Quem foi Joaquim Pereira Marinho, o traficante de escravos que virou estátua na capital mais negra do Brasil
Quando manifestantes antirracistas retiraram a estátua do britânico Edward Colston, no domingo (07/06), e a jogaram no fundo de um antigo porto de navios negreiros em Bristol, as imagens reacenderam debates sobre monumentos semelhantes na Europa e nos Estados Unidos.
Enquanto isso, em Salvador, o porto onde chegaram quase um terço dos africanos trazidos ao Brasil, a homenagem a um dos principais traficantes de escravizados continua imperturbável diante de uma praça pública no centro da cidade. Sua biografia ainda é conhecida, praticamente, apenas por historiadores.
A estátua do português Joaquim Pereira Marinho, que fica diante do hospital Santa Izabel, no Largo de Nazaré, na capital baiana, é um exemplo de como país ainda lida com a memória da escravidão, de acordo com um grupo de historiadores que decidiu mapear as homenagens do tipo na cidade.
“Aqui nós sequer temos ideia dos monumentos a figuras do passado que têm conexões com a opressão de negros, de indígenas ou a movimentos de emancipação política que temos nas cidades. De tempos em tempos temos esse debate entre os colegas, especialmente quando a discussão explode em outros países, como aconteceu nos Estados Unidos em 2017 e agora na Inglaterra”, disse à BBC News Brasil o historiador Moreno Pacheco, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), um dos responsáveis pela iniciativa.
De traficantes a benfeitores
Joaquim Pereira Marinho passou para a história como conde, mas não era parte da nobreza. Seu título já foi conquistado como parte de um esforço para estabelecer uma imagem como membro da alta sociedade da Bahia, depois da fortuna feita com o tráfico de africanos cativos.
O primeiro registro do português na Bahia é de 1828, como marítimo, um funcionário de navios. Dois anos depois, ele já é registrado como proprietário de navios que faziam frequentemente o trajeto entre o continente africano – a costa da Mina, onde hoje ficam Benin, Togo e Nigéria, e as regiões onde hoje são Angola e Congo – e o Brasil.
“Mas uma coisa que o torna diferente de figuras como Edward Colston, por exemplo, que já vinha de uma família proprietária de escravos, é que Pereira Marinho realmente entrou no negócio depois que ele já era proibido no Brasil”, disse à BBC News Brasil o historiador Carlos da Silva Jr., professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), doutorando em História da África pela Universidade de Hull.
Em 1831, a Lei Feijó passou a proibir, em teoria, a importação de africanos como escravos ao país. “Essa lei ficou conhecida como ‘Lei para Inglês Ver’, porque apesar da queda no número de negros trazidos ao Brasil como escravos até 1835, ele voltou a aumentar nos anos seguintes, porque os traficantes, com o apoio do Estado brasileiro, continuaram trazendo pessoas para cá.”
Os navios registrados em nome de Pereira Marinho no projeto Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico fizeram 33 viagens entre o Brasil e a África entre 1839 e 1850.
Segundo Silva Jr, estima-se que ele trouxe cerca de 11.584 homens, mulheres e crianças como escravos à Bahia, e até 10% deles, cerca de 1.150, podem ter morrido ainda durante a travessia.
Mesmo com a proibição definitiva do tráfico em 1851, com a Lei Eusébio de Queiroz, Marinho continuou transportando africanos como cativos para as Américas.
“Em 1858, ele criou a Companhia União Africana, para fazer comércio legal com a África, mas, graças aos contatos que tinha em Cuba, onde a compra e venda de escravos ainda era legalizada, ele manteve a atividade”, disse à BBC News Brasil a professora Ana Lúcia Araújo, professora da Universidade Howard, nos Estados Unidos e especialista na história transnacional da escravidão, que escreveu sobre o traficante português.
Assim como o inglês Colston, depois de fazer fortuna com o comércio de africanos escravizado, Marinho também passou a fazer investimentos em propriedades, empréstimos de dinheiro a juros a outros comerciantes e até a governos locais – algo comum aos homens ricos da época.
