40 anos depois de Serra Pelada, garimpo é fonte de conflito e devastação

SEBASTIÃO SALGADO NA AMAZÔNIA

Serra Pelada

Em 1979, a descoberta de ouro no interior do Pará arrastou multidões de sonhadores para aquela que foi a maior mina a céu aberto do globo; da saga resultaram um buraco na terra arrasada, a mineração clandestina em área indígena e este documento visual que comoveu o mundo

‘Formiga’, trabalhador cuja função é carregar saco de até 40 kg, chega ao alto da mina via escada batizada de ‘adeus, mamãe’, em imagem de 1986 na Serra Pelada, como as demais deste especial

Leão Serva

Tudo aconteceu há 40 anos. Uma criança encontrou uma pedrinha dourada na beira de um riacho, em uma fazenda no interior do Pará. O pai levou o achado ao dono da terra, que enviou a pedra à cidade de Marabá para ver se o que reluzia era mesmo ouro.

Garimpeiros dizem que nada é mais rápido do que fofoca de ouro. Era o final de 1979. Junto com a confirmação da pepita descoberta à flor da terra, na região de Carajás, já chegaram de Marabá alguns garimpeiros. Em poucos dias, muitos outros.

O dono da terra tentou controlar o processo atribuindo a alguns homens a exclusividade da exploração e cobrando 10% do ouro extraído. Mas, em dias, eram milhares de garimpeiros, em meses, dezenas de milhares, e, em um ano, pelo menos 50 mil.

Por dez anos, Serra Pelada foi a maior mina a céu aberto do mundo. Quando a febre terminou, em 1990, houve migração de homens para Roraima, na terra yanomami. Lá, hoje, a mineração ilegal é foco de instabilidade e devastação e reúne cerca de 20 mil garimpeiros, segundo lideranças indígenas.

Duas semanas atrás, um soldado perdeu parte da mão em um confronto com garimpeiros. A Funai anuncia a abertura de postos fixos de vigilância na próxima quinzena. Garimpo e devastação andam juntos: o surgimento de Serra Pelada coincidiu com a intensificação do desmatamento no Pará, que desde os anos 1980 perdeu uma área de floresta equivalente ao estado do Ceará.

Desde o começo, os pioneiros do ouro de Carajás dividiram entre si a área sobre uma colina de 150 metros e a desmataram para cavar. Cada lote tinha 2 x 3 metros. Surgiu assim o nome que se tornaria conhecido em todo o planeta: Serra Pelada.

Ao longo dos anos, a colina foi dando lugar a um buraco com 200 m de profundidade e 200 m de diâmetro.

Levantamentos do governo no início dos anos 1970 já apontavam aquela como uma região mineral rica. Tudo estava reservado para a então estatal Companhia Vale do Rio Doce. Quando a empresa quis retomar o controle, percebeu que seria impossível fazê-lo sem o uso de forças de segurança.

O governo do general João Figueiredo (1979-1985) enviou então ao local, como interventor, o major Curió, apelido de Sebastião Rodrigues de Moura, que tinha participado da repressão à Guerrilha do Araguaia.

O militar chegou no início de 1980. Prometeu aos garimpeiros que a Vale não os expulsaria e extinguiu o dízimo cobrado pelo fazendeiro. Virou herói. Em contrapartida, delimitou uma grande área em torno da mina em que proibiu o porte de armas, a presença de mulheres e o consumo de álcool. Também obrigou que todo o ouro fosse vendido ao posto local da Caixa Econômica, que pagava à vista, mas abaixo do preço de mercado.

A repressão no centro de garimpo fez surgir a 30 quilômetros de distância a Vila Trinta, às margens da rodovia PA-175. O que Curió proibia na mina era livre ali.

“De dia é 30, de noite é 38”, era a referência aos constantes tiroteios na vila. Bebidas e prostituição seguiam preços praticados em boates de luxo no Rio e em São Paulo. Em meados de 1980, Curió decidiu organizar a Vila Trinta também, assumindo a função de “prefeito”.

O governo militar fez passar no Congresso uma indenização de cerca de US$ 55 milhões para a Vale do Rio Doce, que estava pressionada por acionistas minoritários. Com isso, os direitos de mineração ficaram com a cooperativa dos garimpeiros.

Em dez anos, uma quantidade impressionante de ouro saiu da mina -os cálculos chegam a mais de 100 toneladas, sem contar o contrabando. O Brasil, que fora o maior produtor do metal entre 1750 e 1850, voltou ao ranking graças à Serra Pelada.

