As pessoas por trás das cenas de sexo seguro em Hollywood
Alicia Rodis entra no set de filmagens em Nova York com uma missão: supervisionar a gravação de uma cena de sexo grupal muito complexa — e ousada — para uma série de TV da emissora americana HBO.
Ela está lá para garantir que o diretor observe os limites de intimidade estabelecidos por cada um dos 30 atores participantes. Rodis acompanha as condições do consentimento em uma grande planilha, para garantir que todos estejam à vontade.
Em um teatro em outro lugar da cidade, Chelsea Pace coreografa uma cena íntima realizada por um casal.
“Aqui você não ‘acaricia’, você faz contato de pele com a parte da frente do corpo do seu parceiro”, diz ela, usando linguagem não sexual para interpretar as direções do palco, enquanto os dois atores repetem uma série de movimentos.Bem-vindo ao mundo dos “coordenadores de intimidade”.
Apenas alguns anos atrás, ninguém fazia este trabalho. Hoje, é uma das funções que mais cresce na indústria do entretenimento.
Elas ajudam artistas e produções a enfrentar cenas difíceis que envolvem contato físico, abraços e beijos, nudez ou sexo simulado.
Apenas algumas semanas atrás, o influente sindicato de atores americanos SAG-AFTRA publicou um documento histórico, com regras para cenas de sexo que devem ser implementadas por essas especialistas em intimidade. É parte de um movimento maior para dificultar má conduta sexual na indústria do entretenimento.
“Isso surgiu da preocupação de nossos membros por sua segurança”, diz Gabrielle Carteris, presidente da SAG-AFTRA. “Atores e mulheres em particular vieram a público contar suas histórias. Não apenas sobre Weinstein, mas muitas outras.”
O ex-magnata do cinema Harvey Weinstein, de 67 anos, foi considerado culpado de duas acusações de agressão sexual em um julgamento em Nova York em fevereiro.
Alegações contra ele ajudaram a desencadear os movimentos #MeToo e Time’s Up . Nos dois anos seguintes, a demanda por coordenadores de intimidade em Hollywood aumentou.
“Temos coordenadores de dublês, cenas de luta com coreografias e realmente nos preocupamos com as pessoas quando há violência física”, diz Alicia Rodis, que começou sua carreira como coreógrafa de luta.
“Mas, então, quando se trata de intimidade e nudez, que é outra situação de alto risco, não tínhamos nada disponível. É chocante.”
Rodis agora é coordenador de intimidade em tempo integral e cofundador da empresa Intimacy Directors International.
Os especialistas do setor estimam que, atualmente, cerca de 50 especialistas em intimidade trabalham em produções, principalmente nos EUA e no Reino Unido, um aumento de dez vezes em apenas alguns anos.
Desequilíbrio de poder
Improvisar cenas íntimas após as instruções básicas do diretor era o costume na indústria, deixando os próprios atores estabelecerem seus próprios limites.
“Confiávamos nas experiências de vida dos atores e torcíamos para que a noção ‘beijar apaixonadamente’ dos atores correspondesse à dos diretores”, diz Pace, que também é ator e se tornou cofundador do grupo de pesquisa Theatrical Intimacy Education em 2017.
O jogo de poder da indústria dificulta que os atores — principalmente as mulheres — se queixem desse tipo de cena.
“A primeira regra da autopreservação é dizer ‘sim’ a tudo. Isso foi realmente embutido no treinamento dos atores”, diz Pace.
A polêmica já existia antes do escândalo de Weinstein, em outubro de 2017.
Décadas depois de filmar O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, em 1972, Maria Schneider disse que se sentiu “humilhada” e “um pouco estuprada” quando o diretor a surpreendeu com um contato sexual que não estava no roteiro. Ela tinha 19 anos na época.
Mais recentemente, a atriz Emilia Clark falou sobre sua experiência em cenas de nudez de Game of Thrones, que considerou achou “assustadoras”.
“De repente, estou num set de filmagem completamente nua com um monte de gente em volta, e não sei o que fazer, e não sei o que se espera de mim, não sei o que querem e não sei o que quero”, disse ela em entrevista.
Mas as coisas começaram a mudar após a hashtag #MeToo ter viralizado.
Um dos momentos decisivos aconteceu no set da série da HBO The Deuce, sobre a crescente indústria pornô da década de 1970 em Nova York. Emily Meade, que interpretou uma profissional do sexo e atriz pornô, procurou os chefes para conversar depois de achar que algumas de suas cenas de nudez passavam dos limites.
“Já interpretei personagens realmente sexualizados ao longo da minha carreira. Fiz minha primeira cena de sexo aos 16 anos. E muitas vezes me senti pouco à vontade, às vezes, imediatamente, na hora de filmar, ou ao olhar para trás mais tarde”, disse Meade em uma entrevista da HBO.
E assim Alicia Rodis foi contratada pela primeira vez por uma rede de TV para intermediar a simulação de sexo em uma cena.
“Sempre digo: ‘Vamos discutir o que está no roteiro, mas também o que não está’, para não haver surpresas no set”, explica.
“Quero defender a visão do diretor e ao mesmo tempo garantir que respeitamos os limites dos atores.”
Mais tarde, a HBO anunciou que a rede contrataria coordenadores de intimidade para todos os programas com nudez. Outras empresas, como Netflix, Amazon e Apple+, seguiram o exemplo.
Agora, supervisores também são frequentemente encontrados em grandes produções teatrais.
“Servimos de apoio, mas também fazemos parte do processo criativo, para explorar como a intimidade pode servir de instrumento para contar histórias e se encaixar no roteiro”, diz Yarit Dor, primeira pessoa a ganhar o crédito de diretor de intimidade no West End de Londres.
“No teatro, o processo dura quatro semanas. Na TV e no cinema, tem que ser muito mais rápido, então, trabalhamos intensamente com os atores antes de irmos para o set”, acrescenta Dor.
Nova linguagem
Amanda Blumenthal, consultora de intimidade da série The Showair, da Showtime, recheada de cenas sexualizadas, diz que o trabalho é “parte mediador, parte conselheiro e parte coreógrafo”.
“O showbiz pressupõe que atores se sentem à vontade em cenas de nudez porque já fizeram outras antes, o que nem sempre é o caso”, diz Blumenthal, que dirige a Intimacy Professionals Association, uma rede de profissionais do setor.
“É uma situação incrivelmente difícil. Já me vi no set tendo que ajudar atores a impor limites”, acrescenta.
No ano passado, a crescente comunidade de especialistas em intimidade desenvolveu técnicas e protocolos para o seu trabalho — desde rever roteiros até aconselhar roteiristas, passando pela discussão de aspectos técnicos do sexo simulado.
As novas diretrizes do SAG-AFTRA envolvem até a pré-produção, com coordenadores de intimidade reunindo-se individualmente com os artistas antes do ensaio e garantindo que o departamento de figurinos forneça roupas de nudez, próteses e barreiras adequadas para cobrir órgãos genitais, como apliques de silicone ou tecidos duros.
Durante as filmagens de cenas íntimas, o coordenador deve exigir que o set permaneça fechado e que a equipe de apoio seja reduzida ao mínimo. E devem ajudar a coreografar a interação física.
“Grande parte do nosso trabalho é garantir um consentimento contínuo durante as filmagens da cena”, diz Blumenthal.
No Reino Unido, o Directors UK, associação que representa os diretores de cinema, também criou a função de coordenadores de intimidade. Ita O’Brien, a primeira diretora de intimidade da BBC e consultora da Sex Education da Netflix, está a cargo da estipulação de diretrizes.
É necessário estabelecer limites, diz O’Brien, “incluindo uma estratégia de comum acordo para interromper a ação quando necessário”.
Essas cenas precisam de tanto planejamento quanto uma perseguição de carro ou qualquer outro truque, segundo especialistas.
“No caso de beijos e talvez algumas carícias intensas, podem tocar os seios? E as costas, os ombros e o tórax? Garantimos que não haja contato genital ou, se os atores tiverem concordado com isso na cena, que exista uma barreira física”, explica Rodis.
Anteriormente, o papel de cuidar dos artistas recaía sobre figurinistas e maquiadores, que distribuíam roupões entre as cenas e prestavam atenção aos monitores para garantir que as imagens não revelassem mais do que havia sido previamente acertado.
Agora, os coordenadores de intimidade trazem um novo elemento ao set: uma linguagem dessexualizada para interpretar direções do palco.
“Não é um ator tateando outro ator: é um personagem tateando outro personagem, mas os atores são quem faz contato de pele”, explica Pace.
Em vez de “acariciar seu parceiro”, Pace diz que instrui atores a “fazer algum contato de pele com o lado do rosto do seu parceiro”.
Mudança estrutural
No entanto, o novo papel dos supervisores de intimidade encontrou certa resistência no setor.
No início, diz Carteris, diretores e produtores da SAG temiam que o processo de filmagem ficasse mais lento.
Há também uma preocupação financeira, porque o orçamento de produções menores pode não comportar a contratação de especialistas.
“Nós não somos a polícia do sexo. Às vezes, diretores pensam que estamos lá para dizer ‘não’ a um momento de nudez que eles querem. Esse não é o nosso trabalho”, diz Pace.
“Uma vez que trabalham com um especialista em intimidade, muitos diretores sentem um alívio no seu peso, é como uma salvaguarda”, diz Yarit Dor.
No entanto, é necessária uma mudança mais radical na indústria para abalar a “cultura do sim” que impede atores, principalmente mulheres, de se recusarem a fazer o que não querem.
“Trata-se de uma redistribuição dos poderes no set. Precisamos de diretores que queiram que os atores tenham voz, e que saibam como articular o que precisam”, diz Pace.
O número crescente de coreógrafos treinados em intimidade, bem como as novas gerações de atores conscientes da intimidade, podem levar essa mudança à indústria.
No ano passado, a Intimacy Directors International teve mais de 70 inscrições para as dez vagas em seu curso de certificação, segundo a agência de notícias Reuters.
“A verdade é que não há coordenadores de intimidade suficientes no momento, e a demanda só vai crescer”, diz Carteris.
O conjunto de coordenadores também precisa ser mais diversificado, argumentam os atores.
“Somos majoritariamente mulheres; também precisamos de mais pessoas não binárias e de diferentes origens”, diz Rodis.
“Às vezes, um coordenador de intimidade branco pode não ser adequado, porque talvez não consiga criar um set seguro para pessoas negras, e precisamos ter isso em mente.”