“Mas a partir da década de 50, quando o tráfico acaba, há uma mudança na opinião pública no Brasil, e o tráfico de escravos passa a ser entendido como algo nefasto. Então a partir da década de 1860, esses traficantes, que até então carregavam uma certa aura de heroísmo, passam a ser criticados”, conta Carlos da Silva Jr.
“E durante a década de 1860, Pereira Marinho começa a se defender não só dessas críticas, como também das acusações de que era agiota e emprestava dinheiro a juros exorbitantes. É aí que ele redobra as suas ações de caridade.”
‘Consciência tranquila’
A trajetória de homens como Marinho e Colston também se encontra aí. Em Bristol e em Londres, o comerciante inglês fundou asilos e escolas, além de fazer doações significativas para igrejas e hospitais.
No Brasil, Marinho ajudou vítimas de tragédias e da seca em Estados do Nordeste, apoiou obras de caridade, fez reparos em bairros de Salvador e tornou-se patrono da Santa Casa de Misericórdia, uma das mais tradicionais instituições vindas de Portugal, que também fornecia crédito a comerciantes e conferia status aos poderosos da época.
“O elemento em comum entre todos esses traficantes é que eles eram filantropos. Durante a vida eles se empenhavam em construir a imagem de pessoas caridosas. E conseguiram, porque vemos que, no decorrer dos anos, a participação deles no comércio de humanos foi sendo apagada justamente para ficar a memória das benfeitorias”, diz Ana Lúcia Araújo.
“Vemos isso até nas estátuas, tanto de Marinho quanto de Colston. Ambos são apresentados acompanhados de crianças, ou em postura benevolente. Isso é diferente do que ocorre nos EUA, por exemplo, onde a maioria dos monumentos aos ex-donos de escravos projetam mais poder, são mais viris. Eles aparecem cavalgando, empunhando armas.”
Pereira Marinho morreu em 1887, deixando uma fortuna de 8 mil contos de réis, o equivalente a cerca de R$ 1 bilhão em valores atuais, e 227 imóveis em seu nome somente na capital baiana. Em seu testamento, ele dizia ter “a consciência tranquila de passar para a vida eterna sem nunca haver concorrido para o mal de meu semelhante”.
O Diário da Bahia, um jornal importante da época, escreveu após sua morte, em 1887, que “não sabemos, nem desejamos saber, que em nada isto nos interessa, se o Sr. Conde de Pereira Marinho prejudicou alguém no correr de sua existência”.
Silêncio sobre a escravidão
As revelações sobre a biografia de Pereira Marinho por historiadores têm causado debates nas redes sociais, algo que, eles admitem, era pouco comum até o momento.
“Volta e meia essa discussão das estátuas aparece entre os historiadores, mas não me lembro de discussões que apareçam na comunidade. Mas é importante saber como nós historiadores podemos ajudar nesse processo. Acho que podemos ajudar a fomentar políticas públicas e a questionar essas homenagens”, diz Carlos da Silva Jr.
No caso de Bristol, o debate sobre as homenagens a Edward Colston, que dá nome a escolas, ruas e a uma casa de shows, começou nos anos 1990, quando três historiadoras fizeram um itinerário dos locais importantes para a história do tráfico negreiro na cidade, segundo Ana Lúcia Araújo.
“No caso da Bahia, e do Brasil em geral, o impressionante é que esse debate sobre monumentos homenageando escravistas praticamente não acontece. Já vimos algumas pequenas iniciativas, mas a falácia da democracia racial apagou dos espaços públicos toda a memória das atrocidades cometidas contra a população afrodescendente”, diz a professora.
“O silêncio reina sobre a questão da escravidão. Não há referência aos escravocratas, e mais recentemente, começaram a colocar estátuas homenageando figuras importantes para a população negra em Salvador e no Rio de Janeiro. Mesmo assim não se marca os pelourinhos, não se recupera a memória de outros espaços importantes para a história da escravidão, para que a gente possa saber onde as coisas aconteceram.”
De acordo com Moreno Pacheco, a ideia de mapear os monumentos problemáticos da cidade já se expandiu para incluir também os locais de história da escravidão que não possuem nenhum tipo de marcação, como antigos mercados de pessoas, e homenagens que não são estátuas.