Na segunda metade dos anos 1980, porém, a produtividade começou a cair. Em 1989, foram só 13 quilos, insuficientes para sustentar milhares de homens e manter equipamentos, como bombas que drenavam água no fundo da cratera.

Em 1992, o então presidente Fernando Collor decidiu cancelar a concessão aos garimpeiros e fechar o local. Serra Pelada virou o alvo de disputas judiciais entre garimpeiros e mineradoras.

Com as bombas desligadas, o lençol freático inundou o buraco, formando um reservatório com mais de 600 mil metros cúbicos de água, algo como 250 piscinas olímpicas.

Devido à poluição por mercúrio, no entanto, o lago não pode ser aproveitado nem para a criação de peixes.

Sebastião Salgado fotografou Serra Pelada em 1986, ao iniciar a documentação sobre o fim do trabalho manual, no seu projeto “Trabalhadores”. As imagens que captou, publicadas na Europa no final daquele ano, causaram grande repercussão. Cerca de 30 fotos foram editadas, e os demais negativos, arquivados.

Agora, aos 40 anos da descoberta do ouro, Salgado e a mulher, a curadora Lélia Wanick, reeditaram os originais. A nova seleção será exposta a partir de 17 de julho no Sesc Paulista, em São Paulo, onde também vai ser lançado o livro “Gold”, impresso em diferentes línguas para distribuição mundial pela editora Taschen.

Detalhe da subida de trabalhadores pela encosta da mina de ouro de Serra Pelada, no interior do Pará

Mina de ouro parecia formigueiro caótico, mas era um sistema bem organizado

SÃO PAULOA impressão que se tem ao olhar as fotos de Serra Pelada é de um formigueiro de gente em uma confusão absoluta. Mas no caos aparente havia uma ordem minuciosa.

“Logo aprendi que aquilo que à primeira vista parecia um movimento desordenado era, na verdade, um sistema muito sofisticado, no qual cada um dos mais de 50 mil trabalhadores sabia que papel havia escolhido desempenhar”, explica o fotógrafo Sebastião Salgado.

Para começar, é possível observar que as paredes da cratera não eram completamente verticais nem lisas. Elas mais pareciam uma composição geométrica, semelhante às gravuras do artista holandês Maurits Escher (1898-1972), com escadas subindo e descendo de pequenos espaços de terra de 2 m x 3 m, do tamanho de uma vaga de automóvel, que se projetavam como se estivessem pendurados na parede.

Esses lotes, chamados de “barrancos”, pertenciam aos pioneiros, os garimpeiros que chegaram nas primeiras semanas logo após a descoberta do ouro na região.

Eles formaram uma cooperativa, lotearam a mina e sortearam em 1979 e 1980 quem ficaria com qual dos mais de 200 “barrancos”.

Os donos dos lotes contratavam cinco tipos de trabalhadores. O primeiro era o “meia praça”, que definia quem iria escavar um certo local e que recebia 5% sobre o ouro encontrado no lote. Sua roupa estava sempre mais limpa que a dos outros, e ele não portava ferramentas.

Todos os demais eram assalariados: o “cavador” era quem rompia o solo com picaretas; o “formiga” levava para fora da cratera os sacos de terra que pesavam cerca de 40 quilos, subindo as escadas apelidadas de “adeus, mamãe”.

Esses trabalhadores eram monitorados pelo “apontador”, que contava quantos sacos subiam e que podia ser visto, com a camisa mais limpa, segurando um caderno de anotações.

Fora da cratera, os sacos eram entregues ao “apurador”, que lavava a terra, usando a bateia (bandeja redonda e funda), e depois fazia a separação do ouro usando mercúrio. Por último, era feita a queima do mercúrio, para purificar o metal.

O ouro encontrado era fundido em barras ou pepitas e vendido ao posto da Caixa Econômica Federal a um preço 15% menor do que o praticado no mercado internacional.

Quando um barranco produzia ouro, o garimpeiro-empresário ia bem, pagava as contas de seus empregados e embolsava o lucro. Quando passava algum tempo sem conseguir extrair, acabava por tomar empréstimos ou vender participação em seu barranco.

Quem fazia esse papel de banqueiro eram os pioneiros bem-sucedidos ou gente de fora que financiava os donos de lotes em troca de participações nos resultados do trabalho.

Muitos garimpeiros que trabalharam em Serra Pelada repetem ainda hoje uma lenda segundo a qual há, sob a antiga mina, uma laje de 50 toneladas de ouro puro. É um mito.

Briga de garimpeiros em Serra Pelada, cena bastante comum

Segundo Felipe Tavares, geólogo que estudou a serra de Carajás em seu doutorado, ali existe mesmo um depósito de ouro, mas está disperso em pequenos traços de rocha.

