O tempo que vem e o campo que há no sertão de Bacurau
Por Diego Antonio Perini Milão
No espaço entre o eu e o outro cabe uma imensidão. Ou não cabe. Cabe o som que nos rodeia. Também cabe o silêncio. Cabe só um apartamento. Cabe o sertão inteiro. Cabe um Brasil que já não cabe em si. Ou não cabe. Cabe um cachorro no quintal. Cabe um mar com tubarão. Ou apenas uma colônia de cupins a corroer memórias. Cabe uma canção. Um céu cheio de estrelas. Cabe uma distância daquelas que só se percorre com a velocidade de um disco-voador. E quando percorrida, deixa de caber. Não nos cabe.
Mas tudo isso cabe nos filmes do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho (“O Som ao Redor” e “Aquarius”), que possuem o tema do espaço como um elemento em comum. E assim também ocorre com “Bacurau”, novo filme de KMF codirigido por Juliano Dornelles, que recebeu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano e já pode ser visto nos cinemas brasileiros.
Há muito mais que estrelas, satélites e objetos não-identificados no universo com o qual Bacurau se abre. Para além do espaço sideral, os espaços físicos do macrocosmo retratado por uma visão da Terra nada eurocêntrica e do microcosmo caracterizado pelo vilarejo do sertão de Pernambuco que dá nome ao filme expressam, quase como uma metáfora ou alegoria, os espaços culturais, sociais e históricos que tomarão conta da narrativa do filme.
Bacurau é sobre o sertão, mas, como bem notou Guimarães Rosa, “o sertão é do tamanho do mundo”. Assim, Bacurau não deixa de ser sobre o nordeste brasileiro, sobre a riqueza e complexidade de sua formação cultural e humana, mas o nordeste está sobretudo na linguagem que o filme adota para contar uma história tão universal quanto sua cena de abertura. O sertão é do tamanho do mundo porque a partir dele e com ele é possível interpretar e compreender a história da nossa civilização no âmbito da luta por espaço, da afirmação e preservação de espaços, nos mais diversos sentidos da palavra. Cabe um mundo todo em Bacurau.
Assim, Bacurau retrata uma história cíclica. Vai de Canudos à Guerra do Vietnã, passando pelo Gueto de Varsóvia. E vai também de Pernambuco a São Paulo, de Manaus ao Rio de Janeiro. Vai, mesmo sem ir. Bacurau está aqui do nosso lado, mesmo estando distante. Bacurau é sobre a Maré, sobre Eldorado dos Carajás, sobre as reservas indígenas, sobre quilombos, sobre colonização, é sobre a população em situação de rua no centro de São Paulo, sobre movimentos sociais e revoltas populares. É, mesmo sem ser. E é também sendo. É sobre violência institucionalizada, território, identidade, autodeterminação e resistência.
Nesse sentido, é impressionante como o filme pode ser interpretado a partir de conceitos de filosofia social e política desenvolvida por autores de diferentes países, em diversas épocas e que pensaram o mundo a partir de uma perspectiva histórica e das relações humanas (e talvez esteja aqui mais uma prova da universalidade da narrativa de Bacurau).
Bacurau é o que há no espaço entre o eu e o outro, o outro como objeto estranho, alienígena, o outro visto desde a Grécia antiga como bárbaro simplesmente por não ser grego, o outro conceituado por Carl Schmitt como o inimigo que dá suposta identidade à nação. Bacurau é também a velha relação entre oprimido e opressor, retratada nas peças e poemas de Bertold Brecht e problematizada na pedagogia de Paulo Freire (pensadores que também estão presentes, de certa maneira, na forma como a produção de Bacurau se comunicou com o vilarejo de Barra, no Seridó, onde o filme foi gravado, incluindo os moradores como atores e posteriormente exibindo a película em praça pública). Bacurau vai além do sertão de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, permeia a banalidade do mal de Hannah Arendt e a biopolítica de Foucault até chegar ao campo de Giorgio Agamben.
Como pensado pelo filósofo italiano em seu Projeto Homo Sacer – que nomeia o conjunto de sua obra recente –, biopolítica e estado de exceção são fenômenos correlatos, reflexos e, em certo ponto, dependentes um do outro, sendo que o produto dessa relação é o espaço do campo, produtor de vida nua, onde reside a figura histórica e completamente atual do homo sacer, o indivíduo entendido como matável e insacrificável e que está ligado à imposição do poder soberano.