A praça diante da igreja do Nosso Senhor do Bonfim, uma das mais importantes da cidade tanto para católicos quanto para adeptos do candomblé, por causa do sincretismo religioso, também homenageia um dos principais traficante de escravizados do século 18, Teodósio Rodrigues de Farias.
Foi Farias, na verdade, que levou a imagem do Senhor do Bonfim para a cidade, pagando uma promessa que fez durante uma dificuldade na travessia do Atlântico. Ele está enterrado dentro da igreja, onde tampouco há referência ao tráfico de africanos.
O que fazer com os monumentos?
A derrubada da estátua de Colston – que já foi retirada do porto de Bristol e será exibida em um museu – provocou uma onda de questionamento sobre monumentos na Grã-Bretanha e em outros países da Europa, além dos Estados Unidos, na última semana.
Em Londres, a estátua do notório traficante de africanos Robert Milligan foi removida da área externa do Museu das Docas. O prefeito da capital britânica, Sadiq Khan, anunciou que outras homenagens na cidade serão revistas.
Em Oxford, ativistas pedem que a estátua do imperialista Cecil Rhodes, na Universidade de Oxford, seja removida, por ser o que chamam de símbolo do racismo e do colonialismo britânicos. A vice-reitora da universidade, Louise Richardson, disse à BBC News que não se deve “esconder a história” e, sim, “aprender com ela”.
Em Antuérpia, na Bélgica, uma estátua do rei Leopoldo 2º, responsável pelo regime colonial brutal que matou milhões no Congo, foi retirada de uma praça após protestos de ativistas, e deverá ser colocada em um museu.
Nos Estados Unidos, estátuas do navegador Cristóvão Colombo, creditado pelo descobrimento da América no século 15, mas considerado por povos nativos um dos principais responsáveis por seu genocídio, foram decapitadas em ao menos três cidades.
No Brasil, ao menos nas redes sociais, os comentários se voltaram novamente para homenagens aos bandeirantes em São Paulo, como a estátua de Borba Gato e o Monumento às Bandeiras. E, mais recentemente, para a estátua de Pereira Marinho em Salvador.
O debate, em todos os países, opõe os adeptos à revisão das homenagens àqueles que defendem que as estátuas devem ser mantidas intactas, na condição de patrimônio público.
Em seu perfil no Twitter, o escritor Laurentino Gomes, autor de um livro recente sobre a escravidão no Brasil, defende que os monumentos “devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão”.
Os historiadores baianos, no entanto, acreditam que a revisão dos monumentos também deve ser considerada como parte da história – a que estamos escrevendo neste momento.
“A história não é estática, é dinâmica. Então, a eventual retirada desses monumentos também é um fenômeno histórico que vai ser estudado no futuro”, diz Carlos Silva Jr.
“Além disso, não é preciso necessariamente remover todas as estátuas. É possível encontrar soluções diferentes para homenagens e monumentos diferentes. Seja adicionar explicações nas placas, seja colocá-las em museus. Mas é importante falarmos sobre isso. Devemos continuar celebrando essas pessoas como antes?”
Os celebrados e os esquecidos
Para Pacheco, da Ufba, as estátuas também continuam funcionando como objetos de memória coletiva quando são retiradas do lugar de homenagens. Apenas “não do jeito que a pessoa que as patrocinou pretendia”.
“Não é um processo fácil pra uma cidade lidar com o fato de que seu próprio passado está sendo passado em revisão, porque dá às pessoas uma sensação de caos e instabilidade. Mas diante do impasse do que fazer com um monumento, mantê-lo tal como ele é, celebratório de uma figura que causou opressão a outros grupos, é uma ação política tanto quanto retirá-lo”, afirma.
“Eu entendo a preocupação com manter esses monumentos como reflexão sobre o passado. Por isso que saídas como a de levar a estátua para um museu são interessantes. Ali é possível mostrar a história completa daquela figura e refletir sobre sua memória. Se tivéssemos um museu da escravidão na Bahia, por exemplo, que até hoje não existe, a estátua de Pereira Coutinho poderia estar lá, mostrando inclusive que a cidade já celebrou essa pessoa, e um dia escolheu deixar de celebrar.”