“Tem muito minério, mas não há um modelo de exploração que permita extraí-lo de forma economicamente viável”, diz Tavares, que é chefe da divisão de geologia econômica da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais.

Segundo pesquisadores, há mesmo 50 toneladas de ouro na rocha profunda de Serra Pelada. Mas seria preciso triturar toneladas de pedras e submetê-las a processos químicos para obter alguns gramas do metal.

Tavares conta que a Colossus, uma empresa canadense, investiu muito dinheiro em túneis para tentar acessar a rocha sob o lago, e percebeu que precisaria de muito mais para conseguir voltar a extrair algum ouro de Serra Pelada. A empresa acabou falindo em 2014.

O que explica a existência de reservas de ouro tão ricas em alguns lugares do Brasil, como o Pará, é a antiguidade do terreno. “Toda a serra de Carajás, que inclui Serra Pelada, foi formada no período arqueano, entre 2,7 bilhões e 3 bilhões de anos atrás”, diz o geólogo.

Nesses lugares, movimentos geológicos podem fazer com que um veio mais antigo aflore e fique exposto. Em Serra Pelada, o ouro aflorou há “apenas” 40 milhões de anos.

“Já no final dos anos 1960, os estudiosos sabiam que ali seria uma região rica porque foi encontrada a grande reserva de ferro de Carajás, em 1967. E onde há muito ferro, tende a ter outros minérios também, como ouro”, diz o geólogo.

Embora Serra Pelada tenha se tornado um símbolo, ela não é a maior mina do Brasil. “Na Amazônia, a reserva de Salobo, em Marabá, que vem sendo explorada pela Vale, é muito maior do que Serra Pelada. Ali, o ouro é secundário, o cobre é o principal”, afirma.

Se em Serra Pelada, como em Minas Gerais, o ouro aparece em depósitos subterrâneos profundos, em outros lugares da Amazônia ele está quase na superfície, como na areia das margens dos rios que atravessam a terra dos yanomamis, em Roraima, ou dos mundurukus, no Pará, na bacia do rio Tapajós.

É dessas áreas demarcadas que sai hoje boa parte da produção de ouro do país, extraído de maneira ilegal.

BRASIL FOI O PAÍS QUE MAIS PRODUZIU OURO NO MUNDO ENTRE 1750 E 1850

O Brasil há muito deixou a posição de maior produtor mundial, que ocupou entre 1750 e 1850.

No fim do período colonial, com produção de 16 toneladas ao ano, o país extraiu o ouro que financiaria a Revolução Industrial, na Inglaterra.

Com o esgotamento do garimpo de Minas Gerais, perdeu relevância no mercado internacional. A produção nacional só voltaria a crescer depois da descoberta de Serra Pelada, em 1979: em 1980, foram extraídas 40 toneladas; em 1985, 62 toneladas (4,1% do total mundial).

A queda da produção em Serra Pelada, na segunda metade dos anos 1980, foi compensada pelo garimpo na área yanomami, o que elevou o total para 80 toneladas em 1990.

O fechamento de Serra Pelada e a expulsão dos garimpeiros ilegais de Roraima, a partir de 1992, derrubaram o volume produzido, que chegou a 38 toneladas em 2005.

Com a crise de 2008, o preço do ouro subiu e gerou um novo ciclo de garimpo em vários pontos da Amazônia, como nas áreas dos yanomamis e dos mundurukus.

Essa extração ilegal se refletiu na produção, que foi para 58 toneladas em 2010 e 70 toneladas em 2012, último dado do Instituto Brasileiro de Mineração. Segundo o Conselho Mundial do Ouro, em 2018 foram produzidas 97 toneladas, mais que todo o período de Serra Pelada.

Vaivém na área de apuração, onde era feita a separação de terra e ouro

MULHER SE DISFARÇOU DE HOMEM PARA TRABALHAR EM SERRA PELADA

Marina Cantão é miúda, morena e franzina. No pescoço, leva pendurada uma pequena pepita de ouro. É a memória dos tempos de garimpo, que há muito ficaram para trás.

Seu restaurante em Boa Vista, capital de Roraima, o Marina Meu Caso, é apontado na internet como um dos melhores da cidade. Serve quase um só prato e uma bebida: peixe com baião de dois e cerveja.

O que falta em variedade gastronômica ela preenche com o principal tempero da casa: suas histórias.

Os casos preferidos são os que ela vivenciou em Serra Pelada. Como uma mulher pequenina conseguiu driblar a proibição imposta pelo poderoso major Curió, apelido de Sebastião Rodrigues de Moura, militar que, ao assumir o controle do garimpo no início de 1980, proibiu mulheres na área?

