O passado rico da cidade mineira que se tornou polo de ‘exportação’ de imigrantes ilegais aos EUA
Bem antes de ganhar fama nacional como “exportadora” de brasileiros na década de 80, Governador Valadares, cidade de 279 mil habitantes localizada a 315 km de Belo Horizonte (MG), registrou ainda nos anos 60 seus primeiros moradores que decidiram emigrar para os Estados Unidos.
Foram 17 jovens que, com visto legal para trabalhar, deixaram a cidade para viver o sonho americano.
Ganhar dinheiro, naquela época, não era a principal motivação da viagem: nascidos em famílias de classe média alta, os jovens tinham o segundo grau completo, falavam inglês e eram atraídos pela curiosidade de conhecer um país que consideravam rico, desenvolvido, culturalmente interessante e cheio de grandes oportunidades.
Desde que aquelas primeiras pessoas emigraram, Valadares se transformou até os dias de hoje em um dos um dos principais polos de migração — tanto a legal quanto a ilegal — do país.
Dados do censo demográfico de 2010 colocam a cidade na sétima posição entre os dez municípios brasileiros com maior número de emigrantes internacionais, com um total de 8.800 emigrantes no exterior.
O perfil dos emigrantes, no entanto, mudou bastante desde os anos 60: se antes os primeiros a deixar o país pertenciam a famílias abastadas e entraram nos EUA com visto e documento legalizados, a partir da segunda metade da década de 80 quem partia para tentar a sorte nos EUA tinha em grande parte o ensino fundamental completo (36%), entrou nos Estados Unidos pela fronteira do México ou Canadá (51%) e, em parte dos casos, usando documentos falsos (10%).
Os dados são da pesquisadora Sueli Siqueira, titular da Universidade Vale do Rio Doce no campus de Governador Valadares. Dedicada a estudar os efeitos da migração sobre os mineiros que vão para os EUA e retornam ao Brasil, ela entrevistou e organizou em uma pesquisa os depoimentos primeiros valadarenses a emigrarem.
Em 1960, Valadares já tinha uma escola de inglês, que viabilizou os primeiros intercâmbios estudantis para os EUA. Com eles, em uma época em que essa era uma oportunidade restrita às capitais do país, valadarenses de classe alta iam passar um ou dois anos estudando fora. Quando voltavam, encantavam a cidade com as histórias sobre as maravilhas da vida na América.
Sonho americano
O primeiro intercambista de Valadares, segundo as pesquisas de Siqueira, foi para a cidade de Dumas, no Texas. Sua viagem e estadia foram noticiadas amplamente no jornal local, sempre enfatizando as benesses de se viver em um país desenvolvido.
O jovem logo percebeu, e espalhou a notícia por meio de cartas, que no país havia oportunidades para os amigos que quisessem trabalhar e estudar de maneira legal. Quando o primeiro intercambista voltou, todos queriam saber da experiência.
“Quando cheguei fazia fila na minha casa para ver o álbum de fotografia e para eu contar como era a vida lá. Durante muitos meses eu não consegui falar de outra coisa, meus amigos só queriam ouvir sobre a vida lá”, disse um dos primeiros intercambistas, que viajou para estudar em 1963, em entrevista concedida 50 anos depois à especialista.
Para a pesquisa “Histórico das migrações da Região de Governador Valadares para os Estados Unidos”, Siqueira entrevistou em 2010 os primeiros emigrantes que viajaram para trabalhar nos EUA, recuperando seus relatos sobre a realidade da época e reconstruindo o contexto histórico em que esses primeiros 17 emigrantes valadarenses deixaram o país.
As entrevistas realizadas por Siqueira dão ideia do fascínio que, desde então, os EUA exerciam sobre a população da cidade.
“Eu tinha um sonho de conhecer a Broadway. Quando eu cheguei perguntei onde era a Broadway e disseram que eu estava nela, fiquei muito emocionado. Também tive sorte de morar na Rua 42 bem no centro de New York”, afirmou um dos valadarenses, que emigrou em 1964 e foi entrevistado, 50 anos depois, para a pesquisa da professora.
“Toda vida a situação financeira da minha família foi boa, quando resolvi emigrar a família me chamou de doido, falou que eu era aventureiro. Ninguém sabia, mas eu queria ir para lutar na guerra do Vietnã. Todas as notícias que chegavam mostravam a aventura que era aquela guerra”, afirmou outro entrevistado, que foi embora para trabalhar nos Estados Unidos em 1967.
Mas por que, em tempos em que grande parte da população brasileira era analfabeta e rural, uma cidade pequena no interior de Minas Gerais já tinha intercambistas, escolas de inglês e tantas conexões com a vida nos EUA? E por que anos mais tarde, quando a década de 80 ficou conhecida como a “década perdida” por sucessivas crises econômicas, tantos valadarenses migraram para os EUA, em vez de partir para as grandes metrópoles brasileiras? A resposta, segundo Siqueira, envolve fatores que passam por economia e história, tanto de Valadares quanto dos Estados Unidos.
A primeira família americana
Em 1942, um americano conhecido como Mister Simpson foi um dos engenheiros que se mudaram para Governador Valadares, localizada na região do Rio Doce, no leste de Minas Gerais, e em meio à Mata Atlântica.
Ele veio para trabalhar na ampliação da Estrada de Ferro Vitória a Minas, entre Vitória e Belo Horizonte. Quando as obras terminaram e todos os engenheiros voltaram para os EUA, Mister Simpson decidiu permanecer na cidade junto com a família. Continuou trabalhando como funcionário da então Vale do Rio Doce e viveu em Governador Valadares até sua morte, em 1969, segundo Siqueira.
A convivência com o grupo americano, desde aquela época, introduziu um contato com a cultura que ficou impregnado no “DNA” valadarense. “Foi um evento que ficou na memória popular”, diz Siqueira, em entrevista à BBC News Brasil.
“Nesse período da presença deles houve um desenvolvimento na infraestrutura, na saúde. E, ainda na década de 40, os moradores de Governador Valadares tiveram acesso ao dólar. Os depoimentos relatam que era engraçado porque eles tinham torradeira, máquina de lavar roupa, eles trouxeram tudo isso. Era um pequeno grupo vivendo o estilo de vida americano em uma cidade pequena.”
Depois do fim das obras, Mister Simpson e sua esposa, Geraldina Simpson, ficaram em Valadares e decidiram abrir uma escola de inglês, a Ibeu. A instituição também aparece com destaque nos relatos dos primeiros jovens que emigraram para trabalhar nos EUA entrevistados por Siqueira.
“Tinha um programa da dona Geraldina Simpson que era de intercâmbio. O Coelho foi o primeiro e quando ele retornou me deu informações sobre os EUA, que se eu conseguisse o visto de trabalho pra lá que não teria problema nenhum. Trabalharia vinte horas e estudaria numa escola normalmente e o que eu ganhava dava para me sustentar o mês todo sem problema. Aqui em Governador Valadares tinha eu, e outros três que queriam ir. Conseguimos o visto de trabalho e partimos”, afirmou um entrevistado, que emigrou de Valadares em 1964.
“A ideia de ir para os EUA ficou mais atraente. Assim que fez o intercâmbio estudantil nos EUA ele me passou as informações que eu precisava: que era a de que lá conseguia sobreviver e que era possível emigrar para lá com o visto de trabalho e não ter problema. Não decidimos emigrar por questões financeiras, fomos mais pelo desejo de conhecer e estar em mais contato com a música americana, que era nossa paixão”, diz um outro entrevistado, que emigrou em 1964.
No mesmo ano, mais amigos do primeiro intercambista tomaram o mesmo rumo. Chegaram a Nova York sem nenhum contato, mas tinham as informações sobre onde se hospedar e conseguir trabalho.
