Em 2008, quando tinha 23 anos e estava no quarto ano de Medicina, o goiano Marcos Vinícius Nunes da Silva sofreu uma lesão cervical nas vértebras C3, C4 e C5 em um acidente de carro em Porto Velho. Percebeu na hora que estava tetraplégico. “Deixei de ser estudante de Medicina para ser paciente.”
Foram 11 meses de recuperação motora após a cirurgia. Mas sua tetraplegia parcial não o impediu de se formar e de atuar como clínico-geral em unidade de pronto-atendimento. “Colegas de classe, professores da faculdade e mesmo outros médicos achavam que a Medicina não era mais para mim.”
Segundo ele, alguns colegas vetavam sua presença em grupos do internato, período em que o aluno de Medicina estagia em hospitais e é supervisionado em tomadas de decisão e aquisição de destreza em procedimentos. Três deles disseram a Silva que ele devia estar fazendo sessões de fisioterapia, e não frequentando a faculdade. “Julgaram meu aspecto físico, e não o meu intelectual.”
Dos pacientes, a receptividade tendeu a ser outra: “Até hoje, doentes que ainda não decoraram meu nome pedem para se consultarem com o ‘médico da cadeira (de rodas)'”. Em 2016, três anos depois da formatura, abriu uma clínica popular em Goianésia (GO), onde já atendeu mais de 15 mil pessoas. Ali, alterna entre uma cadeira de rodas elétrica e outra manual e atende os pacientes em uma maca adaptada a sua altura.
O goiano afirma ter sido o primeiro tetraplégico a se formar em Medicina no Brasil, e nas últimas eleições alcançou outro feito: se tornou o vereador mais bem votado de Goianésia.
Silva está entre os que celebram um inciso do novo Código de Ética Médica que estipula ser “direito do médico com deficiência ou com doença, nos limites de suas capacidades e da segurança dos pacientes, exercer a profissão sem ser discriminado”.
Censo de médicos com deficiência
Em vigor desde 30 de abril, o Código de Ética Médica ganhou esse adendo sobre profissionais com deficiência por sugestão do pediatra Sidnei Ferreira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e conselheiro do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Em 2015, após ser convidado para um congresso sobre acessibilidade, Ferreira propôs ao CFM uma campanha que levantasse o número de médicos e de alunos de Medicina que portassem alguma deficiência visual, auditiva ou motora. Queria saber também se essa deficiência era congênita ou adquirida. As perguntas constariam dos cadastros dos Conselhos Regionais de Medicina, que a campanha estimularia seus membros a responder. “Ao conhecer melhor esse universo, poderíamos apresentar propostas de políticas públicas que melhorassem a acessibilidade nas áreas de saúde não só para os médicos, mas também para pacientes”, diz Ferreira.
Passados quase três anos do início da campanha (ela começou em julho de 2016), 512 médicos, de um universo de 450 mil em atividade no país, afirmaram ter algum tipo de deficiência. Grande parte deles (124) atua em Minas Gerais, seguidos de Rio Grande do Sul (50), Santa Catarina (43), Distrito Federal (35) e Goiás (32). Na próxima fase da campanha, o CFM buscará reunir esses médicos para conhecer suas dificuldades no trabalho e saber se sofrem ou não discriminação.
Ferreira dá como exemplo de adversidade a acessibilidade nos centros de atendimento à saúde do Rio. Uma fiscalização do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) feita de março a junho de 2016 mostrou que, em 24 unidades de saúde, nenhuma tinha condições adequadas de acessibilidade tanto para profissionais quanto para pacientes e acompanhantes.
Sem acessibilidade
O cardiologista e cirurgião vascular alagoano Hemerson Casado tem certeza absoluta de que o preconceito começa pela falta de condições de trabalho para o médico com necessidades especiais, seja nos hospitais, nos consultórios médicos ou nos postos de saúde. “Uma multidão acha que acessibilidade é apenas rampa para cadeira de rodas, mas a estrutura das construções, a ergonomia de portas, corredores, salas, mesas, armários, equipamentos hospitalares, tudo conspira para que o portador de necessidades especiais passe dificuldades, constrangimentos, humilhações”, elenca Casado. “Fora o preconceito de funcionários e colegas médicos que acham que deveríamos ficar em casa esperando a morte chegar.”
Aos 45 anos, no auge de uma carreira sólida – atuou em hospitais no Brasil, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Escócia -, Casado recebeu o diagnóstico de uma grave e rara doença neurodegenerativa, a esclerose lateral amiotrófica (ELA). Ele, um triatleta que treinava para a prova do Ironman, viu-se às voltas com uma paralisia que lhe tolhe gradualmente os movimentos.
“Contei primeiro para a minha esposa, depois para o meu melhor amigo, então para os meus sócios, mas ninguém conseguia absorver a notícia”, diz. “Primeiro porque a ELA é uma doença ainda pouco conhecida, segundo porque eu apenas puxava um pouco a perna e ninguém poderia imaginar que eu tivesse uma doença fatal.”
Casado manteve o consultório e as cirurgias cardíacas por mais um ano. “Mas, aos poucos, as pessoas que sabem da doença vão falando para os que não sabem e, quando você se dá conta, muitos já comentam às escondidas, alguns com pena, outros criticando, por ignorância ou preconceito, o fato de eu continuar a trabalhar constantemente nesse período.”
