Frente Negra: a história do movimento que apoiava o integralismo e foi pioneiro do ativismo negro no país
Semanas antes do início da última guerra civil no Brasil, a Revolução Constitucionalista deflagrada em 9 de julho de 1932, a cidade de São Paulo assistiu a uma partida de futebol entre “Brancos x Pretos”. Organizado pela Frente Negra Brasileira (FNB), o jogo era uma celebração do 13 de maio, aniversário da abolição da escravatura no país.
O secretário da entidade, Izaltino B. Veiga dos Santos, explicou a importância do evento ao jornal Folha da Noite*: “É um momento a mais para a sociedade demonstrar que deseja a aproximação do negro brasileiro, reconhecendo-lhe o valor indiscutível nos diversos ramos da atividade humana.”
Criada em setembro de 1931 no centro de São Paulo, a Frente Negra Brasileira promovia eventos com esse jogo anual. Por outro lado, ela é considerada por historiadores e intelectuais como a primeira organização negra do país, precursora dos movimentos ativistas que até hoje lutam contra o racismo. A FNB durou até 1937, quando foi dissolvida pelo mesmo político que ela apoiou por muito tempo, o então presidente (e ditador) Getúlio Vargas.
Porém, os posicionamentos da direção da FNB e o apoio a Vargas nem sempre foram encarados com bons olhos por seus próprios associados. Em julho de 1932, semanas depois do fatídico jogo entre brancos e negros, uma dissidência se formou na organização.
Alguns membros abandonaram a FNB e formaram a Legião Negra, grupo que pegou em armas para combater as tropas de Getúlio na Revolução Constitucionalista (leia mais abaixo).
Por que a Frente Negra foi importante?
Antes do conflito, no entanto, o ativismo negro organizado era novidade. Nas duas primeiras décadas do século 20, até existiam clubes, associações recreativas e jornais que cobriam o cotidiano dessa parcela da população em grandes centros, como Campinas e São Paulo. Mas nenhuma iniciativa teve a força da FNB.
“Em pouco tempo, a Frente Negra Brasileira abriu dezenas de delegações em São Paulo e também em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Ela foi a maior organização negra da história da República, a que teve maior projeção e repercussão”, diz o historiador Petrônio Domingues, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e autor de livros sobre questões raciais, como Protagonismo Negro em São Paulo (Edições Sesc).
A estimativa do número de associados da FNB varia bastante entre os pesquisadores: de 8 a 50 mil pessoas, muitos deles parte de uma pequena classe média formada por professores e funcionários públicos. Para virar sócio era preciso pagar uma taxa de inscrição e uma mensalidade, verba que financiava a organização.
A entidade, dona do jornal A Voz da Raça, combatia o racismo e defendia políticas voltadas à melhoria das condições de vida da população negra. Também oferecia uma série de atividades aos sócios, como bailes, festas, aulas de música, atendimento médico e palestras sobre questões raciais e a situação política.
“A Frente Negra Brasileira foi a primeira organização no país a falar que o então chamado ‘preconceito de cor’ era um problema nacional e estrutural. Hoje isso é consenso, mas nos anos 1930 não era. Até intelectuais importantes, como Gilberto Freyre, diziam que havia sim racismo, mas ele era excepcional e isolado a alguns casos”, explica Petrônio Domingues.
Já no campo ideológico, a liderança da instituição era próxima ao fascismo e ao integralismo — movimento de extrema-direita ultranacionalista e conhecido pelo lema “Deus, Pátria e Família”. Mas essa posição, dizem os pesquisadores, precisa se entendida de acordo com o contexto da época.
“O integralismo tinha um apelo por conta de sua narrativa de inclusão da população negra. Essas ideologias estavam circulando por aqui e influenciando diversos grupos”, explicou o cientista social Márcio Macedo, coordenador de diversidade da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista recente à BBC News Brasil.
“Uma ideia que nasce com os integralistas, e que foi cara à FNB, era o conceito de segunda abolição. Isso significa que a abolição da escravatura não havia sido completa, porque não se pensou em políticas de integração e de auxílio à população que fora liberta. Seria necessária uma segunda abolição para que essas medidas fossem implementadas.”
Segundo Macedo, os ativistas da FNB acreditavam que o negro brasileiro deveria se integrar aos valores dominantes da época: o catolicismo e a ideia da Europa como centro do mundo. “Não eram negros que afirmavam que a África e suas manifestações culturais, como religiões de matriz africana, eram importantes na identidade deles. Esses conceitos só apareceriam nos movimentos negros década depois”, diz.
Para o historiador Petrônio Domingues, outros fatores influenciavam o posicionamento da direção da FNB, como o nacionalismo e uma desconfiança xenófoba de que imigrantes estavam ocupando o mercado de trabalho da população negra.
Outra explicação é a amizade entre o presidente da FNB, o professor Arlindo Veiga dos Santos, e Plínio Salgado, líder da Ação Integralista Brasileira. Não é coincidência, portanto, que o lema da Frente Negra — “Deus, Pátria, Raça e Família” — fosse inspirado no slogan dos integralistas, apenas com o acréscimo da palavra “raça”.
