunto, não ficava um só fio de cabelo.

Avalanche de faceiras bem arrumadas, desprovidas de agarramento de macho, sobretudo porque a rapaziada não tomava ousadia temendo uma boa sova executada por um “positivo” dos pais das meninas nascidas no interior do município que estudavam na cidade.

Um puritanismo de “cabelos compridos” que predestinavam essas meninas ao “barricão”, encalhamento, jamais clareando as vistas, permanecendo-lhes vedada as “escondidas”.

Várias delas, exímias amazonas, desfilavam montadas a cavalo, sendo-lhes adornadas de tranças compridas que a brisa do mar beijava sacudindo as madeixas provocando libido pelas ruas e centro de Prado.

A pureza tomava o lugar da maldade e a convivência era despretensiosa, mesmo porque à época havia pouco corpo estranho, dando ensejo a um parentesco quase generalizado. Mas o progresso vinha chegando aos poucos, trazendo consigo compradores de terra e gente tomadora de liberdade e craque em ousadia.

Moças bonitas de ancas esculpidas, linha de corpo da bitola que exprime sensual representação da libido, dentre as quais se destacava Carolina dos Prazeres, de olhos fuzilantes e andar que fascinava devido ao saracoteio ambulante.

As meninas, em sua maioria, estudavam em colégio municipal e se hospedavam em residências de parentes, pois pensionato para moças era muito difícil. Durante o período das férias as amazonas retornavam para as roças de cacau de seus pais sempre acompanhadas de seguranças, “bons de dedo”.

Todos os habitantes da cidade eram devotos de Nossa Senhora da Purificação e, como faltava área de lazer, a não ser a praia para banho de mar, era a novela “O Direito de Nascer” sua única diversão, a qual elas ouviam através das ondas do rádio sempre sentadas no jardim dos fundos da igreja.

“Quem quer ser mais do que é fica pior do que está; quem anda em terras alheias pisa no chão devagar.” Eu cuidava de meu ofício, sendo hóspede da pensão de dona Rosa, onde residiam duas sobrinhas chegadas aos “oremus!”, religiosas de bíblia e rosário, tornando-se logo minhas conhecidas, que me introduziram no seio das filhas dos coronéis do cacau, achando que eu poderia fazer parte do coral religioso na qualidade de barítono ou tenor.

Doido para fazer amizade com as donzelas, atento à docilidade, mansuetude, mostrando que o delegado desprovia de ranço severo, entrosei-me com as faceiras, principalmente àquelas mais carregadeiras de janeiros nos quartos que já pularam a janela do “caritó” e estavam predestinadas a morrer com cinto de castidade.

Depois de ter sido admitido nas graças das estudantes e ovelhas de Cristo – um rebanho de ovelhas de cabeceira – tudo para mim se tornou trânsito livre, interação total com o povo, fazendeiros, comerciantes, etc.

Inclusive o prefeito que se tornou meu amigo, ainda do tempo da UDN, pessoa boa, honesta, e político de palavra que não colocava o erário público na sua algibeira e não havia estória de se cassar mandato (tira e bota) e a justiça sofrer críticas, enquanto muitos sabidos engordam a pança sorrindo dos bobos eleitores.

Frei Astósio (nome fictício) era um cara porreta, pois, além de cumprir com distinção seu sacerdócio, não desprezava uma partida de porrinha, para a qual chamava… “Vamos a ela”. Com esse código, sabia-se que era para disputar cerveja na porrinha, com palitos de fósforo.

Eu me considerava um desbravador do extremo-sul da Bahia, juntamente com João Fernandes Vieira, coletor federal também conhecido pela alcunha de “Tesourinha”, bom na peleja; Dumas, promotor público; Dr. Walter Lapa, juiz de direito; Walter M. Nascimento, coletor estadual; Dr. Orlandino de Carvalho, médico; Dr. Artur Magalhães, médico.  Cidadãos ilibados, honestos, destacando-se os dois juristas, homens de caráter.