Questionada sobre seu posicionamento em relação a esta e outras homenagens a traficantes de escravos em Salvador, a Fundação Gregório de Matos – órgão vinculado à prefeitura que é responsável pela preservação do patrimônio histórico da cidade e lista a estátua de Pereira Marinho entre seus monumentos – afirmou que está atualizando as fichas técnicas de monumentos públicos e instalando placas com os textos atualizados, acessíveis por meio de QR Code.
O órgão disse que não tem planos, no momento, para os locais indicados na reportagem, mas que “vem realizando outras ações, que visam dar visibilidade a memória, além de reconhecimento e valorização do patrimônio afro-brasileiro”, como a preservação e o tombamento de terreiros e áreas remanescentes de antigos quilombos.
“Há muitas formas de lidar com a memória de episódios históricos e a FGM se encontra aberta para avaliar a possibilidade de sugestões”, disse a Fundação à BBC News Brasil, por e-mail.
Em nota à BBC News Brasil, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia afirmou que “os fatos que marcaram a biografia do Conde Pereira Marinho são de conhecimento da instituição e são apresentados a todos que buscam conhecer a história dos que fizeram parte da Santa Casa como eles são: pontos da historicidade de uma época”. Leia a íntegra da nota no fim da reportagem.
De acordo com Carlos da Silva Jr., a Santa Casa costumava enterrar os africanos que chegavam mortos nos navios ou morriam já como propriedade de senhores baianos.
“O enterro era feito num banguê, sepultura barata, de indigente, que era dada a pessoas que não tinham dinheiro para ser enterradas em outros espaços ou que eram escravizadas. Os donos normalmente teriam que pagar por isso. E muitos, para não gastarem, deixavam os escravos na rua ou na porta da Santa Casa, para que eles fizessem o enterro”, conta.
A maior parte dos cativos foram enterrados na região central da cidade. O local não está marcado, nem foi determinado com absoluta certeza pelos historiadores, mas fica em um dos terrenos próximos ao edifício atual da Santa Casa e do Hospital Santa Izabel, onde se encontra a estátua do traficante responsável por trazer muitos dos africanos enterrados pela instituição e imortalizado como seu principal benfeitor.
Leia a íntegra da nota da Santa Casa de Misericórdia da Bahia:
“A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, entidade filantrópica privada, informa que, como instituição secular datada de 1549, esteve inserida nos mais diversos contextos da sociedade baiana ao longo do tempo. Os fatos que marcaram a biografia do Conde Pereira Marinho são de conhecimento da instituição e são apresentados a todos que buscam conhecer a história dos que fizeram parte da Santa Casa como eles são: pontos da historicidade de uma época.
A estátua localizada em frente ao prédio do Hospital Santa Izabel foi apresentada no mesmo dia em que o complexo hospitalar foi fundado, no ano de 1893, como consta na ata de inauguração do prédio. Este documento está disponível para consulta e compõe o acervo do Centro de Memória Jorge Calmon, arquivo histórico que reúne registros do século XVII até os dias atuais, visitado por diversos pesquisadores nacionais e internacionais.
O Conde Pereira Marinho foi responsável pela doação que possibilitou a retomada da construção do Hospital Santa Izabel após 40 anos de obras interrompidas por falta de recursos financeiros. Por essa razão, em 1893, a estátua foi erguida.
O monumento, classificado como patrimônio histórico e obra artística, compõe o conjunto arquitetônico do Hospital Santa Izabel, reconhecido e tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (IPAC).
A Santa Casa de Misericórdia da Bahia reitera que, como instituição com quase 500 anos de história, atua com o compromisso de promover o viés educativo e o caráter reflexivo dos fatos históricos, seja através do Museu da Misericórdia, do Centro de Memória Jorge Calmon, do Circuito Cultural do Cemitério Campo Santo ou dos monumentos que compõem o patrimônio cultural da entidade.”