Em 1919, Cecília Meireles publicou o mais clandestino de seus livros: “Espectros”. A então jovem normalista estreava imersa na estética parnasiana, a tal ponto dissonante de seu futuro estilo que ela, simplesmente, eliminou o livro de sua bibliografia, como se esses Espectros jamais houvessem existido.
Em 1923, liberta dos renegados e parnasianos fantasmas da adolescência, Cecília estreia pela segunda vez, com “Nunca mais… e Poema dos poemas”. A década de 1920 testemunhará um fecundo consórcio entre ela e o marido, o artista plástico português Correia Dias, pai de sua três filhas, amigo de Fernando Pessoa, e ilustrador de todos os livros da esposa. Daí advirão “Criança, meu amor”, de 1924, e “Baladas para El-Rei”, de 1925.
A parceria foi brutalmente interrompida no dia 19 de novembro de 1935, quando a caçula, Maria Fernanda, chama Cecília para apontar-lhe, na sala da residência, o corpo do pai, que se enforcou sem deixar sequer um bilhete de adeus, transferindo para a viúva a responsabilidade de sustentar a si e às filhas do casal.
“Nunca mais…” e “Baladas para El-Rei” revelam uma escritora de mérito, ainda que excessivamente tributária dos padrões estéticos do Simbolismo. Talvez por isso, ao publicar, pela Editora Aguilar, em 1958, sua “Obra poética”, ela tenha optado por excluir ambos os livros. Porém, diversamente do tratamento concedido a “Espectros”, não os apagou de sua bibliografia.
A obra “autorizada” pela escritora se inicia somente com o quarto volume de poemas, “Viagem”, vindo a lume em 1939, pelo Editorial Império, de Lisboa. Lê-se, como um galardão, na capa e na folha de rosto: “Primeiro Prémio de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 1938”.
A vitória de Cecília, num controverso concurso de acalorados embates, teria representado a afirmação da poesia moderna, enfim enaltecida e agraciada pela ABL. Convém, todavia, restabelecer a verdade factual: a primazia não coube a Cecília Meireles. Convoque-se, antes de Viagem, mais um fantasma literário: o livro, hoje de todo esquecido, “Poemas caboclos”, de Vinicius Meyer, premiado pela ABL em 1934. A coletânea, sem ostentar a qualidade da obra de Cecília, já é, todavia, inteiramente modernista, no emprego sistemático do verso livre, na total ausência de rimas, na temática regionalista e na linguagem coloquial, em certos aspectos próxima à de “Cobra Norato”, de Raul Bopp (1931). Ao descrever a mineração, as catas de ouro, Meyer assim se expressa: “como se um bando de noites/ surgisse de dentro da terra/ trazendo, nas mãos, punhados de sol”. Em 1936, foi a vez de outro estreante ganhar o prêmio da Academia com poemas igualmente distanciados da tradição parnasiana. Seu nome: Guimarães Rosa; seu livro. “Magma”.
Trata-se de harmonioso conjunto composto por várias das obras-primas da autora, dentre as quais “Motivo” – “Eu canto porque o instante existe /e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ Sou poeta”– , “Retrato” – “ Em que espelho ficou perdida / a minha face?” –, “Canção” – “Pus o meu sonho num navio/ e o navio em cima do mar;/ – depois, abri o mar com as mãos/ para o meu sonho naufragar” –, “Guitarra”: – “A maior pena que eu tenho,/ punhal de prata,/ não é de me ver morrendo,/ mas de saber quem me mata”.
“Sou poeta”, aliás, é verso citado para legitimar o substantivo na condição de comum de dois gêneros, a exemplo de “artista”, e assim poder prescindir da forma feminina “poetisa”. O dicionário Houaiss, no entanto, o considera nome masculino. Na atualidade, devido a suposta carga pejorativa – como se “poetisa” fosse a mulher que escreve maus poemas –, há uma nítida tendência a eliminar o vocábulo feminino em prol da utilização de “poeta” para designar ambos os gêneros. Ora, Cecília jamais valeu-se do termo “poeta” para referir-se a uma autora de poesia, ao contrário do que se poderia, por equívoco, inferir-se do verso em questão. Nele, com clareza, ela se reporta arquetipicamente ao “poeta”, substantivo masculino, acima da distinção de sexo, englobando homens e mulheres na mesma categoria. Caso ela pretendesse identificar-se como “a” poeta, teria necessariamente de se declarar, versos adiante, “irmã”, em vez de “irmão”, “das coisas fugidias”, e tal não ocorreu. Além disso, para dirimir quaisquer dúvidas, nos originais datiloscritos de “Motivo”, encaminhados ao concurso da ABL, Cecília fez questão – pela única vez ao longo do livro – de colocar o poema entre aspas, enfatizando que nele não se registrava a manifestação direta de sua fala, mas o discurso de um Outro, de quem ela, pelas aspas, se fazia mediadora e porta-voz. Esse Outro é o Poeta, na representação de todos os poetas e de todas as poetisas.
Dada a excelência de “Viagem”, causa espanto que pudesse ter havido tanta polêmica e resistência na atribuição do prêmio da ABL. Hostilidades provindas, em especial, do obstetra e acadêmico Fernando Magalhães. As razões da animosidade nunca foram de todo esclarecidas, mas é provável que a ele tenha incomodado a desassombrada conduta de Cecília Meireles em artigos jornalísticos na defesa de uma educação pública laica, baseada no ideário da “Escola Nova” propugnado por Fernando de Azevedo. A celeuma chegou como escândalo às páginas dos jornais. Coube ao relator do prêmio, Cassiano Ricardo, efetuar vigorosa defesa do livro de Cecília, posteriormente estampada em A Academia e a poesia moderna (1939). O obstinado opositor de “Viagem” propunha laurear a obra, até hoje inédita, “Pororoca”, de Wladimir Emanuel, de cujas não muito profundas águas poéticas Cassiano Ricardo pescou e tornou público o verso “milho, algodão, mandioca, tabaco, feijão”. Além de desqualificar “Pororoca” e outros competidores, o relator não poupou a figura do proponente, desferindo dardos envenenados na direção do confrade. Ao cabo da discussão, seu parecer foi aprovado com apenas dois votos contrários – os de Fernando Magalhães e de Alceu Amoroso Lima.
Vinte e sete anos depois, em 1965, a poesia de Cecília foi novamente consagrada pela Academia, dessa feita com o prêmio máximo da instituição, o Machado de Assis, excepcionalmente concedido em caráter póstumo. Cecília Meireles, mesmo em sua ausência física, tornou-se a primeira poetisa a conquistá-lo. Antes, do plantel literário feminino, saíra-se vitoriosa Tetrá de Teffé, em 1941, pelo romance “Bati à porta da vida”, numa época em o prêmio contemplava unicamente publicações avulsas. Na sequência, e já na configuração atual – que releva o conjunto da obra –, ele foi atribuído, em 1958, à ficcionista Rachel de Queiroz.
Pouco brasileira?
A contínua e qualificada produção de Cecília lhe asseguraria o posto de uma das maiores vozes de nossa poesia, desde Viagem, Vaga música, de 1942, Mar absoluto, de 1945, até Solombra e Ou isso ou aquilo, de 1964, ano de sua morte. Pela ascendência açoriana, pelo casamento com Fernando Correia Dias, pelos laços de amizade com escritores portugueses, alguns críticos acusaram-na de ser pouco brasileira. Bastaria o mergulho em nosso passado histórico efetuado pelo Romanceiro da Inconfidência (1953) para desmentir a acusação. Ademais, em nome de que feroz controle de fronteiras impedir que ela também cantasse a Holanda, a Itália, a Índia, o Japão, e tantos territórios a que seu corpo ou sua imaginação a transportaram? A grande poesia prescinde de passaporte, dispondo de salvo conduto para circular em liberdade como palavra cidadã do mundo.
Cecília Meireles não desenvolveu uma literatura circunstancialmente nacional; ela afirmou-se como notável escritora da língua portuguesa, para além das delimitações geográficas. Poesia em trânsito, na perseguição das coisas que ainda não têm nome. Poetisa pelos caminhos da terra, pelas asas do ar: não por acaso, considerava-se “pastora de nuvens”. Poetisa pela trilha das águas, Cecília, a incansável navegante, com sua vaga música em perpétua viagem pelo mar absoluto.
Antonio Carlos Secchin é poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras