Quanto vale Carmen Miranda? Leilão com raridades da estrela tem lances baixos e domínio de estrangeiros
“Estou sem fôlego”, disse Carmen Miranda após ajoelhar-se por um segundo enquanto dançava com Jimmy Durante no programa da NBC ‘The Jimmy Durante Show’, em 4 de agosto de 1955.
Ela ergueu-se sorrindo, mas poucas horas depois, em sua casa em Beverly Hills, a famosa estrela da música brasileira morreu, aos 46 anos, de um ataque cardíaco.
O robe de seda cor de rosa que ela vestia em sua última noite foi leiloado na terça-feira (02/6), pelo equivalente a R$ 3 mil reais.
O primeiro contrato que a levou aos Estados Unidos, assinado a bordo do navio Normandie pelo produtor da Broadway Lee Schubert, em 27 de março de 1939, também foi arrematado: R$ 5 mil.
A venda de maior valor foi uma foto com dedicatória da cantora tirada em 1930. Custou R$ 12,7 mil.
Mais curioso do que o investidor Haroldo Coronel leiloar 419 itens de sua coleção é o fato de os órgãos de cultura brasileiros nunca terem se interessado em adquirir os objetos pessoais, chapéus, vestidos, joias, correspondências, documentos e fotos da brasileira mais famosa do mundo no século passado.
Nenhuma instituição nacional participou do leilão online, realizado pelo Soraia Cals Escritório de Arte. Um dos principais compradores foi o Academy Museum, de Los Angeles, museu da Academy Awards que obteve US$ 388 milhões em doações e terá seis andares dedicados à história do cinema.
Tom Hanks anunciou, durante a última cerimônia do Oscar, que ele será aberto ao público no dia 14 de dezembro: “Há muita cultura na Cidade dos Anjos, mas nunca houve um museu sobre a arte e a ciência dos filmes”, disse o ator, um dos curadores.
Símbolo nacional
Com 10 milhões de discos vendidos, Miranda gravou quase 300 músicas no Brasil e foi a mulher mais bem remunerada dos Estados Unidos nos anos 1940. Tem uma estrela na Calçada da Fama e seu autógrafo, pés e mãos gravados no Pátio das Estrelas, em Hollywood. Símbolo de carisma e alegria, a superstar de 14 filmes americanos tornou-se a imagem mais poderosa do Brasil no exterior.
Nascida em Portugal e criada no Brasil desde os 10 meses, a “Pequena Notável” de 1,52m de altura – conhecida no exterior como “Brazilian bombshell” – tem sua memória mais bem preservada na pequena cidade natal, para onde nunca voltou, do que no Rio de Janeiro, onde conquistou fama e fortuna na década de 1930.
Enquanto em Marco de Canaveses, distrito do Porto onde vivem 10 mil pessoas, estão investindo 1,1 milhão de euros na expansão do Museu Municipal Carmen Miranda, o museu inaugurado no Rio em sua homenagem em 1976 – 20 anos após ser anunciado pelo então prefeito Francisco Negrão de Lima – está fechado.
“Quando, em 1998, estive lá para coletar material para minha pesquisa, só existiam alguns de seus trajes e escassos recortes de jornais. Era melancólico o abandono em que se encontrava o acervo. O museu parece nunca ter existido de fato”, disse Tânia da Costa Garcia, professora de História da América na Universidade Estadual Paulista, pós-doutora pelo King’s College London e autora do livro O It Verde e Amarelo de Carmen Miranda.
Uma parte do acervo do museu carioca desapareceu enquanto ficou guardado nos porões da rádio Roquette Pinto. E a construção da nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS), na praia de Copacabana, para onde mais de 3 mil itens devem ser transferidos, continua parada. O novo MIS deveria ter ficado pronto em 2012.
A historiadora Clara Paulino, presidente do MIS, escreveu um e-mail para Coronel assim que soube do leilão online. Disse que a instituição estava interessada, mas que “não dispõe de recursos financeiros para arrematar tais itens”.
“Não se investe em cultura no Brasil, e os atuais governantes não sabem o que é a cultura brasileira. Essa coleção é o investimento de uma vida inteira, como eu poderia doá-la para que fique abandonada como todo o resto?”, indaga Coronel, que vive em Buenos Aires e conta ter gastado pelo menos US$ 60 mil para adquirir as peças do viúvo de Miranda, o americano David Sebastian, nos anos 1980.
Os itens no leilão
Entre os itens vendidos no leilão, há relíquias da passagem de Miranda pela Inglaterra, quando fez temporada de sucesso no London Palladium após desembarcar no porto de South Hampton, em 21 de abril de 1948. Além do bracelete de cobre que ela usou em uma gravação na BBC, arrematado por R$ 1,5 mil, foram vendidas imagens raras na igreja de Weston Turville, do dia 1 de maio daquele ano, durante a celebração do May Day – a cantora foi coroada May Queen e brincou de Maypole com crianças.
Em duas apresentações diárias durante um mês, Miranda encantou os ingleses. Nos arquivos da British Pathé há uma entrevista gravada no camarim do Palladium. Ela conta que a inspiração para os chapéus de bananas, principal marca do seu figurino tropical, veio das baianas que carregam cestas de frutas na cabeça.
O repórter John Parsons perguntou o que ela guardava sob o turbante. “Você não acredita que eu tenho cabelo, acredita?”, responde, sorrindo como sempre, antes de tirar o adereço. “É o meu próprio cabelo. Gosto muito dele. Mas esta não é minha cor natural, eles o descoloriram em Hollywood”, disse com sua habitual sinceridade.
Nos Estados Unidos, Miranda fez sucesso interpretando personagens que representavam estereótipos da mulher latino-americana – o que fez a estrela receber uma infinidade de críticas severas no Brasil.
Ruy Castro lembra na biografia Carmen, publicada pela Companhia das Letras em 2005, que Antonio Moniz Vianna chegou a definir a cantora, no jornal Correio da Manhã, como “acafajestada, que já não sabe cantar, falar ou andar”, após assistir a Se eu fosse feliz (1946). O Globo a desqualificou pelo que chamou de “macaquices”. Ela passou 14 anos sem pôr os pés no Brasil.
“Apesar da Carmen Miranda made in Hollywood ser muito diferente da intérprete dos anos de 1930 – quando ainda não vestia o traje da baiana e cantava com picardia sambas e marchinhas de grandes compositores como Ary Barroso e Assis Valente -, foi a baiana estilizada que interpreta um mix de samba com rumba, mais ao gosto do público estrangeiro, que permaneceu no imaginário nacional e internacional. Contraditoriamente, Carmen deve a Hollywood sua imortalidade”, afirma a historiadora Tânia da Costa Garcia.
Longe de seus súditos e de seus críticos brasileiros, viciou-se em pílulas para dormir e mais pílulas para se manter acordada, até que seu corpo entrou em colapso naquela noite de agosto de 1955. O corpo de Miranda foi velado na Cinelândia, no palácio Pedro Ernesto. O velório e o enterro foram vistos por cerca de 500 mil pessoas – quase 25% dos 2,3 milhões de moradores da cidade à época. Até hoje, mulheres e homens se fantasiam de Carmen Miranda no Carnaval.
Sem interesse do governo federal na coleção de Coronel – a extinção do Ministério da Cultura foi uma das primeiras medidas do presidente Jair Bolsonaro -, e tampouco do governo estadual do Rio, muitos itens da coleção sairão do país para sempre. “Estamos vivendo uma demolição cultural do país. O descaso é total”, afirma Coronel.
Além do Academy Museum, o museu dedicado a Carmen Miranda em Portugal também foi um dos compradores. Fã da cantora, o bilionário brasileiro Lírio Parisotto anunciou em sua página no Instagram que comprou 40 itens, entre fotos autografadas, uma bolsa e um sapato de couro. Tudo irá para um centro de memória na sede de sua empresa, em Barueri, na região metropolitana de São Paulo.
Especialistas em leilões de arte, Soraia Cals e sua filha, Marcella Cals, não divulgam os compradores por sigilo contratual. “Vendemos 80% dos lotes. É uma grande homenagem a Carmen Miranda. São muitos itens raros e inéditos, dignos de estarem nos melhores museus do mundo”, diz Marcella Cals.
Coronel ficou amigo do viúvo de Miranda quando morou em Los Angeles, onde estudou cinema na juventude. “Eu pagava a Universidade da Califórnia mês sim e mês não”, diverte-se.
Ficava devendo a mensalidade para comprar novas peças de Sebastian, um americano mal visto pela família e pelos amigos de Miranda. Coronel o defende: “Ninguém ouviu a versão dele. Diziam que casou com Carmen por interesse na fortuna, que ela se perdeu por ser infeliz no casamento. Chegaram a culpá-lo pela morte dela. Quando o conheci, ele ainda sofria por isso”.
Ele se diz satisfeito por vender cerca de metade de sua coleção. “Tenho sido o guardião do tesouro da Carmen, mas já tenho 62 anos, não sei o que pode acontecer amanhã”, afirma. “Chegou a hora de passar isso adiante para preservar a memória da estrela mais brilhante do Brasil.”