No dia 14 de agosto de 1899, uma notícia telegrafada de Portugal chegou ao gabinete de Nuno de Andrade, diretor-geral de Saúde Pública de um Brasil recém transformado em república.
O telegrama anunciava que a cidade do Porto passava por um surto de peste bubônica. A informação, além de surpreendente, visto que havia mais de um século não se tinha registro de surtos da doença na Europa, era alarmante.
O Brasil mantinha relações comerciais estreitas com Portugal, e, se providências não fossem tomadas, era só uma questão de tempo até que a peste chegasse ao país.
Nuno de Andrade considerou necessário adotar estratégias severas, apoiadas pelo então ministro de Justiça e Negócios Interiores, Epitácio Pessoa: todos os navios vindos de Portugal estariam sujeitos à quarentena de 20 dias, e a medida se estenderia aos navios espanhóis. Também ficaria proibida a entrada de mercadorias como couros e peles, mobílias, roupas e acessórios, frutas e laticínios, e retalhos de tecido.
As medidas foram duramente criticadas, especialmente pelo diretor de Higiene e Assistência Pública do Estado do Rio de Janeiro, o médico Jorge Alberto Leite Pinto.
Em cartas publicadas no Jornal do Comércio, ele considerou a decisão descabida. Seus principais argumentos eram que, dois anos antes, a Conferência Sanitária Internacional havia estabelecido o período máximo de 10 dias de quarentena para navios saídos de portos infectados, ainda que o Brasil não fosse signatário da convenção.
Ele também acreditava que o prejuízo econômico pelas restrições seria grande, porque o tempo parado no porto elevaria o preço dos produtos. E sustentava que a doença era facilmente dominável e tratável.
O mundo em 1899 era bem diferente do de 1720, quando Marselha registrou o surto anterior de peste na Europa e perdeu 50 mil habitantes. Era mais diferente ainda de 1346, quando a peste causara causou morte de 75 a 200 milhões de pessoas. Considerada a pandemia mais devastadora da história da humanidade, foi apelidada de Peste Negra.
Em 1894, o cientista franco-suíço Alexandre Yersin e o japonês Shibasaburo Kitasato finalmente identificaram o bacilo da doença. Dois anos mais tarde, o russo Waldemar Haffkine criou uma vacina contra a peste, e, em 1898, Yersin usou os primeiros soros antipestosos em seres vivos. No período, o francês Paul Louis Simond descobriu que a doença era transmitida aos homens pelas pulgas dos ratos.
Mas os novos conhecimentos e as providências adotadas (após quase um mês de debates públicos, Nuno de Andrade manteve sua decisão) não impediram a chegada e a disseminação da peste no Brasil. No dia 18 de outubro de 1899, foi oficialmente admitido que havia uma epidemia de peste bubônica em Santos, no litoral de São Paulo.
Investigação detalhada
O processo de reconhecimento da epidemia não foi nada simples, justamente pelo contexto econômico da época. “No início, os governos tentaram esconder, por causa do comércio de café e dos imigrantes”, diz a historiadora Olga Fabergé Alves, pesquisadora do Centro de Memória do Butantan.
Santos era o segundo maior porto do país, de onde escoava a produção de café — em 1894, superou o Rio de Janeiro e se tornou o maior centro exportador de café do mundo. Por ele, também chegavam imigrantes para trabalhar na lavoura. Segundo os anuários estatísticos do Estado de São Paulo, 16.764 estrangeiros desembarcaram em terras paulistas em 1899.
O primeiro a levantar a suspeita da peste foi o médico santista Guilherme Álvaro, chamado para atender um suposto caso de febre amarela no início de outubro de 1899.
Ele estranhou a evolução da doença e o aspecto do cadáver, que não era amarelado como as vítimas da febre. Ao aprofundar a investigação, encontrou ratos mortos nas redondezas da casa da vítima, que ficava perto de um armazém que guardava as bagagens dos passageiros marítimos.
“Ele achou que era a peste e que deveria ter quarentena, mas os empresários ficaram abalados e pediram uma revisão do diagnóstico”, conta o historiador Luiz Antônio Teixeira, da Casa Oswaldo Cruz.
A diretoria geral do serviço sanitário pediu que o Instituto Bacteriológico do Estado de São Paulo enviasse alguém a Santos avaliar a situação.
Foi então que “o mais novo e obscuro dos ajudantes do instituto”, Vital Brazil, “foi o designado para tal incumbência”, conforme escreveu o próprio no relatório que redigiu sobre a peste. No dia 9 de outubro, ele partiu para Santos para integrar a comissão sanitária liderada pelo médico Eduardo Lopes.
A investigação se concentrou na casa da família Milone, que teve sete doentes e dois mortos, e mais tarde foi identificada como foco da peste. Inicialmente, Brazil acreditou que se tratava de tifo, até observar nas autópsias bacilos como os da peste.
“A característica epidemiológica, a observação clínica e a prova bacteriológica nos levam a concluir que a moléstia que estudamos em Santos é, sem dúvida alguma, a peste bubônica”, concluiu o pesquisador em seu relatório. No 23º dia de pesquisas, ele próprio foi acometido pela doença.
“Nos lembraremos sempre do que vimos no prédio nº 39 da Rua 15 de Novembro”, escreveu Álvaro no livro A campanha sanitária de Santos – Suas causas e seus efeitos, lançado em 1919.
“Ao abrirmos as portas do armazém onde funcionara o bar, deparamos com mais de 40 ratões mortos espalhados pelo solo, muitos já em decomposição, jazendo alguns sobre os balcões. No andar superior ainda havia ratos mortos, vários existindo na cozinha e na pequena despensa ao lado. Fizemos incinerar logo para mais de 60 ratos encontrados em todo o prédio, e dada a presença de pulgas que nos atacaram e aos desinfectadores, não compreendemos ainda hoje por que não fomos vitimados pela doença, que na véspera havia prostrado o doutor Vital Brazil, no Hospital de Isolamento, onde trabalhava.”
Apesar da declaração de situação epidêmica, o governo insistiu em mais confirmações. Foram chamados, então, os médicos cariocas Oswaldo Cruz e Eduardo Chapot Prévost, que mais uma vez atestaram que se tratava da peste.
O diretor-geral de saúde pública pediu demissão por se considerar incapaz de evitar a chegada da doença ao país. O ministro da Justiça, entretanto, não aceitou o pedido, e Nuno de Andrade permaneceu no cargo até 1903.
Saneamento e pesquisa
Se era tarde demais para conter a disseminação da peste, que de fato chegou ao Rio de Janeiro no verão de 1900 e se espalhou por outras cidades como São Luís, Porto Alegre e Recife, a estratégia se voltou para as medidas de enfrentamento. O principal objetivo era trazer da Europa o soro para o tratamento dos doentes.
“O problema é que o estoque estava muito baixo, por causa dos surtos em outras cidades, como no próprio Porto e na Ásia”, diz a historiadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa Oswaldo Cruz. “Oswaldo se propôs então a criar institutos soroterápicos para produzir o soro no Brasil.”
As autoridades sanitárias concordaram e encarregaram os pesquisadores que trabalharam na investigação da missão de fundar os institutos. “A ideia de impedir as quarentenas é que acabou gerando a criação de duas das maiores instituições de pesquisa do Brasil, para tentar impedir novas epidemias”, diz Teixeira.
Nas duas cidades, os institutos foram instalados em locais afastados por causa do medo da população em relação aos experimentos lá desempenhados.
Em São Paulo, o lugar escolhido foi a Fazenda Butantan (nome que em tupi-guarani significa “terra muito dura”), uma antiga chácara com 400 hectares comprada pelo governo que ficava a 8 km do centro da capital e a 6 km do hospital de isolamento, atual Instituto Emílio Ribas.
Inicialmente, foi considerado um laboratório do Instituto Bacteriológico, até virar uma instituição autônoma em 1901, sob direção de Vital Brazil. O prédio central, hoje batizado em homenagem ao primeiro diretor, foi inaugurado em 1914.
No Rio de Janeiro, a área escolhida foi a fazenda de Manguinhos, em Inhaúma, na periferia da antiga capital federal. “Aquilo tudo era mangue, chegavam lá de barco e depois de charrete”, conta Nascimento. Um dos discípulos de Oswaldo Cruz, Ezequiel Caetano Dias, descreveu: “Foi aí, nestas toscas e velhas construções, que se começou a fazer medicina experimental.”