Sua resposta é semelhante à de outras mulheres que furaram o cerco: fazendo-se passar por homem.

Nascida na Ilha de Marajó (Pará), Marina chegou a Serra Pelada para trabalhar em um restaurante. Como milhares de brasileiros, sonhava garimpar e ficar rica. Um dia, morreu um travesti de Goiás, que também trabalhava em um restaurante da região. Marina falsificou a identidade do morto e se pôs a trabalhar no garimpo disfarçada de homem.

Logo constatou o que as histórias das corridas do ouro revelam: pouquíssimos ficam ricos e muitos não encontram nada. Quem se dá bem são os fornecedores de serviços essenciais aos trabalhadores.

Marina abriu um restaurante na violenta Vila Trinta, formada a 30 quilômetros do garimpo, e mantinha sempre à mão o revólver que lhe rendeu o apelido de “Goiana do 38” (ela seguia usando a identidade do morto, passando-se por travesti).

Quando o ouro de Serra Pelada começou a secar, em 1987, ela partiu em busca do novo Eldorado: as florestas de Roraima.

Com algum dinheiro, voltou ao garimpo, desta vez como empresária, operando na área chamada Paapiú. Controlava uma balsa com vários empregados e equipamentos necessários para o trabalho na margem de rios -bombas para jatear as barrancas, motor para dragar a lama e esteiras para apurar o ouro.

Os ventos viraram quando Collor reconheceu a Terra Indígena Yanomami e expulsou os garimpeiros, em 1992. Marina foi então para a Venezuela -ela diz que não se deu conta de que estava além da fronteira.

Em seguida à ação do governo brasileiro, o país vizinho realizou uma série de ações repressivas para impedir a ocupação de suas terras por garimpeiros ilegais. A aventureira perdeu sua balsa em uma blitz e ficou perambulando vários dias pela floresta, até encontrar um outro grupo de garimpeiros, com quem chegou a Boa Vista.

Ao se instalar na capital de Roraima, decidiu com o marido, Boboco, parar com as aventuras e voltar a se dedicar à culinária.

Seu primeiro restaurante funcionou em um barco no porto da cidade. Depois, instalou-o em um terreno às margens do rio Branco, onde está até hoje.

O centro do buraco cavado em Serra Pelada, que hoje virou um lago contaminado

Cresce em um ano a mineração ilegal na terra dos yanomamis

BOA VISTA (RR)Nos últimos meses, a Terra Indígena Yanomami, em Roraima, sofreu uma verdadeira explosão no número de garimpeiros.

O total deles passou de cerca de 3.000 a 5.000, no início de 2018, para 15 mil a 20 mil hoje, segundo a Hutukara, entidade que representa os indígenas, e agentes da Funai ouvidos pela Folha.

Desde o início dos anos 1990, quando a terra indígena foi criada e cerca de 40 mil garimpeiros foram expulsos, é a primeira vez que o número de mineradores chega à casa de dois dígitos de milhares. Há hoje na região quase um garimpeiro para cada yanomami brasileiro.

A Funai anunciou que, na segunda quinzena deste mês de julho, iniciará a reinstalação de bases de vigilância permanentes para o combate ao garimpo na terra indígena.

A primeira delas será no rio Uraricoera, principal rota de entrada e abastecimento para os garimpos.

‘Formigas’ com camisas listradas, usadas para que o ‘apontador’ identificasse o grupo que achava um filão de ouro em determinado lote;

No segundo semestre de 2018, o Exército realizou uma operação de combate ao garimpo, implantando bases fixas nos rios Uraricoera e Mucajaí, os mesmos onde a Funai pretende atuar a partir de agora. Após a medida, cerca de 2.000 homens deixaram a área por falta de abastecimento para suas atividades.

A decisão de suspender a operação militar, em dezembro passado, e a eleição de Jair Bolsonaro, que fez da crítica às reservas indígenas uma das plataformas de campanha, foram um sinal verde para os garimpeiros.

Desde a posse do novo governo federal, aproximadamente 10 mil novos garimpeiros chegaram à região, segundo os líderes indígenas.

O clima de tensão na área se acirrou no final de junho, quando uma embarcação de garimpeiros resistiu à ordem de parada dada por uma patrulha e arremeteu contra o barco do Exército. No incidente, um militar foi ferido e perdeu parte da mão. Um garimpeiro foi preso.

A nova ação da Funai atende a uma decisão judicial que definia o mês de junho como prazo para o restabelecimento das bases implantadas no início da década e suspensas em 2015 devido a cortes no orçamento.

