Fernão de Magalhães e a primeira circum-navegação do planeta
Há cinco séculos, navegador português partia para encontrar passagem que liga Atlântico e Pacífico no extremo sul do continente americano. Celebrado sobretudo no século 19, hoje o culto a Magalhães é questionado.
Na Espanha, a partir de 10 de agosto de 2019 festeja-se um evento desencadeado por obra do acaso: o 500º aniversário da partida para a primeira circum-navegação do planeta, iniciada por Fernão de Magalhães. Cavaleiro endurecido pelas lutas e marinheiro à prova de tempestades desde jovem, ele não poderia imaginar que faria uma contribuição vital para a primeira volta ao redor da Terra.
Magalhães nasceu no norte de Portugal por volta de 1480, numa família da baixa nobreza. Católico convicto, ele foi influenciado pela visão de mundo religiosa da Baixa Idade Média e pela ideia de cristianizar o planeta. Magalhães faz parte de uma mudança épica dos tempos, da Idade Média à era moderna.
Contando 12 anos quando Cristóvão Colombo “descobriu” a América, para o aventureiro intrépido e de boa constituição física o início da era colonial chegou na hora certa. Desde jovem, destacou-se em missões militares – provavelmente visando ascender à alta nobreza, segundo historiadores.
Magalhães foi o primeiro a chegar à Índia ou à Península da Malásia em navios portugueses de especiarias e de guerra. Durante oito anos lutou em palcos de guerra na Ásia e no norte da África. Em 1512, juntamente com outros navegadores, partu para as chamadas “Ilhas das Especiarias”. Somente lá, nas lendárias terras pertencentes ao arquipélago das Molucas, no Sudeste Asiático, florescia a noz-moscada e, sobretudo, o cravo-da-índia.
Esses preciosos e exóticos intensificadores de sabor prometiam riqueza, pois eram pesados a ouro nos mercados europeus. A participação do navegador português na venda das especiarias ali adquiridas assegurou inicialmente sua subsistência, mas ao mesmo tempo despertou o desejo de mais.
Após uma discussão com o rei de Portugal, a partir de 1517 Fernão de Magalhães passou a navegar sob bandeira espanhola. Seu patrão era o rei Carlos 1°, conhecido mais tarde como Carlos 5°, soberano do Sacro Império Romano Germânico.
O historiador Christian Jostmann conta que o teólogo e escritor espanhol Bartolomé de las Casas descreve Magalhães como pequeno e antes insignificante, mas extraordinariamente carismático. “Quando necessário, ele sabia se promover brilhantemente, conseguindo entusiasmar as pessoas sobre si próprio, suas ideias e grandes objetivos”. Não é de admirar que tenha convencido o rei espanhol a financiar sua viagem às Molucas.
Mas não era apenas perspectiva de riqueza que fez Carlos 1° concordar, ele também foi movido por razões geopolíticas: no fim do século 15, Espanha e Portugal dividiram entre si o mundo então conhecido, mas não era claro a quem pertenciam as Molucas, hoje pertencentes à Indonésia.
Uma rota ao redor do Cabo da Boa Esperança, no extremo sul da África, estava fora de questão por estar bloqueada pelos portugueses. Para evitar cruzar qualquer área reivindicada por seus conterrâneos, Magalhães planejou encontrar uma rota marítima ocidental para as Molucas. Desde Colombo, cerca de 500 navios haviam tentado em vão achar uma passagem através do continente americano.
A Armada das Molucas – cinco navios totalmente reformados, equipados com canhões – deixou Sevilha em 10 de agosto de 1519, partindo para Sanlúcar de Barrameda, no litoral do Oceano Atlântico. De lá, a frota zarpou com cerca de 240 tripulantes em 20 de setembro.
“Enriquecer, fundar colônias para a Espanha, cristianizar e, em nível pessoal, a perspectiva de ascensão social: com esses objetivos, Magalhães partiu”, explica o historiador Christoph Jostmann, que se ocupou intensamente do navegador português. Em seu livro recente, Magellan oder Die erste Umsegelung der Erde (Magalhães ou a primeira circum-navegação da Terra), ele descreve vividamente o que o aventureiro e seus companheiros vivenciaram nessa primeira volta ao redor do globo: tempestades, calmarias, fome, sede, doenças, motins e conflitos mortais com os povos indígenas.
