Ditadura militar mobilizou tropa para silenciar ex-presidente do STF
Essa é a história do dia em que Aliomar Baleeiro, ex-presidente do STF, embarcou num Fusca azul, ao lado da esposa e de outras três pessoas, e tentou furar um cerco policial em Londrina, em plena ditadura.
Lembrei da história por causa das comemorações, neste mês de outubro, dos 25 anos da Constituição Cidadã. Li vários relatos sobre os constituintes, os debates em Brasília, as negociações, os heróis. Pouco se disse, porém, sobre o longo e difícil processo político que levou à convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Foram mais de dez anos.
Raros e corajosos políticos aderiram à ideia no início (eram os chamados autênticos do MDB). Mais raros ainda foram os juristas que defenderam a constituinte como saída para o impasse político em que o Brasil estava atolado desde 1964.
Não era fácil. A ditadura sabia que a proposta, por mais que parecesse cândida e vinculada ao ideário liberal burguês, era perigosa: tinha o poder de aglutinar forças de diferentes matizes ideológicos e ameaçá-la.
Aliomar Baleeiro, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), foi um desses juristas pioneiros na defesa da Constituinte. Os militares não gostavam do que ele dizia, mas não se atreviam a silenciá-lo. Sua estatura política não permitia.
No ano de 1977, porém, destacava-se na política como dissidente do regime, com críticas aos atos institucionais autoritários. O antigo udenista defendia a ideia de que o País precisava de uma nova constituinte.
Foi naquele ano de 1977 que ele recebeu um inesperado convite. O Diretório Central dos Estudantes da Universidade Estadual de Londrina, um destacado foco de resistência à ditadura no Paraná, queria que ele fosse à cidade para participar de um debate sobre a assembleia constituinte.
Com 72 anos e sérios problemas cardíacos, o jurista relutou. Mas acabou aceitando e, no dia combinado, 2 de junho de 1977, desembarcou no acanhado aeroporto de Londrina. Muito cansado, mas risonho e simpático, ao lado de sua companheira, dona Darli, foi recebido por alguns estudantes e levado para um modesto hotel no centro da cidade.
O debate estava marcado para a noite do mesmo dia, no Teatro Universitário. Os outros debatedores convidados eram o jurista Dalmo Dallari, dos primeiros a defender constituinte e autor de um texto sobre o tema, e o jornalista Sérgio Buarque de Gusmão, do jornal alternativo Movimento, que incluía em seu programa político a convocação da assembleia. (1)
O debate nunca aconteceu e Baleeiro não teve tempo de ver a concretização da ideia que defendia. Sobre o que ocorreu em Londrina naquele dia, o então presidente do DCE, o jornalista José Antonio Tadeu Felismino, conta o seguinte:
“Os convites ao Dalmo e ao Sérgio foram tranquilos. O problema era convencer o Aliomar, udenista e conservador de alto quilate, que tinha se aposentado no STF e vinha se manifestando aqui e ali em favor da democracia. Ele já estava velhinho e com problemas de saúde e foi só após longas conversas telefônicas com dona Darli, a sacudida esposa de Aliomar, que foi possível esse feito notável, trazer a Londrina o ilustre casal, que vivia no Rio.
Confirmada a presença dele, saímos atrás de patrocinadores para bancar as passagens de avião e todo o evento. Além de velhos parceiros, que ousavam desafiar a ditadura e sofriam pressões por apoiarem nossas ações, fomos atrás de escritórios de advocacia. Achávamos que os nomes de Dallari e, principalmente, Baleeiro, teriam efeito sobre eles. Conseguimos o suficiente, mas muita gente não acreditou que o ex-ministro do STF realmente viria. Um advogado conhecido e professor da UEL, o já falecido Gilney Carneiro Leal, chegou a nos desafiar. Disse que o procurássemos depois do evento, se o Aliomar viesse.
Recebemos nossos convidados na tarde do dia combinado e os levamos para o Hotel São Jorge. Teve gente que criticou e achou um absurdo instalar o Aliomar e a esposa naquele hotel, que consideravam fraco. Mas foi o único que deu as diárias como patrocínio
O debate estava marcado para as 20 horas. Lá pelas seis da tarde passei no hotel para levar os convidados para jantar num restaurante italiano que também patrocinava o evento. O único que aceitou sair, porém, foi o Dalmo Dallari.
No restaurante, ele pediu uma sopa. Ficamos conversando. Ele se mostrou muito gentil, educadíssimo, enquanto eu tentava controlar minha ansiedade. Tinha medo de que não aparecesse ninguém para o debate.
De repente, lá pelas sete e tanto, vejo alguém do lado de fora do restaurante acenando para mim. Saí para ver o que era. A pessoa estava lívida e, ao trancos e barrancos, me disse que toda a região onde ficavam a sede do DCE e o Teatro Universitário estava cercada por tropas da PM e do Exército. Alguns estudantes estavam presos no DCE.
Eu devia estar num estado lastimável quando voltei para comunicar o fato ao Dallari. Ele ouviu atentamente, procurou me acalmar e disse para que eu ficar à vontade para voltar ao hotel e tomar as providências necessárias. Depois voltou, placidamente, à sua sopinha.
No hotel, o caos já estava instalado. Dois camburões militares estavam parados diante da entrada, ao mesmo tempo que chegavam estudantes, procurando informações e orientações sobre o que fazer.
Subi até a apartamento do Aliomar e dona Darli. Eles e o Sérgio Buarque estavam reunidos com um enviado do ministro da Educação, Ney Braga, o senhor Justino Alves Pereira. Eu quis entrar, mas alguém me disse para esperar do lado de fora.
Soube depois que o enviado do ministro trazia um pedido expresso dele para que Aliomar e sua esposa ficassem no hotel, para que não fossem ao local do debate, porque podia ser perigoso para eles.
Dali a pouco chegou o Dalmo e entrou. Não demorou muito e todos saíram e tomaram o elevador. Entrei com eles e foi nessa descida, tensa, silenciosa e apertada que ouvi a dona Darlizinha, forte e incisiva: “Doutor Justino, nós não viemos do Rio de Janeiro para ficar dentro de um quarto de hotel”.
La embaixo, no acanhado hall do hotel, já tinha chegado mais gente e a confusão era maior. O doutor Justino escafedeu-se e a molecada do DCE começou a resolver como levar os nossos quatro convidados até o local do debate, uma vez que, puxados por dona Darli, era isso que eles haviam decidido fazer. Não iam deixar de ir ao debate por conta própria. (2)
Foi então que resplandeceu à nossa frente o Fusca azul da Maria Alice, que participava da organização do debate. O Aliomar, a dona Darli, o Dalmo e o Sérgio entraram no carro e a Maria Alice, com seus 20 anos, assumiu o volante e tomou a direção do evento. Com os dois camburões da PM atrás. Ninguém sabia se estavam ali para proteger ou prender o grupo.
O carro não chegou ao local. Foi parado numa das barreiras policiais que haviam sido montadas em todas as ruas que davam acesso ao teatro. O policial disse à Maria Alice para dar meia volta (3). Eles regressaram ao hotel, mas com a sensação de que não haviam se rendido.
Eu retornei ao hotel a tempo de ver Aliomar dando sua declaração célebre sobre o episódio. A um repórter que lhe perguntou se era uma pessoa perigosa para o País, ele sacou do bolso de seu paletó um livrinho, uma pequena edição Constituição Federal em vigor na época, e disse que era sim um homem muito perigoso, porque carregava aquela perigosa arma.
Os repórteres da Folha de Londrina e os correspondentes do Estadão, de O Globo e da Folha de São Paulo estavam todos lá. No dia seguinte a Folha de Londrina deu uma ampla cobertura ao ocorrido e durante vários dias a imprensa nacional repercutiu aquele fato lamentável: a proibição de um ex-ministro do STF de falar a estudantes sobre direitos humanos e constituinte (4).
Na manhã seguinte, fomos buscar nossos convidados no hotel para levá-los ao aeroporto. Era uma linda manhã de outono, azulzinha, dourada e fria, e mais de cem pessoas estavam à espera deles. Haviam ido espontaneamente ao aeroporto, sem aviso, sem nenhum convite, cheias de coragem, para ver, desagravar e aplaudir nossos convidados, especialmente o velho Aliomar. (5)
Na base do improviso, eles subiram na escada que dava acesso ao mezanino do velho aeroporto de Londrina e de lá saudaram os presentes. Foram aplaudidos e celebrados com muita vibração até a hora de embarcarem.”
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(1) Além de pouca gente para defender a Constituinte, havia divergências entre elas sobre o processo. Baleeiro, Dallari e Gusmão defendiam posições diferentes.
(2) Dias atrás, ao me encontrar com Dalmo Dallari, numa visita dele à redação do Estado, perguntei se lembrava do episódio e de dona Darli. Ele sorriu e disse, com uma certa candura: “Se não fosse a dona Darli, não teríamos saído do hotel naquele dia. Ela foi muito firme. Foi decisiva.” (3) Maria Alice, hoje professora em Bombas (SC), estava matriculada no curso de serviço social. Ela conta que, depois de ter sido parada na primeira barreira, tentou outros caminhos. Mas o grupo foi parado em todos.(4) Baleeiro morreu no dia 3 de março de 1978, aos 72 anos. A Constituinte só se reuniu dez anos depois, em 1988. Na edição do dia seguinte ao de sua morte, o Estado dedicou-lhe uma página. Para vê-la clique aqui.