‘Formigas’ sobem as escadas

No ano passado, decisão da Primeira Vara da Justiça Federal em Boa Vista, em ação iniciada pelo Ministério Público Federal, determinou que a Funai, a União e o governo de Roraima implantem e mantenham as bases, garantindo o orçamento necessário para seu funcionamento.

Além de um posto na calha do Uraricoera, devem ser implantados em seguida dois outros, um no rio Mucajaí e o terceiro na serra da Estrutura, próximo a um local habitado por um grupo yanomami isolado, chamado “moxihatetea” em língua yanomami. Em julho do ano passado, houve um conflito entre garimpeiros e membros desse grupo.

Os garimpos ilegais têm provocado grande impacto ambiental na área. A concentração de mercúrio no corpo dos moradores se tornou excessiva, e as aldeias localizadas próximas de rios estão sendo levadas a perfurar poços artesianos para evitar o consumo da água poluída. Além disso, os índios têm sido obrigados a evitar o consumo de peixes.

Um estudo publicado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em 2016 apontou níveis alarmantes do metal na população indígena da Terra Indígena Yanomami. Em algumas aldeias, o excesso do metal no corpo atinge 92% dos indivíduos.

O garimpo em Roraima é todo clandestino. Não há uma mina ou lavra oficializada em todo o estado, dentro ou fora de áreas indígenas.

Ao longo dos últimos cinco anos, esse garimpo se tornou mais intenso, profissional e organizado.

E, mais recentemente, a atividade se internacionalizou: o órgão do governo federal que acompanha as exportações (Comex) aponta que Roraima exportou 200 quilos de ouro para a Índia desde setembro de 2018, mesmo sem ter minas registradas.

Os sinais de aumento da mineração ilegal são evidentes pelo tamanho da devastação e pelos equipamentos utilizados, como o repórter constatou ao visitar a Terra Indígena Yanomami nos anos de 2014, 2015, 2018 e 2019.

Além de causar todos esses problemas, o garimpo também favorece a expansão da malária. A doença ainda está presente em toda a Amazônia, especialmente na periferia das cidades e nas pequenas vilas ribeirinhas. A sua incidência é potencializada com o desmatamento.

‘Apuradores’ usam bateia para lavar a terra em busca de ouro

Quando se corta a floresta, a população de mosquitos cresce, porque desaparecem seus predadores. Somem também os animais que os mosquitos atacam. Os garimpeiros e os índios, portanto, se tornam os seus alvos. E, ao picar mineradores contaminados, os mosquitos transmitem a doença a outras pessoas.

Quando a malária se espalha, os garimpeiros procuram os postos da Secretaria de Saúde Indígena das aldeias próximas, consumindo os kits de testes e remédios. O órgão que deve cuidar da saúde dos índios acaba, assim, destinando parte de seu orçamento para tratar invasores brancos que levam doença para a área indígena.

SUCESSO DE MAJOR CURIÓ NO PARÁ INSPIROU OCUPAÇÃO EM RORAIMA

Foi tamanha a popularidade do major Curió, o interventor enviado pelo governo à Serra Pelada quando ali explodiu o garimpo, que ele acabou atuando como “prefeito” da Vila Trinta, bairro que os garimpeiros passaram a chamar de Curionópolis. Em 2002, quando a vila se transformou em município -e foi batizada mesmo com o nome de Curionópolis–, o major foi eleito de fato como seu primeiro prefeito.

‘Formigas’ carregam sacos com terra para fora da mina

Segundo a Folha apurou na época, o sucesso em fazer dos garimpeiros uma força popular de apoio ao regime militar entusiasmou generais que, anos depois, quiseram ocupar a chamada Calha Norte da Amazônia. A ideia era afastar o fantasma das invasões estrangeiras e reduzir a porosidade das fronteiras.

Muitos militares entenderam que, se o Exército não conseguisse ocupar as fronteiras, os garimpeiros poderiam servir de tropa.

Logo no início do governo de José Sarney (1985-89), militares ligados ao gabinete da Presidência decidiram fomentar o garimpo de ouro em Roraima. Baseada em estudos do projeto Radam (Radar da Amazônia), realizado na década de 1970, uma conciliação entre militares, políticos, empresários e garimpeiros desenhou um plano cuja eclosão coincidiu com a decadência de Serra Pelada. Milhares de garimpeiros rumaram, então, para Roraima.

Quando a produção em Serra Pelada atingia o fundo do poço, em 1989, os garimpos no que hoje é a Terra Indígena Yanomami somavam 40 mil pessoas -quase três vezes a população indígena da área.