“As cartas, acompanhadas de fotos, eram enviadas com frequência. Elas relatavam as oportunidades e maravilhas da terra, difundindo, assim, a grande aventura que era emigrar. Estes foram seguidos por outros 14, todos com visto de trabalho. Todos falavam inglês, tinham o segundo grau completo e pertenciam a famílias das classes mais abastadas da cidade”, diz o estudo da pesquisadora.
“Esses dezessete primeiros jovens emigraram com visto de trabalho e se constituíram nos pontos iniciais do movimento migratório de Governador Valadares para os EUA e deram origem a um fluxo migratório, aumentando consideravelmente a presença de brasileiros nos Estados Unidos”, diz.
A partir de 1966, segundo a pesquisadora, os relatos demonstram que poucos foram os que conseguiram visto de trabalho, tanto pelo alto custo do depósito exigido quanto por negativa do consulado, e o visto de turista passou a ser o mais utilizado.
“Na segunda metade dos anos 1980, a negativa do visto de turista atingia a maioria dos que desejavam migrar. Crescem então as alternativas: passaporte montado (falso) e a travessia pela fronteira do México”.
A formação dos laços sociais consolidados ao longo das décadas tornava, para muitos valadarenses, migrar para os Estados Unidos mais fácil e familiar do que mudar-se para uma capital como São Paulo, por exemplo.
A busca pelos vistos de turista estimulou uma espécie de “indústria de serviços” para ajudar nessa tarefa. Passam a existir na cidade agências de turismo que organizam a documentação, informam como proceder na hora da entrevista, como se vestir, fazem o agendamento e oferecem transporte terrestre até o consulado.
Estudos de Sueli Siqueira realizados em 2009 apontam que 89% dos emigrantes entrevistados por ela retornaram ao Brasil na mesma situação em que se encontravam quando chegaram aos Estados Unidos, ou seja, continuavam indocumentados. Em grande parte, eram emigrantes que estiveram nas cidades de Nova York, Miami e Boston.
“No final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, observa-se uma mudança deste quadro — os mais pobres também passam a migrar, financiados pelos emigrantes da região que se estabeleceram e montaram algum tipo de negócio demandando mão de obra. São negócios de faxina, pintura e construção civil ou comércio étnico. Estes proprietários financiam a passagem a ser paga com trabalho.”
Também influenciaram essa conexão Valadares-EUA, segundo Siqueira, a existência de um mercado de trabalho secundário no país de destino, de trabalhos menos qualificados, desprezado pelos trabalhadores americanos devido ao baixo status e baixa remuneração, mas atrativo para o emigrante.
Além disso, ela pontua o efeito do desemprego e da queda no poder aquisitivo da classe média a partir do fim dos ciclos de prosperidade econômica nos anos 60.
Por que engenheiros americanos estavam em Valadares?
As obras na estrada de ferro que trouxeram Mister Simpson a Valadares eram necessárias porque, na ocasião, o município vivia um boom demográfico e econômico. A estrada de Ferro Vitória a Minas, construída em 1910 para transportar toras de madeira e sacos de café, foi reformada quando teve início a partir da década de 40 também a exportação de minério de ferro.
Nos anos 30 e 40, uma das estrelas da economia valadarense tornou-se a exploração de mica, matéria-prima que era empregada na fabricação de materiais elétricos e instrumentos de precisão, tornando-se muito necessária para a indústria bélica durante a 2ª Guerra Mundial.
A produção, destinada quase exclusivamente aos Estados Unidos, foi ampliada consideravelmente, tornando-se um negócio altamente lucrativo, que empregava milhares de pessoas.
A exploração do solo e do meio ambiente valadarense aqueceu a economia e acelerou o crescimento da pequena cidade. Em 1940, a população de Governador Valadares era de 5.734 habitantes; em 1950 chegou a 20.357 habitantes e, dez anos depois, atingiu a cifra de 70.494 habitantes, segundo o pesquisador Haruf Salmen Espíndola, doutor em história econômica e professor da Univale em Governador Valadares.