Segundo Agamben, as características de impunidade da matança (impune occidi) e de exclusão do sacrifício (neque faz este eum immolari), características do homo sacer que constituem justamente a vida sacra ou vida nua, são situações de exceção. O impune occidi configura uma exceção do ius humanun, uma vez que suspende a aplicação da lei sobre homicídio. O neque faz este eum immolari enuncia uma exceção do ius divinum e de toda e qualquer forma de morte ritual, ou seja, aquela regulada por um ordenamento jurídico válido.
Com isso, conforme o filósofo, no caso do homo sacer uma pessoa é simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina, configurando-se, pelo banimento, uma zona de indeterminação na qual a vida sacra ou vida nua se caracteriza. Assim, para Agamben, “Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera”[i]. A vida nua ou vida sacra constitui, assim, o conteúdo primeiro do poder soberano.
O desaparecimento de Bacurau dos mapas oficiais e dos sinais de satélite enuncia: Bacurau é o sertão, mas Bacurau é também o campo. O campo como paradigma biopolítico moderno, o campo como não-lugar, o campo como o espaço próprio do estado de exceção. E como alerta Agamben, é preciso que se aprenda reconhecer as metamorfoses e os travestimentos do campo.
Conforme observa o autor, “o campo não é um fato histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda verificável), mas, de algum modo, como a matriz oculta, o nómos do espaço político em que ainda vivemos.”[ii] Talvez por isso Bacurau seja tão atual, mesmo que o roteiro tenha começado a ser escrito há dez anos.
Assim, o fenômeno do campo retratado por Agamben pode ser verificado pelo esquecimento, abandono e marginalização de determinados territórios pelo Estado dito Soberano, deixando-os a toda sorte, sem qualquer tipo de proteção e garantia de qualquer direito, conferindo aos indivíduos que ali residem a vida sacra, a condição de homo sacer e, como tais, matáveis e insacrificáveis. Mesmo não tendo cometido nenhum crime, já estão banidos da sociedade civil e dos seus ritos de toda espécie, inclusive, como não poderia deixar de ser, do devido processo legal. Eis a insacrificabilidade. A vida dos que residem no campo não é (na visão do Soberano) um bem jurídico a ser protegido, logo, quem os mata não recebe qualquer tipo de punição. Eis a matabilidade. Eis o estado de exceção como paradigma de governo.
Bacurau é um retrato dessa política de exceção, que se caracteriza, em um primeiro momento, por um “deixar morrer”. Mas Bacurau resiste. As instituições ausentes no vilarejo logo são substituídas por uma forte ideia de comunidade, por uma nova ágora. A ordem política é substituída por uma ordem humana, que se personifica. Nesse sentido, é relevante destacar a relação alegórica entre as personagens Domingas e Carmelita (que morre aos – não por acaso – 94 anos de idade, representando também o fim de mais um ciclo histórico).
Porém, a resistência de Bacurau não se dá somente com a construção de uma ordem humana e de um código social pautados em uma democracia participativa, mas se dá também com anomia. Esse “deixar morrer”, retratado no filme pela situação extrema da privação à água (muito mais por uma questão política do que geográfica) e, por consequência – como nos lembra a água que transborda do caixão de Carmelita – como uma restrição ao ser, levará a uma crise da legitimidade do poder político e do seu sistema jurídico, com uma consequente “violação” por convicção das normas do Estado dito Soberano. E com isso temos a personagem Lunga. Lunga evoca o cangaço, mas Lunga é também um poema de Brecht, especialmente uma estrofe: “Do rio que tudo arrasta / Se diz que é violento / Mas ninguém diz violentas / As margens que o comprimem” (ou que o secam).
No entanto, como a história bem nos ensina, resistência – quase sempre – é respondida com repressão. Aqueles que ocupam o governo oficial querem impor a soberania de Estado, querem produzir vida nua, implantar a exceção no indivíduo para transformá-lo em homo sacer. A água se transforma em sangue e o estado de exceção implantado em Bacurau assume um novo ato após a má (ou boa) recepção que o vilarejo dá ao prefeito: o “fazer morrer”.
E nesse ponto ocorre uma das grandes ideias do roteiro, que passa a trabalhar ainda mais com uma distopia de dimensões propositadamente não esclarecidas. Várias hipóteses surgem no pensamento de quem assiste o filme: seria um jogo ou uma invasão? Uma guerra civil ou atração turística? Institucionalizado ou individualizado? Público ou privado? Política de Estado ou exploração comercial? Mas a distopia que atingirá o Brasil em um futuro próximo também está na impossibilidade dessas distinções.