Depoimentos de garimpeiros com 50 anos ou mais contemplam sempre esses dois momentos: a busca do ouro em Serra Pelada, no Pará, e, posteriormente, a corrida para a área dos índios, no estado de Roraima.

TÉCNICA DE ENFERMAGEM GANHA R$ 9.000 POR MÊS COMO COZINHEIRA NO GARIMPO ILEGAL

Antônia, 43, é técnica de enfermagem, mas no garimpo é cozinheira. A experiência em tratar doentes fez tocar rápido seu alarme quando sentiu os primeiros sintomas de malária. Preocupada em fazer o teste para saber que tipo da doença havia contraído -falciparum, mais grave, ou vivax, mais simples–, buscou atendimento no posto médico da Secretaria Especial de Saúde indígena (Sesai), na comunidade Ye’kwana de Waikás, na Terra Indígena Yanomami (Roraima). Ela não quis revelar seu sobrenome.

Nascida em Caititu, no Maranhão, diz que já “rodou a Amazônia inteira”. Na Prefeitura de Marajá do Sena (também Maranhão), ela é concursada e recebia um salário mínimo como enfermeira, mais um adicional por ocupar cargo de confiança. Em 2016, com a mudança do prefeito, perdeu o adicional, e decidiu tentar reforçar o caixa com o bico no garimpo ilegal.

Depois de uma experiência no Suriname, com uma amiga que ganha a vida viajando de barco e vendendo mercadorias aos garimpeiros, Antônia pediu licença no trabalho. Deixou os três filhos -de 24, 21 e 8 anos– no Maranhão e foi para o Tatuzão do Mutum (ou Mutum), onde cozinha para uma equipe de 11 pessoas. Dorme pouco, trabalha muito, mas faz um bom dinheiro, diz. Prepara o café da manhã, almoço, jantar e merenda para os trabalhadores, e só descansa das 22h as 4h. Em seis meses, calcula, deverá ganhar o correspondente a quase seis anos de trabalho na Prefeitura.

Ela recebe R$ 9 mil por mês em gramas de ouro ao preço menor. O salário é líquido: não paga para comer e nem para dormir. “Eu tenho meu rabo-de-jacu lá e durmo”, diz, referindo-se à tenda onde pendura a rede. Recebe assim, a cada mês, cerca de 70 gramas de ouro.

Quando consegue que a amiga, que passa oferecendo suas mercadorias no Mutum, leve seu ouro para vender em Boa Vista, aumenta a receita em cerca de R$ 1,3 mil. Isso porque, no garimpo, o ouro vale cerca de 15% menos do que na capital.

Quem paga seu salário é o “chefão”, mas ele fica em Boa Vista, não vai até o Mutum. No garimpo não tem pista de pouso. Os aviões pousam na pista da comunidade indígena, que usam com uma anuência forçada dos índios. “No Mutum, pousa helicóptero. De vez em quando ele baixa lá, para buscar o ouro e deixar dinheiro”.

Agora a malária ameaçava atrapalhar seus planos. Diz que pegou a doença no esconderijo, na selva, onde todos ficaram entocados durante vários dias para fugir a uma das ações policiais de combate ao garimpo clandestino. Conta que nessas oportunidades, levam comida suficiente para 10 a 15 dias, período que conseguem esticar com a caça. Mas todos ficam ainda mais expostos aos mosquitos e, por isso, à malária.

“Passamos 12 dias no esconderijo, um total de 15 pessoas, e ninguém nos achou. A gente aguenta o tempo que a polícia ficar na corrutela (a vila) do garimpo, 7, 9, 10 dias”. Enquanto conta a história, mostra a foto de um bicho que fez no celular quando estava escondida na floresta. Uma espécie de gafanhoto que mimetiza direitinho o galho da madeira onde está escondido, ninguém consegue vê-lo. Ela se compara ao inseto.

A malária havia aparecido semanas antes. Sem receita médica, tomou por alguns dias comprimidos comprados na própria vila do garimpo. Sarou, mas a febre voltou e ela não sabia se era a mesma malária, que havia sido mascarada pelos remédios, ou uma nova. Por isso procurou atendimento médico.

Depois de fazer o exame na Sesai, Antônia foi embora. De canoa a remo, levaria cerca de uma hora e meia para chegar ao Mutum, e depois ainda teria que caminhar 15 minutos. Levou uma cartela de remédios para a malária detectada: a vivax, menos agressiva.

A cratera de Serra Pelada dividida em lotes marcados pelas cordas; à direita, os lotes pendurados nas paredes de terra, e, à esquerda, os ‘formigas’

Extração de ouro destrói floresta com mercúrio e desmatamento

O garimpo e o desmatamento caminham lado a lado na destruição da floresta amazônica, como fenômenos que se reforçam. A degradação que a mineração desordenada provoca jamais é revertida.

Os trabalhadores dessas explorações geram uma demanda por alimentos e por serviços que levam à ocupação e ao desmatamento das regiões do entorno das minas.

Próximo à Serra Pelada, na então vila de Curionópolis, que vivia do dinheiro dos garimpeiros, a população tinha o dobro do total de pessoas envolvidas diretamente na mineração.

O garimpo na área yanomami, em Roraima, que atraiu à região cerca de 40 mil trabalhadores no fim dos anos 1980, provocou à época um crescimento semelhante na população da capital, Boa Vista.

Hoje, muito tempo após o auge do ouro em Serra Pelada, quando 100 mil pessoas trabalhavam direta ou indiretamente na extração do metal, os municípios de Curionópolis e Eldorado dos Carajás têm somados 50 mil habitantes. Parauapebas tem 200 mil.

Os mapas também apontam que a intensificação do desmatamento no Pará coincide com o ciclo do ouro dos anos 1980. Desde aquela época, o Pará perdeu 148,3 mil km² de floresta, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o equivalente à área do estado do Ceará.

O final do garimpo em Serra Pelada espalhou homens por outras áreas de mineração na Amazônia. Desde então, Redenção (Pará), as reservas dos índios yanomamis e mundurukus (Roraima e Pará) e a área de Lourenço (Amapá) frequentam o noticiário por conta de problemas causados pelo garimpo, entre eles a ocorrência de trabalho em condições análogas à escravidão.

“O garimpo e a devastação andam juntos em toda a bacia amazônica, não só no Brasil. A mineração ilegal é um fenômeno presente em todos os países, o que gera sérios impactos ambientais nesse ecossistema, bem como impactos econômicos e sociais, configurando um cenário de violação tanto dos direitos ambientais das populações que dependem diretamente destes ecossistemas para sua subsistência como dos direitos de todos os habitantes da região que são afetados pela destruição desse patrimônio”, diz Beto Ricardo, coordenador da RAISG (Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada), que reúne cientistas e entidades de vários países da região. Em dezembro passado, a entidade lançou um estudo inédito sobre o que denominou “epidemia de garimpo ilegal” na Amazônia, não só no Brasil mas também nos outros países da bacia.

Em dezembro do ano passado, a entidade lançou um estudo inédito sobre o que denominou “epidemia de garimpo ilegal” na Amazônia, não apenas no Brasil mas nos demais países da bacia amazônica.

Os garimpos na calha do rio Tapajós atraíram nos últimos anos milhares de pessoas. Em torno do município de Itaituba, no Pará, por exemplo, existem garimpos há cerca de 50 anos. Mas a mineração ilegal atingiu escala industrial com a elevação dos preços do ouro no mercado internacional, no início desta década.

A CADA ANO, RIO TAPAJÓS RECEBE 7 MILHÕES DE TONELADAS DE DETRITOS

Em 2018, como parte da Operação Levigação, de combate ao garimpo ilegal, a Polícia Federal promoveu um estudo sobre a quantidade de detritos que a atividade vem jogando no rio Tapajós.

Segundo o laudo do perito Gustavo Geiser, publicado em setembro, são jogadas nas águas do rio a cada ano cerca de 7 milhões de toneladas de sedimentos com alto índice de mercúrio.

Essa lama tóxica corresponde a mais da metade do que foi despejado na região de Brumadinho, em Minas Gerais, com o rompimento da barragem no início deste ano. Significa que, sozinho, o garimpo na área do rio Tapajós produz uma tragédia como aquela a cada dois anos.

O garimpo clandestino causa essa grande quantidade de dejetos porque é um fenômeno muito raro aparecer uma pepita grande. O normal é que sejam encontrados pequenos traços de ouro em grandes toneladas de pedra ou de terra.

Uma mina industrial, por exemplo, pode ser rentável se obtiver dois gramas de ouro por tonelada de pedra triturada. O mesmo acontece com garimpos nas barrancas dos rios: toneladas de terra são transformadas em lama e jogadas na água para um resultado de alguns gramas de ouro.

Usando bombas, os garimpeiros lançam jatos de água nas barrancas, que se desfazem em represas de lama; em seguida, outras bombas sugam e peneiram a lama em busca das pequenas pedrinhas que poderão conter ouro.

Além dessa destruição, os garimpeiros usam mercúrio, um metal pesado, tóxico para os seres vivos e que pode provocar problemas neurológicos e má-formação fetal (a chamada doença de Minamata).