Com a evolução da doença, já então sem condições de operar nem de examinar os pacientes, anunciou para suas duas equipes o afastamento definitivo da profissão. “Chorei como nunca tinha chorado na vida.”
Aos 52 anos, o alagoano, que vive em Maceió, hoje não anda nem fala. Comunica-se por meio de um software sueco, cujo mouse ótico lhe permite teclar com o piscar dos olhos. Colegas o convidaram para continuar trabalhando como professor e consultor. “Mas eu não conseguia suportar as conversas de pé de ouvido, os olhares pesados sobre mim”, diz. Virou ativista de combate às doenças raras. Tem um instituto que foca nessa linha, atua politicamente para conseguir verbas para pesquisa e luta para construir um polo de biotecnologia e biomedicina em doenças raras.
Para ele, o CFM e a Associação Médica Brasileira (AMB) têm feito um trabalho para corrigir distorções, mas ainda é pouco. “O preconceito tem que ser combatido com ações de classe, políticas públicas e muita informação, mas não aquela que vitimize o profissional, e sim que prove que ele é mais do que capaz”.
Bom senso ante obstáculos
Formado em 1982 na Universidade de São Paulo (USP), o patologista Raymundo Soares de Azevedo Neto diz nunca ter notado preconceito ou restrição por parte de colegas ou chefias. Aos nove meses de idade, ele contraiu poliomielite durante um surto dessa infecção viral na sua cidade, Uberaba (MG). Para lidar com a paraplegia e a escoliose, consequências da doença, ele usa muletas e órteses nas duas pernas, o que lhe garante sustentação e equilíbrio.
Diante de tecnologias que possam compensar eventuais problemas locomotores no exercício da profissão, Azevedo Neto defende o bom senso. “Em tese, toda especialidade médica permite adaptações a eventuais deficiências profissionais, ao mesmo tempo que impõe limitações de ordem prática”, afirma.
Um médico com deficiência seria mais sensível ao sofrimento dos pacientes? Azevedo Neto discorda. Para ele, essa atitude humanista e empática está mais ligada à personalidade do profissional de saúde. “Há médicos e médicas que despertam uma empatia enorme sem nunca apresentar problemas de saúde significativos com eles ou com pessoas próximas”, diz.
Em sua experiência, C. Lee Cohen, médica residente no Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, afirma que a perda parcial de audição nos seus dois ouvidos a ajuda a lidar com pacientes que tiveram perda auditiva, principalmente os idosos. “Sei com quais sons eles têm dificuldade, então explico com outras palavras, para que compreendam o que estou dizendo.”
Para o advogado Henderson Fürst, doutor em Bioética e professor de pós-graduação na PUC-Campinas, a mudança no Código de Ética Médica se alinha à Convenção da Organizações das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2008, e sua incorporação no Brasil por meio do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146 de 2015).
Fürst, portador de uma rara doença degenerativa, a encefalomielite miálgica, também conhecida como síndrome da fadiga crônica, afirma que “essas normativas refletem a mudança na compreensão do que é deficiência, saindo do modelo técnico para o modelo social, ou seja, entendendo que o fator limitador é o meio em que a pessoa está inserida, e não a deficiência em si”.
Para ele, a principal mudança seria a formulação de políticas de acessibilidade que diminuam ou eliminem restrições aos profissionais.
Preconceito sentido na pele
O Código de Ética Médica também inclui profissionais com doenças. A psiquiatra Kátia Maria Monteiro Rodrigues de Carvalho, que atende em Rio Claro (SP), ouviu certa vez esta confissão desinformada de uma paciente: “Doutora, eu tinha medo de vir aqui porque falaram que a senhora era esclerosada”. Carvalho ri. “Alguém deve ter dito que eu tenho esclerose múltipla, que de fato tenho, e ela pensou que isso era sinal de demência.”
Graduada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, Carvalho fez mestrado em saúde mental na Unicamp e estava prestes a se tornar docente na Escola de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, quando teve sua primeira crise provocada por essa doença autoimune que afeta primordialmente os nervos. Tinha 28 anos e entrou em insuficiência respiratória. Recuperou-se, mas haveria outras crises – uma delas a deixou acamada por um ano -, que culminaram na interrupção do atendimento de alguns pacientes seus.
“Do ponto de vista de consultório, eu várias vezes tive de recomeçar, recomeçar, recomeçar, e isso é muito difícil”, diz.
Quando daquela longa crise, Carvalho esteve prestes a ser aposentada por invalidez. “Entrei em desespero profundo, entendi como ‘seu trabalho acabou’.” Os papéis não andaram, e Carvalho acabou por se aposentar por tempo de serviço em 2016. No entanto, continua atuando quase com a mesma carga horária. Ela entende que, aos 55 anos, seu organismo está mais estabilizado diante da esclerose múltipla.
Desde 2017, Carvalho é diretora clínica e técnica da Casa de Saúde Bezerra de Menezes, hospital psiquiátrico em Rio Claro. Também manteve o consultório e há um ano iniciou o curso semipresencial de Engenharia de Computação na Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp).