Mais do que amor à sétima arte, Irmã Dulce usou o cinema para fazer dinheiro

Construção de cinemas foi alternativa encontrada por Irmã Dulce para fazer dinheiro e erguer obra social

Por Jorge Gauthier

Diante desse cenário, a mente fértil de Irmã Dulce viu no cinema a chance de fazer dinheiro para tocar seus projetos sociais. Junto com o frei Hildebrando Kruthaup (1902- 1986), teve a ideia de criar cinemas no Círculo Operário da Bahia (COB). No total, criaram três: Cine-Roma , Cine Plataforma e Cine São Caetano entre os anos de 1948 e 1949 – todos erguidos com doações e feitos pela construtora Odebrecht. Nos anos 1950, o frei fundou o Pax Roma conhecido como ‘Gigante da Baixa dos Sapateiros’ para exibir filmes religiosos, que foi gerenciado pelo COB.
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Foto
de 1947 mostra o antigo Círculo Operário, no bairro de Roma, em Salvador, em frente à Praça da Bandeira. Nele também funcionou o Cine-Roma.

Foram os primeiros cinemas em bairros periféricos de Salvador. Na época, o Cine-Teatro Jandaia (fundado em 1911) e o Tupy, na Baixa dos Sapateiros, eram os que faziam sucesso com a classe média soteropolitana.

“Os cinemas tinham um crivo religioso dos filmes que eram passados por lá”, pontua o professor assistente do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia, Evergton Sales, que é autor da tese de mestrado Entre o Religioso e o Político: uma História do Círculo Operário da Bahia (1996). Não à toa, o filme mais visto no período foi a Paixão de Cristo. “O frei Hildebrando tinha uma visão de que o cinema poderia ser usado como forma de evangelização. Ele fazia a censura dos filmes”, completa Sales.

As películas de faroeste, como O Cangaceiro, também faziam sucesso – elas começaram a ser exibidas nos idos de 1965, depois que os franciscanos deixaram de compor a diretoria do COB. “Era um programa para toda família. Minha mãe nos levava nas matinês uma vez por mês”, conta Maria Aparecida de Alencar, aposentada de 89 anos, moradora da Massaranduba que frequentou por muitos anos o Cine-Roma.

Mais do que filmes, os cinemas foram também espaços para shows. No livro Um Cinema Chamado Saudade, Geraldo da Costa Leal e Luis Leal Filho, em 1997, revelam que em 5 de junho de 1965 o cantor Roberto Carlos fez seu primeiro show na Bahia justamente no Cine-Roma. Em 1965, relata o livro, Roberto cantaria na final do concurso Miss Bahia que ocorreu no Ginásio Antônio Balbino, mas faltou energia e o show acabou sendo no dia seguinte no Cine-Roma. Em 1979, fizeram sucesso por lá os cantores Jerry Adriani e Waldick Soriano.

“O cinema era um negócio em expansão nesse período dos anos 1930 e 1940. A grande diversão do público, inclusive, de baixa renda era ir para os cinemas para ver as séries. Irmã Dulce se fixou nisso para abrir os cinemas visando a continuidade das suas obra. Além disso, o cinema era incólume e não afetava o aspecto religioso dela”, diz a cineasta e pesquisadora Ceci Alves destacando ainda o aspecto social dos cinemas criados por Dulce por ter valores mais baratos.

Não há registros de que Dulce via os filmes, mas ela sempre participava das atividades artísticas que acontecia nos cinemas. Não raro ela pegava seu acordeon e tocava clássicos de Luiz Gonzaga acompanhada do coral de crianças que estudavam no COB.

1850

lugares. Essa era a capacidade do Cine-Roma

400

cadeiras por sala. É a média dos cinema atuais.

Ceci, que também é professora universitária na área de Cinema e Jornalismo, destaca ainda o aspecto social dos cinemas criados por Dulce. “O Cine Roma, por exemplo, era um cinema de rua na Cidade Baixa que facilitou o acesso ao cinema de pessoas pobres que moravam naquela região em bairros com Ribeira, Massaranduba e Jardim Cruzeiro, dentre outros. Ela também recebeu propostas para executar shows. O grupo Raulzito e os Panteras, de Raul Seixas, por exemplo, tocou lá pela primeira vez”, completa Alves.
O primeiro filme exibido no Cine-Roma foi o filme italiano Diabo Branco, com Rossano Brazzi e Annete Bach. O maior dos três cinemas, o Cine-Roma tinha capacidade para 1.850 espectadores – bem maior do que a média de 400 lugares das salas de cinema atuais. Produtos como a Coca-Cola (bebida preferida de Dulce) e os chocolates Batom estavam iniciando suas operações no Brasil nesse período e faziam sucesso entre os frequentadores dos cinemas, que fecharam nos anos 1980, por conta da concorrência e do enfraquecimento do COB.
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Livro de ponto do Cine-Roma (Foto: Osid/Divulgação)

Era o cinema da classe média que ia lá toda semana. Mas os operários também iam. Irmã Dulce sempre dizia que era importante para manter a obra viva.

Maria Aparecida

O projeto Pelos Olhos de Dulce tem o oferecimento do jornal CORREIO e patrocínio do Hapvida

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