Quando em contato com o ouro, o mercúrio se junta a ele, formando um amálgama. É essa propriedade que o faz útil aos garimpeiros. O processo consiste em separar da terra o cascalho com ouro e passá-lo em uma esteira forrada de mercúrio. O ouro vai grudar no mercúrio, separando-se do cascalho.

Depois, o amálgama é colocado em uma placa sobre o fogo. Os dois metais reagem de forma diferente à alta temperatura. Quando o mercúrio atinge 357 ºC, ele se transforma em um gás escuro. Já o ouro nem chega a derreter (seu ponto de fusão é aos 1.064 ºC). Livre do mercúrio que a separou das impurezas, surge uma bela pepita dourada.

O mercúrio que tinha virado fumaça vai condensar e se tornar líquido novamente. Mas, fora do ambiente de laboratório, como nos garimpos, aquela fumaça que se afastou do local vai pingar como mercúrio mais adiante, no mais das vezes no rio ou na água usada para lavar o ouro.

Imagens da febre do ouro chocam o mundo e reabilitam o preto e branco

SÃO PAULOO fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que estava exilado na França durante a ditadura militar, só obteve autorização para registrar o que ocorria em Serra Pelada em 1986.

Na época, a cena na fotografia era desfavorável ao preto e branco. Se antes a foto colorida era associada a publicidade e álbuns de família, ela ganhou status depois de 1976, quando o prestigiado fotógrafo norte-americano William Eggleston -antes ele próprio fiel ao preto e branco– fez a primeira grande exposição de imagens coloridas da história do MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York. Além disso, o mercado editorial se rendia mais e mais à cor, posto que jornais e revistas já podiam ser impressos em cores com mais velocidade e precisão.

O preto e branco parecia destinado ao esquecimento quando, em março de 1987, Neil Burgess, então diretor do escritório de Londres da agência de imagens Magnum, recebeu as fotos de Serra Pelada feitas por Salgado. Imediatamente, ele as levou ao diretor de arte da revista do Sunday Times, referência no jornalismo britânico. A publicação daquelas fotos causou grande impacto não apenas na Europa, mas no mundo.

Vieram outras reportagens que comporiam “Trabalhadores”, o primeiro dos projetos de longo curso que o fotógrafo produziu nas últimas décadas, sempre em preto e branco.

Serra Pelada em 1986

Salgado conta que, ao chegar a Serra Pelada, procurou um conterrâneo de seu pai, um empresário de garimpo e nascido, também, no vale do Rio Doce, em Minas Gerais. A coincidência fez correr entre os garimpeiros o boato de que um estranho “da Vale do Rio Doce” estava ali para espionar, expulsar garimpeiros e recuperar a mina para a estatal.

Ao entrar na cratera, diz que sentiu ódio emanando de 100 mil olhos. Os escavadores bateram suas ferramentas para fazer um barulho de protesto. Nas primeiras horas de trabalho, tomou empurrões e esbarrões que o ameaçavam e tentavam fazê-lo tropeçar e cair no buraco.

Quando já estava sujo de lama como os trabalhadores, Salgado foi detido por um policial, que o julgou um estrangeiro contrabandista. Foi solto ao provar ser brasileiro. Ao mesmo tempo, os garimpeiros souberam que era repórter e também mudaram o sentimento. Na volta à cratera, foi aplaudido: havia sido aceito.

“O ouro é um amante imprevisível. Enquanto alguns partiram de Serra Pelada com dinheiro e nunca se sentiram traídos, outros perderam tudo. O amigo de meu pai achou 97 quilos, reinvestiu em mais lotes e equipes adicionais de peões para deixar a mina de mãos vazias”, conta.

Com a mulher, Lélia Wanick Salgado, o fotógrafo decidiu revisitar todos os originais de Serra Pelada, com um olhar diferente daquele de décadas atrás. Ao final do trabalho, tinha um conjunto novo de imagens que se somou às que haviam sido mostradas nos anos 1980.

Coincidindo com os 40 anos da descoberta do ouro em Serra Pelada, essa nova seleção de imagens foi editada para o livro “Gold” e para a exposição que será aberta em São Paulo em 17 de julho, no Sesc Paulista.

Livro e exposição têm estreia internacional no Brasil e seguem depois para Estocolmo, em setembro; Madri, em novembro; Talin (Estônia), em dezembro; Milão, em abril, e Londres, em maio de 2020.

O fotógrafo se dedica atualmente a “Amazônia”, projeto que a reportagem da Folha tem acompanhado e que vai resultar também em um livro e uma exposição em 2021. Parte do conteúdo tem sido antecipada em especiais como este.

Fonte: Folha de São Paulo

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