Chegamos à mesma época, pela mesma rodovia. Para se chegar ao extremo-sul da Bahia, tínhamos que pegar a rodovia Teófilo Otoni a Nanuque, no estado de Minas Gerais, para depois seguir em direção à Bahia.

A pureza das meninas começou a sacudir suas “asas” com a chegada da migração de compradores de terra e de cacau. As donzelas abriam a guarda para mim que as ouvias sem malícia, com todo o respeito, pois entendiam eu ser para elas um confessor, posicionando-me para ouvir-lhes as confissões que terminavam em risadas que estalavam no ar.

Contavam-me que iam habitualmente à Igreja por ser devotas de Nossa Senhora da Purificação, rezavam com fé e gostavam de ajudar nos preparativos da festa da padroeira, que é o dia 2 de fevereiro, fazendo promessa para que achassem um príncipe encantado que não as deixassem para titia.

Com todo respeito, passaram a me chamar de Geraldo, desprezando o título de tenente delegado, o que muito me confortava por saber que a camaradagem entre nós encontrava-se santificada. Não mais dependia de tratamento formal, o que invariavelmente termina por edificar uma distância bestial, quando se sabe que, na verdade, há indivíduos que não merecem tal epíteto. Essa formalidade de cumprimento soaria idiotice, porquanto éramos da mesma faixa etária e tínhamos confiança entre si.

O confessionário tinha a porta escancarada para a confissão coletiva – e cada uma soprava sua súplica olhando dentro de meus olhos como se eu fosse um oráculo, o que me levava a dizer-lhes que delegado não é padre e no caso presente eu era suas amigas sem barreiras sacerdotais.

A maioria afirmava que estava “tisga” de carinho, seca de homem! Todavia, estudavam e seus pais não admitiam chamego com homem, a não ser para casar na sequência do namoro. Não havia, portanto, nenhum “espírito santo de orelha” que, pelo menos, jogasse um pequeno flerte, por saber da exigência brutal de seus pais.

As meninas diziam-me que se animavam quando chegava um sacerdote para a igreja, de preferência do tipo galã bonito, cheio de vigor físico, estampa de másculo que era disputado entre elas para saber quem teria a felicidade de desfrutar o prazer de tê-lo em seus braços, mesmo que em sonho, longe da vigia dos pais e seus capangas.

As meninas decepcionavam-se sempre com a frieza dos padres que só pensavam em rezar, fazer quermesse e andar em lombo de burro pelas Santas Missões, a chamada “Desobriga”, não desprezando a “papança” de leitoa assada e galinha de capoeira, daí se dizer que “barriga de padre é cemitério de galinha;” gargalhadas aos quatros ventos!

Concluíram que o jeito seria se convencerem mesmo de que não adiantava pensar em fazer amor com homem de batina, pois este é vacinado contra as “escondidas” da mulher, tendo que baixar o fogo com gelo sempre que estivessem atacadas. Não sabiam o porquê de a cúria papal teimar para que padre seja “capão”, forçando-o ao celibato, impedindo-o de procriar e contrariando a própria natureza e princípio bíblico: “Crescei e multiplicai!”

As “puritanas” louvaram aos Céus quando a praga preta (vassoura de bruxa) dizimou o cacaueiral, forçando os coronéis a abaixar a valentia e a soberbia, e se preocupar com os prejuízos na lavoura, tendo que acabar com o império e a arrogância – sem dinheiro no bolso – em manter os capangas que vigiavam suas filhas.

Comemoraram com plenitude de prazer a ação letífera da praga preta. Só poderia ser maldição devido às estripulias que os coronéis faziam no sul e no extremo-sul do estado, com riqueza suja de sangue, etc. Deixando os “coronéis” quebrados, isso resultava em ação libertária para que pudessem quebrar os “três vinténs”, verdadeira “vendeta”, e elas podiam “fazer neném” debaixo das árvores de pequenas e grandes frondes, não esquecendo, também, as “barcaças”, local quente para as amêndoas do cacau, não raro ouvindo-se o gemido dos meninos que nasciam em meio aos caroços, uma verdadeira febre de amor livre.