No dia 25 de maio de 1900, foi oficialmente inaugurado o Instituto Soroterápico Federal, atual Fundação Oswaldo Cruz. O prédio principal, conhecido como Castelo de Manguinhos, e os prédios adjacentes — cavalariça, quinino, pavilhão da peste, aquário, hospital e biotério —, começaram a ser construídos em 1903 e ficaram prontos em 1918.
Mesmo com a produção nacional de soro, só no primeiro ano de epidemia a capital federal registrou cerca de 500 mortes. Em 1903, com o número de casos aumentando, Oswaldo Cruz foi nomeado diretor da Diretoria Geral de Saúde Pública pelo novo presidente Rodrigues Alves, que tinha como principal meta a modernização do Rio de Janeiro.
A missão de Oswaldo Cruz era acabar com as epidemias de febre amarela, varíola e peste bubônica. “A presença da peste não gerava somente entraves econômicos, impedindo que navios brasileiros aportassem no exterior sem quarentenas ou fazendo navios estrangeiros se recusarem a parar no porto do Rio, mas havia um estigma associado à doença, ligada ao mundo medieval europeu e aos horrores produzidos por ela”, diz Nascimento.
Evolução da pesquisa nacional
Como diretor-geral, Oswaldo Cruz estabeleceu novas estratégias para eliminar a peste da capital. Entre elas, a fim de engajar a população na captura e extermínio dos vetores, criou um sistema de compra de ratos. As pessoas os entregavam aos agentes sanitários, apelidados de “ratoeiros”, em troca de uma pequena quantia.
Ao contrário de outras medidas de Oswaldo Cruz, consideradas draconianas e estopim para revoltas populares (a mais famosa é a Revolta da Vacina, de 1904), essa teve adesão, embora um pouco às avessas. Uma das lendas urbanas mais conhecidas do período é a de Amaral, um morador que criava ratos com o único propósito de vendê-los e acabou preso pelos atos ilícitos.
Na capital paulista, medida parecida foi aplicada, com o valor de 300 réis por animal abatido. Diferentemente do Rio de Janeiro, cabia à população a caça e a venda dos animais ao desinfectório central. Em 1904, porém, a estratégia foi reformulada, e os animais passaram a ser exterminados por envenenamento com gases tóxicos.
A epidemia de peste bubônica no Brasil perdurou até 1907, mas o último registro em seres humanos só ocorreu em 2005 — e ela continua circulando entre os roedores.
Apesar disso, estima-se que haveria muito mais vítimas sem os sistemas de contenção e as pesquisas dos novos institutos. Embora tenham sido criados com essa finalidade, eles foram rápidos em ampliar as atividades para outras moléstias que acometiam o país.
“Os institutos foram criados para resolver um problema específico, uma demanda urgente, mas foi interessante porque aproveitaram a oportunidade para criar outras coisas, sempre usando como argumento a vantagem econômica de se evitar acidentes ou novas epidemias e quarentenas”, diz a historiadora do Butantan.
No Butantan, Vital Brazil se dedicou à criação de soros contra a picada de cobras, muito comuns no interior ainda inexplorado. Na Fiocruz, foram desenvolvidos soros e vacinas para enfermidades como a febre amarela e a varíola, e descobertas novas doenças, como a de Chagas, descrita pelo diretor do instituto Carlos Chagas em 1909.
Hoje, o Butantan é o principal responsável pela produção de vacinas do Programa Nacional de Imunizações (PNI). A Fiocruz, além da central no Rio de Janeiro, está presente em 7 cidades brasileiras e na capital de Moçambique, Maputo.
Na atual pandemia do novo coronavírus, pesquisadores da instituição paulista estão desenvolvendo um composto de anticorpos para combater a covid-19 e comandam a busca por uma vacina, enquanto a Fiocruz integra uma coalizão mundial para acelerar as pesquisas sobre o vírus. Um dos laboratórios cariocas foi também nomeado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) referência para covid-19 nas Américas.
“Não é exagero dizer que se trata das instituições de ciência e pesquisa científica mais respeitadas no Brasil e no mundo”, opina Nascimento.