O que ocorre em Bacurau não precisa ser uma coisa ou outra, o que ocorre em Bacurau pode ser tudo isso ao mesmo tempo. Em Bacurau, assim como a água, a repressão do Estado é também privatizada ou, ao menos, concedida, terceirizada e, com isso, transformada em mercadoria e em espetáculo. Talvez seja esse também o motivo das execuções públicas no Vale do Anhangabaú, da qual temos conhecimento por uma notícia na TV. O que pode também explicar o sistema de pontos entre os “jogadores” como um mero cumprimento de metas para o recebimento de bônus no final do mês.
Nesse pacote neoliberal (ironicamente incentivado até mesmo por funcionários públicos), a soberania (nesse sentido agambeniano e no sentido originário do termo) também é concedida. E isso fica claro na sequência de cenas em que forasteiros brasileiros equivocadamente pensam que podem se comportar como se americanos ou europeus fossem, como se ainda detivessem a soberania que acabaram de entregar. O novo Soberano não demora muito para reafirmar o seu poder de produzir vida nua e logo lembra aos forasteiros do sul do Brasil que qualquer indivíduo pode ser capturado em sua esfera, qualquer um pode vir a ser homo sacer, matável e insacrificável, mas somente o Soberano pode decidir quem assim o é. Soberano é quem decide sobre o estado de exceção.
No entanto, Bacurau também resiste a essa segunda faceta do campo. E resiste porque, ao contrário dos forasteiros, Bacurau possui consciência das suas raízes, não esquece a sua história, preserva a identidade de sua gente e de sua cultura. Diferentemente da realidade, na ficção de Bacurau os museus não são consumidos pelo fogo. A educação não é tratada como mercadoria que se carrega na caçamba de um caminhão, livros são tijolos apenas no sentido figurado e certamente, se pudéssemos consultar a biblioteca do Professor Plínio, encontraríamos vários exemplares de Paulo Freire. Quando a educação é libertadora, o sonho do oprimido não é se tornar o opressor.
Contra esse poder Soberano produtor de exceção, de vida nua, Bacurau retoma a soberania no sentido original da palavra, defendendo o direito à autodeterminação de seu povo e estourando em mil pedaços qualquer pensamento (ou não-pensamento) de quem pretende subjugar a sua gente. Cansados de tomarem naquele lugar, eles deixam de lado o supositório inibidor de humor dado pelo Estado para produzir uma sociedade apática e escolhem tomar a pílula de Damiano, um poderoso psicotrópico. Bacurau decide, assim, pela autodeterminação em detrimento do marasmo.
No entanto, apesar dos esforços de Malcolm X para nos lembrar que não se deve confundir a reação do oprimido com a violência do opressor, mais uma vez a história da nossa civilização tristemente nos ensina que o direito à resistência e à desobediência civil é rotulado como mera violência por aqueles que pretendem manter o monopólio da força enquanto repelem qualquer possibilidade de diálogo e se utilizam de uma real violência mascarada de juridicidade ou missão divina para impor sua dominação ao outro.
Não devemos cometer o mesmo erro com o filme. Não se deve reproduzir uma das falas finais de Michael. Seria incorreto classificar Bacurau como violento. Há um certo paradoxo: quando “Bacurau” se torna graficamente mais violento, ele passa a ser, na verdade, menos violento.
Bacurau é resistência. Um filme de ficção, mas que poderia ser todo montado com cenas da história e da realidade atual, essas que são exibidas todos os dias nos telejornais ou que nos deparamos nas esquinas de nosso cotidiano. Bastaria fazer pequenas adaptações, como trocar uma lanterna por um guarda-chuva, por exemplo. E nem será preciso revogar a Constituição de 1988 para isso, o estado de exceção já basta. Por vezes, é difícil perceber se estamos diante de um drone ou de um disco-voador (nem todos temos a clareza de Damiano).
A opção pela ficção, contudo, permite a entrega de um final aparentemente esperançoso, mas que não sabemos até quando durará se levarmos em consideração a história dos levantes populares que aconteceram em nosso país e no mundo. Por ora, ao menos na ficção, não temos um final em que um governante chega eufórico ao vilarejo dando pulos e socos no ar para comemorar a morte dos cidadãos.
Assim como há momentos em que temos que nos esforçar para distinguir se uma cena de Bacurau é real ou apenas ficção, há também momentos da realidade que, se nos descuidarmos, pensaremos ser apenas uma cena delatada de Bacurau, um final alternativo que não foi utilizado no filme. Talvez a escolha da pílula certa nos ajude com essa distinção. De qualquer maneira, essa simbiose que ocorre na mente de quem assiste o filme não deixa de ser um aviso: a distopia chegou. Ou apenas voltou. Afinal, enterramos vivos os nossos problemas.
Diego Antonio Perini Milão – Mestre em Direito e Justiça pela UFMG. Bacharel em Direito pela Unesp
[i] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 91.
[ii] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 162.