Dentre as outrora santinhas e puritanas que viviam a rezar com um olho na missa e outro no padre havia Carolina dos Prazeres, carregada de janeiros, denominada de Beata Santinha. Algumas se  casaram, outras permaneceram com as “escondidas” lacradas que, apesar de tantas bobagens que conversavam, mesmo assim conservaram a “coisa” intacta!

A verdade é que se tratava de donzelas de boa formação, minhas amigas desde menina-moça. Elas tinham confiança em mim como uma caixa inviolável de segredos. Não obstante eu ser conhecido de seus pais, elas acreditavam que, de forma alguma, eles saberiam o que eu ouvia no confessionário.

Chegou o momento de minha partida para cumprir outras missões pela Bahia afora. As amigas me fizeram uma festa-surpresa, caprichada com as presenças de outros amigos, inclusive várias ovelhas do templo eclesiástico, Frei Astósio, este, disputador de cerveja na porrinha. Despedi-me com sentimento de tristeza, mas sempre na esperança de reencontrá-los, o que esperava não demorar por muito tempo.

Notava que Carolina dos Prazeres, a mais madura das ovelhas me tinha uma atenção especial, fazendo com que perguntasse aos meus botões se dava namoro. Todavia, tirei da mente o que somente passava de uma tolice da minha parte visto que as considerava como irmãs.

Mantive o elo de amizade com a cidade que me conferiu o título de cidadão. Achei que não merecia, porque simplesmente eu cumprira o dever de ofício, mas jamais perdi o vínculo com a cidade ou com meus amigos, não me esquecendo de perguntar pelas velhas amiguinhas que hoje estão em lugares diversos e outras Deus já levou para descanso eterno.  Saudade! Não vendiam o corpo!

Ainda no meu andejo, estando em Itamaraju – outrora Escondido (distrito de Prado) – quando me deparei com a Beata Santinha, Carolina dos Prazeres, aos setenta anos, ainda carregando sua anca de saracoteio convidativa, uma parelha de mamilos duros e retilíneos, com seu sorriso angelical, que me fez um cortejo agradável e atencioso.

Carregava a própria felicidade entre os lábios. Antes que perguntasse sobre as ovelhas de Jesus, foi logo proclamando que estava de olho em Francisco, dizendo: “Espero por sua decisão sem demora”. Essa intervenção deixou-me estático diante do enigma Francisco, um terremoto, portanto, de grande abalo sísmico.

Deu-me informação sobre o paradeiro das ovelhas amigas, com minúcias. Todas viviam felizes com seus companheiros gozando de saúde; também, citou os nomes que não mais pertenciam à vida telúrica.

– “Meu amigo,” prosseguiu a Beata Santinha: “eu estou rezando para que o papa Francisco acabe logo com esse tal de celibato que proíbe o padre de fazer amor, clarear as vistas. Garanto que minhas “escondidas” estão reservadas esperando casar-me com um padre setentão que paquerei na cidade de Caravelas há tempos e nos correspondemos bastante.”

– Perguntei-lhe, “Você não amarrou o facão devido à janeirada?”Aguenta a quebra dos “três vinténs”?!

– Respondeu-me, “Largue de ser bobo que estou “selada,” conservadíssima com o meu facão amolado, afiado e pronto para cortar qualquer madeira, mesmo que seja de baraúna ou jacarandá. Assim que Francisco disser que padre deixa de ser capão e pode deitar com mulher, casar, você será convidado para ser padrinho do meu casamento.”

Despedimo-nos com calorosos abraços e beijos sinceros de velhos amigos, dando glória a Deus por eu ter tido um encontro marcante e trilhado de alegria e prazer!

Geraldo Dias de Andrade é Cel. PM/RR – Bel. em Direito – Membro da Academia Juazeirense de Letras – Escritor – Cronista – Membro da ABI/Seccional Norte.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *