“Lá onde está tua estátua / O nosso amor se completa / Dor e prazer tem de sobra / Poeta. A luz pela praça se espalha / E a sombra da mão se projeta / Dar e receber é tua obra / Poeta.”
Este é um trecho da canção Monumento Vivo, uma das tantas em que Moraes Moreira faz referência a um local específico de Salvador (e do Carnaval): a Praça Castro Alves.
Fincada no Centro Histórico da capital baiana, a estátua do poeta Castro Alves (1847-1871) repousa na “côncava praça”, como Moraes também cantou na música Cidadão.
Pois foi bem ali, “aos pés do poeta”, que o também poeta Moraes Moreira entrou para a História em 1975 como primeiro cantor de trio elétrico – uma invenção baiana – e, no dia 22 de fevereiro deste ano, realizou sua última apresentação de Carnaval.
O local não poderia ser mais adequado para o que, agora se sabe, era uma despedida. Nesta segunda-feira (13/04), Moraes foi encontrado morto em seu apartamento no Rio de Janeiro, vítima de infarto, de acordo com sua assessoria de imprensa. Ele tinha 72 anos.
‘O show mais energético’
“Eu tava lá. Aliás, todo ano, desde que me recordo por gente, sempre estive com Moraes em todas as vezes que ele tocou na Castro Alves. E esse show, por incrível que pareça, parecia uma despedida mesmo”, afirma o jornalista e escritor Franciel Cruz.
Ele lembra que, diferentemente de apresentações anteriores, Moraes não tinha ao seu lado o filho Davi, com quem vinha dividindo o comando dos shows. Entretanto, na percepção de Franciel, aquela ausência fez com que o artista mostrasse mais vigor.
“Ele estava com a voz melhor do que nos últimos shows. Talvez tenha sido o show mais energético dele desde que a voz ficou fugidia. Como não havia Davi, ele teve que tirar força e voz num sei de onde para segurar a praça”, diz.
Franciel conta que, com a notícia da morte de Moraes Moreira, um amigo seu afirmou que Moraes fora o principal inventor do Carnaval de Salvador, mais até do que Osmar Macedo e Dodô Nascimento, que criaram o trio elétrico em 1950. Poeticamente, Franciel discorda: “Moraes não inventou o Carnaval. Ele é o Carnaval”.
De fato, Moraes Moreira assim definiu a si mesmo na música Eu sou o Carnaval, cantada em coro pelos foliões naquele último show da Praça Castro Alves. Coro que se repetiu em canções suas que, nas ruas da Bahia, são tidas como hinos, a exemplo de Chão da Praça (sempre a Castro Alves), Chame Gente, Vassourinha Elétrica e Pombo Correio.
“Foi uma energia massa esse show. Moraes na Castro Alves faz levitar os deuses do Carnaval”, diz o cineasta Mateus Damasceno.
De antemão, ele nem tinha planos de curtir aquele sábado de Carnaval, mas foi chamado por amigos para acompanhar um trio elétrico que desfilaria à noite. Então, colocou uma condição: “Só vou se formos mais cedo pegar o pôr-do-sol na Castro Alves com Moraes Moreira”.
“Abrir o Carnaval daquele jeito foi lindo. E as pessoas que fomos encontrando na praça tornaram aquele momento muito íntimo e particular, mesmo sendo no meio do Carnaval.”
O jornalista André Uzêda também estava lá e lembra-se de um Moraes “muito bem-humorado”. “Era até comum ele dar esporro por alguma coisa no Carnaval, mas naquele dia ele levou tudo muito de boa. A praça não tava muito cheia, mas ele brincou muito com quem tava ali e se mostrou feliz por ter tanto jovem”, conta.
O desfecho do show, no entanto, foi estranho, nas palavras de Uzêda. Ele diz que um trio elétrico precisou cruzar a Castro Alves e Moraes interrompeu sua apresentação, pedindo para o público abrir espaço.
“Nessa hora, eu fui pegar uma cerveja. Quando voltei, tinha acabado tudo. Acho que tinha estourado a hora e a produção pediu pra recolher. Foi um término do nada. Uma despedida sem despedida.”
Pelourinho
No dia anterior, 21 de fevereiro, Moraes Moreira fez seu penúltimo show de Carnaval, desta vez no Largo do Pelourinho. Ali, a voz já não exibia a mesma potência e limpidez do auge da carreira, o que não foi suficiente para desanimar o público.
“Na sexta-feira de Carnaval, ele parecia mais disposto que no show anterior, que eu vi no Pelourinho também, em janeiro. E por um momento me senti no melhor do Carnaval, com todos dançando, cantando, muitos fantasiados, inclusive eu. Pra mim, foi uma linda despedida. A música de Moraes Moreira me acompanha em todas as fases da minha vida, desde a infância, herança de meu pai, fã dos Novos Baianos”, diz a jornalista Mara Rocha.
Naquele dia, ela tinha a seu lado a amiga Sintia Cardoso. Cientista social e professora, Sintia se diz orgulhosa por ter nomes como Moraes Moreira como representantes da cultura baiana e brasileira. “São artistas como ele que mantém viva a essência do Carnaval, da festa sem separação, sem bloco. Estou muito triste com essa notícia, mas Moraes é um clássico. E clássico é pra sempre”.
Os blocos citados por Sintia sempre foram, inclusive, alvo de críticas de Moraes Moreira, que chegou a se afastar da folia de Salvador durante cerca de 20 anos, entre as décadas de 1990 e 2000, atribuindo sua decisão à discordância com o que, segundo ele, seria a lógica mercantilista que se espalhou pelo Carnaval.
Em meados da década de 2000, ele voltou à festa que ajudou a popularizar, puxando ao lado do filho Davi Moraes os chamados trios independentes, que desfilam sem cordas, para o folião “pipoca”.
“Nossas canções resistiram a tudo e a todos, dando mostras de que vieram para ficar. Passada a euforia dos sucessos imediatos, elas ressurgem gloriosas, no gogó dos foliões, inteiras e renovadas pela juventude. Reforçam assim um conceito que tenho: um bom Carnaval se faz com passado, presente e futuro”, disse Moraes em uma entrevista ao Jornal Correio, de Salvador, em 2017.
“Ali, no palco do Pelourinho, foi a última vez que vi e ouvi Moraes cantar. Antes disso, muita gente já vinha falando que ele estava sem voz, mas a voz estava lá, rouca e desgastada por décadas de cantoria, mas estava lá, cheia de histórias e história, plena de força e poesia”, observa o produtor cultural Alan Lobo.
Ele define Moraes como “parte viva da história da música brasileira” e “motor criativo” de um dos grupos mais emblemáticos de nossa música, os Novos Baianos. “No Pelourinho, naquela noite, Moraes parecia cansado, a voz parecia cansada, mas o caso é que não sabemos perceber quando a voz de nossos mestres precisa calar pra ser reconhecida.”
Trio elétrico
Naquela sexta-feira de Carnaval, o show que antecedeu a apresentação de Moraes Moreira no Pelourinho foi do grupo Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar, formado pelos quatro filhos de Osmar Macedo, um dos inventores do trio elétrico.
Integrante do grupo, o guitarrista Armadinho foi surpreendido pela morte inesperada de um parceiro que o acompanhou em tantos palcos e carnavais. “Acabo de perder um amigo-irmão. A gente brinca sempre que somos quatro irmãos do Trio Elétrico e Moraes é o quinto”, disse, em depoimento emocionado enviado pela assessoria de imprensa à BBC.
“A história do trio elétrico está nas músicas de Moraes. E quando a gente só fazia som instrumental em cima do trio, ele surpreendeu e mostrou que dava pra cantar, mesmo com o som meio precário. Aquilo mudou a história, todo mundo foi atrás”, comenta Armandinho.
“Ele me ligou sexta-feira (10), conversamos mais de uma hora. E eu sonhei com ele essa noite. No sonho, a gente tava saindo de um show juntos e parava pra tomar uma saideira, ele todo animado. Acho que o sonho foi isso: ele veio me visitar pra se despedir”.
Para a cantora Daniela Mercury, a morte repentina de Moraes Moreira representa a partida de um “artista seminal, que traduziu como poucos a essência do que somos”.
“Ele é uma referência para as músicas de trio elétrico, para frevos, sambas, para a MPB. Um compositor incrível, que fez muitas obras-primas, e ainda me deu de presente o Monumento Vivo, que eu gravei e todo mundo canta no Carnaval aquele refrão pedindo paz”, observa Daniela, citando a canção que abre esta reportagem.
“Toda vez que passo pela estátua de Castro Alves eu só lembro dele. É muito triste essa morte no meio dessa pandemia, em que estamos todos preocupados com o Brasil e o mundo. Nem poderemos homenageá-lo da forma que ele merece”, disse ela à BBC News Brasil.
Justamente para evitar aglomeração, a família de Moraes Moreira não divulgou informações sobre o sepultamento.
Também lamentando o impedimento da homenagem causado pela pandemia do novo coronavírus, o músico e produtor José Enrique Iglesias deixa no ar uma sugestão.
“Num conto que algum escritor ainda vai escrever, Moraes poderia ser cremado e, no próximo Carnaval, fazemos uma celebração na quarta-feira de cinzas, em plena Praça Castro Alves. É muito triste isso. Moraes merece um Carnaval inteiro de despedidas”.
Trajetória
Nascido na cidade baiana de Ituaçu, Antônio Carlos Moreira Pires, o Moraes Moreira, iniciou a carreira tocando sanfona. Já morando em Salvador, juntou-se a Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão para formar os Novos Baianos, integrando a banda entre 1969 e 1975.
Ao lado de Luiz Galvão, compôs boa parte das canções dos Novos Baianos, incluindo clássicos como Preta Pretinha e Mistério do Planeta, do icônico álbum Acabou Chorare, de 1972.
Em 1975, Moraes deu início a uma vitoriosa carreira solo, lançando mais de 20 discos em que exibe sua versatilidade de compositor, mesclando influências que vão do samba ao baião, passando por ijexás.
Em 2016, reencontrou os parceiros dos Novos Baianos para uma turnê comemorativa que esgotou ingressos por todo o país.
Além dos discos, Moraes lançou os livros Sonhos Elétricos, Poeta não tem idade e A História dos Novos Baianos e Outros Versos, em que narra, por meio da poesia, a trajetória do grupo.
Sua morte deixa vaga ainda a cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.