“Entre os outros fatores que aceleraram o povoamento, destaca-se a decisão do governo brasileiro, em 1942, de exportar o minério de ferro de Itabira, (a 200 km de Valadares) em grande escala. Essa decisão resultou na criação da Companhia Vale do Rio Doce”, diz estudo do pesquisador.
Sob coordenação e financiamento dos Estados Unidos, a ferrovia foi totalmente reformada. Sob tutela americana também foi erradicada a malária, que era a maior dificuldade dos povoadores e ameaçava a atividade exploratória. Foram criados serviços especiais de saúde, que previam a implementação de saneamento básico e assistência médica.
“Na área de expansão urbana ficava a lagoa do Sapo, que servia de bebedouro para as boiadas e constituía-se num dos maiores focos do mosquito transmissor. A eliminação da lagoa do Sapo somente foi conseguida vencendo a enorme resistência dos que a utilizavam. Seu fim significou um grande alívio para a população urbana”, explica Espíndola.
“Era comum ver nas ruas de Governador Valadares o triste espetáculo de doentes definharern pelo chão”. Havia também grande incidência de leishmaniose e esquistossomose na região.
O fim da riqueza valadarense
A partir de 1960, a produção de mica despencou; ao fim da década, a produção já era bastante irrisória. O refluxo da atividade extrativa da mica teve consequências sérias para a economia local, com redução do número de empregos do setor, que despencou de cerca de 3.000 pessoas, no inicio dos anos 50, para cerca de 500 empregos, no início dos anos 60.
Além dos empregos diretos, a queda da demanda atingiu fortemente as centenas de famílias que trabalhavam a mica em suas próprias casas.
O perfil predatório das atividades da região do Rio Doce, que deixou poucas alternativas à medida que os recursos foram se esgotando, também contribuiu para o fim do período de expansão econômica em Valadares.
“O crescimento econômico e demográfico nas décadas de 40 e 50 foi baseado na exploração dos recursos naturais. Entretanto, a devastação da floresta e o esgotamento dos solos provocaram retração econômica e esvaziamento demográfico regional, repercutindo estruturalmente sobre a cidade”, afirma o pesquisador Espíndola.
O esgotamento dos recursos naturais exigiu dos empresários maiores investimentos de capitais para se obter ganhos de produtividade, porem a opção do capital foi migrar, segundo o estudo. “Restou a imagem da antiga prosperidade fixada na paisagem: nas ruínas das serrarias, das antigas usinas”, diz Espíndola em artigo sobre a formação da cidade.
Ao longo dos anos 60, as empresas e investidores do setor madeireiro foram migrando principalmente para o norte do Espírito Santo e sul da Bahia.
A região de Valadares, de polo de atração e crescimento, converteu-se, gradativamente, em reservatório de mão-de-obra para a indústria e trabalho doméstico. A população passou a mudar-se para outros Estados em busca de novas fronteiras agrícolas e centros industriais em crescimento. Com isso, a cidade foi perdendo o dinamismo populacional e econômico.
Hoje, Governador Valadares possui diversos dilemas de magnitude considerável, segundo o pesquisador: escassez de capital, abundância de mão-de-obra, baixa qualificação da força de trabalho e graves problemas ambientais, especialmente a degradação do solo e o assoreamento dos rios, em função do histórico predatório.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a cidade tem salário médio mensal de dois salários mínimos, e 35% da população vive em domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa.
Foi nesse ambiente que muitos valadarenses, em busca de melhores oportunidades, emigraram ilegalmente e acabaram deportados, como mostrou outra reportagem da BBC na cidade.
“Os anos 70 foram de imcomparável crescimento econômico de Minas Gerais, com índices superiores a 10% ao ano. Nesta década, contrariamente, a região do Rio Doce teve índice negativo de crescimento, com a população regional reduzindo-se em 0,14% ao ano.”
A região que foi considerada a “terra da promissão”, passou a ser mencionada nos documentos oficiais, a partir dos anos sessenta, como “região problema”.