“Isso não tem nada a ver com romantismo da navegação”, aponta Jostmann. “Cerca de 50 homens viveram por meses numa banheira de madeira, que talvez tivesse uma área de 150 metros quadrados, sem instalações sanitárias, sem cozinha, sem privacidade. A comida era modesta, quase não havia cuidados médicos; além disso, a incerteza de uma missão suicida.”
Primeiro a frota navegou para as Ilhas Canárias; depois, ao longo da costa africana, até Serra Leoa. No ponto mais estreito, atravessou o Atlântico e alcançou o continente americano, na altura de onde hoje fica o Rio de Janeiro.
Continuou ao longo da costa leste da América do Sul, sempre em busca da hipotética passagem para o oeste, num processo extremamente penoso. A frota teve que atracar para passar o inverno, a situação de abastecimento ficou cada vez mais difícil, o clima a bordo dos navios foi piorando cada vez mais. Houve um motim.
Magalhães se manteve perseverante: em 21 de outubro de 1520, descobriu um cabo e navegou entre a ponta sul do continente americano e a Ilha Grande da Terra do Fogo, num vasto labirinto de canais, embora um primeiro navio tenha se perdido. Outra caravela aproveitou a confusão para escapar de volta para a Espanha. Mas a tão esperada passagem através de águas marcadas pela tempestade foi encontrada, graças a muita sorte. A armada reduzida levara seis semanas para chegar ao Oceano Pacífico.
Do sudeste do Pacífico, Magalhães seguiu durante três meses e meio em direção noroeste, sem se deparar com ilhas habitadas. Fome, sede e doença ceifaram 19 vidas, antes que se encontrasse água fresca e comida numa das Ilhas Marianas. Trágico é que a frota passou perto de uma série de ilhas que poderiam lhe ter fornecido água e alimentos, sem notar sua existência.
Finalmente, as tripulações – os 150 marinheiros restantes – aportaram em 21 de março de 1521, como primeiros europeus nas Filipinas. Para Fernão de Magalhães, era a estação final: seu objetivo era tomar posse dessas ricas ilhas para a Espanha e, possivelmente, mais tarde tornar-se seu governador.
“Quando ele chega às Filipinas, faz uma apresentação tão espetacular, que os nativos se convertem ao cristianismo em grande número e se submetem à Espanha”, relata o historiador Jostmann.
Mas nem todos. Ao tentar subjugar militarmente uma aldeia, em 21 de abril, Magalhães foi atingido por uma lança e um dardo envenenado e morreu. As caravelas restantes zarparam às pressas, tendo uma que ser afundada por não haver marinheiros suficientes.
Sob o comando de Juan Sebastián Elcano, os dois navios restantes partiram das Filipinas para as Ilhas das Especiarias. Ali, finalmente embarcaram a tão esperada carga. Para a volta, Elcano escolheu a rota do Cabo da Boa Esperança. O outro navio ainda restante fracassou no caminho do Pacífico.
Quase três anos após a partida da Armada das Molucas, a circum-navegação involuntária e não programada de Magalhães foi concluída por Elcano. Em 6 de setembro de 1522, a nau Victoria chegou ao porto espanhol de partida, Sanlúcar de Barrameda.
Dos 240 que partiram, cerca de 20 marinheiros sobreviveram e colheram a glória pela primeira circum-navegação historicamente documentada. Desde meados do século 19, a passagem ocidental homenageia Fernão de Magalhães com o nome Estreito de Magalhães.
Na época, Magalhães era exaltado por muitos intelectuais como herói e gênio. “Hoje, isso acabou e não se justifica”, aponta Christian Jostmann, especialmente tendo em vista a posterior colonização. “É preciso entendê-lo como um ser humano em sua época”, mas devendo-se também reconhecer sua ambição e força de vontade. Mas o historiador não vê qualquer razão para celebrar o navegador.