“A Frente Negra acreditava que a solução para o Brasil era um governo forte, que tivesse compromisso com a nação, como falavam que Hitler tinha com a Alemanha. É bom lembrar que essa época é anterior à Segunda Guerra e ao Holocausto, quando Hitler ainda era celebrado pela comunidade internacional como um governante que ‘estava dando um jeito’ na Alemanha”, diz Domingues.
Vem desse contexto o apoio da FNB a políticas de extrema-direita e a Getúlio Vargas, que se colocava como um presidente nacionalista e era visto como uma esperança de melhoria nas condições de vida da população negra.
Mas nas fileiras da FNB havia negros e negras de outras vertentes ideológicas: monarquistas, socialistas e comunistas. E nem todos concordavam com o apoio da entidade a Getúlio. Em julho de 1932, isso ficou mais claro.
Um exército negro
Em 9 de julho de 1932, a elite paulista, setores da classe média e uma milícia estadual se rebelaram contra Getúlio Vargas em um conflito armado. Os paulistas exigiam a destituição do presidente e uma nova Constituição — daí o nome de Revolução Constitucionalista.
Mas São Paulo não tinha um exército próprio. Para lutar contra as forças federais — muito maiores e mais bem equipadas —, milhares de paulistas se alistaram voluntariamente em agrupamentos militares.
“Quando eclodiu a rebelião, a Frente Negra Brasileira, que sempre apoiou Getúlio mas tinha sua sede em São Paulo, divulgou uma nota pública se dizendo neutra no conflito”, explica Petrônio Domingues. Parte dos militantes ficou indignada com a posição, rompeu com a FNB e formou a chamada Legião Negra.
Essa nova entidade, liderada por Joaquim Guaraná Santana e Gastão Gourlart, lançou uma “Proclamação a todos os negros do Brasil”, na qual “expressava seus ideais de liberdade associadas aos direitos, cidadania e à participação”, segundo artigo de Petrônio Domingues no livro Dicionário da Escravidão e Liberdade (Cia. das Letras).
A Legião conseguiu arregimentar cerca de 2.000 combatentes negros. Na sede do grupo, no bairro da Barra Funda (zona oeste paulistana), os voluntários recebiam uniforme, armas, equipamentos bélicos e um curto treinamento militar. Após um juramento, eram enviados aos campos de guerra.
O agrupamento também tinha muitas mulheres negras, que trabalhavam na retaguarda, em serviços de enfermagem e cozinha. Uma delas, em particular, ficou famosa nos jornais: a voluntária, conhecida como Maria Soldado, era cozinheira de uma família rica, não avisou aos patrões sobre seu alistamento e chegou a se passar por homem para participar de batalhas.
Para a Legião Negra, lutar pela Constituição e contra o governo federal significava “opor-se à opressão e defender o regime da lei, da democracia e, no limite, defender a própria pátria”. Por outro lado, segundo Domingues, homens negros muito pobres viram no alistamento militar uma oportunidade de sobreviver e de ganhar algum dinheiro.
Mas São Paulo se rendeu três meses depois, embora o Estado tenha se considerado o “vencedor moral” do conflito.
“Depois da guerra, o governo paulista pagou indenizações às famílias de soldados mortos ou de combatentes que ficaram inválidos. Mas os jornais mostraram que muitos negros ou familiares de mortos não receberam as indenizações, como os brancos. Alguns reclamaram que não ganharam sequer o soldo”, diz Domingues, que fez uma pesquisa pioneira sobre a participação da Legião Negra na Revolução Constitucionalista.
Para o historiador, a entidade mostrou como a população negra da época “buscou se inserir da história do país, não ficando alheia à situação política.”
“Todos os anos, São Paulo celebra a revolução, no feriado de 9 de julho, com desfiles militares e homenagens. Mas até hoje a participação dos soldados negros no conflito não é reconhecida nem lembrada”, afirma.
O que aconteceu com a Frente Negra?
Já a Frente Negra Brasil existiu até 1937, quando a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas dissolveu partidos e organizações sociais. A entidade chegou até a se transformar em um partido político um ano antes — o primeiro e único partido negro da história do país. Mas nunca chegou a participar de uma eleição.
Segundo pesquisadores, a influência da FNB foi enorme na época, gerando uma série de organizações homônimas pelo país e influenciando movimentos negros na América Latina e no Caribe.
“A Frente Negra Brasileira foi a primeira no país a mostrar uma ação coletiva dos negros, que reivindicavam demandas contra o racismo a partir da participação política e da presença no debate nacional. A gente fala muito da importância dos movimentos negros pelos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 1960. Mas, 30 anos antes, a FNB já havia iniciado essa luta no Brasil”, diz Domingues.
*O jogo entre “Brancos x Pretos” de 1932, relatado no início desta reportagem, terminou em 6 a 1 para o time dos brancos.