A história da jornalista branca que viveu um ano como uma mulher negra nos anos 1960
No dia do assassinato de Martin Luther King Jr., líder do movimento por direitos civis nos Estados Unidos, a jornalista Grace Halsell decidiu que se tornaria negra por um ano. Ela queria sentir na pele as dificuldades da população afro-americana, contra as quais o famoso ativista morreu lutando.
Já era noite do fatídico 4 de abril de 1968 quando Halsell soube da morte de Luther King. Ela, que trabalhava em Washington no gabinete do então presidente Lyndon Baines Johnson, havia voltado para o Texas, seu estado natal. Aos 45 anos, havia tempos tinha trocado o Texas por outros lugares. Típica garota americana, de ascendência anglo-saxã, cristã, com pele clara e olhos azuis, encontrou no jornalismo uma maneira de se aventurar pelo mundo: cobriu as guerras da Coreia e do Vietnã, viajou para Hong Kong, Grécia, Turquia, passou uma temporada em Lima, até finalmente se assentar na capital dos EUA em 1965.
“Minha primeira reação foi ‘não há mais esperança. Nós vamos falhar como povo e nação'”, escreveu Halsell no livro Soul Sister, publicado em 1969, no qual descreve sua experiência como mulher negra. “Então gradualmente percebi que cada um de nós deveria tentar alcançar seu sonho de uma América única e me lembro de me fortalecer com o pensamento de que é possível matar uma pessoa, mas não uma ideia.”
Halsell já vinha flertando com a vontade de escurecer a pele desde que ouvira falar, em um jantar na Casa Branca, de John Howard Griffin, autor de Black Like Me, publicado em 1961. Griffin, um jornalista branco também do Texas, viajou como um homem negro por seis semanas em estados do sul americano (Louisiana, Mississippi, Alabama, Arkansas e Geórgia), onde na época vigoravam as leis de segregação de Jim Crow. Após marcar um encontro com o autor e receber a benção dele para o projeto, Halsell começou sua jornada para “se tornar negra”.
Assim como Griffin, o método escolhido foi a medicação para vitiligo, uma doença que causa despigmentação da pele pela falta ou diminuição de melanina em determinadas áreas. A ideia era tomar as pílulas para “potencializar” a exposição ao sol, adquirindo um tom de pele mais escuro, o que finalmente alcançou após uma viagem para Porto Rico. “Para ter certeza, coloquei o meu braço junto ao dele [de um de seus médicos]. Ele é negro, mas eu estava mais escura”, descreveu no livro.
Naquele outono, embarcou para o Harlem, bairro da cidade de Nova York com uma grande comunidade afro-americana. Com um vestido de algodão simples e sapatilhas, um lenço sujo amarrado no cabelo, lentes de contato pretas e US$ 20 no bolso, entrou no ônibus rumo a sua nova vida, porque “parecia bobo voar para um gueto”, escreveu.
Seus medos eram muitos: que descobrissem que era branca e a castigassem por isso, que os homens negros a estuprassem ou roubassem (como acreditava a população branca), e que encontrasse algo parecido com o inferno de Dante. “Abandone toda esperança aquele que por aqui entrar”, pensava enquanto o ônibus se aproximava do bairro.
Transformações como nicho
Mas nada disso aconteceu. Na verdade, o Harlem era tão diferente do que ela havia esperado, que alguns meses depois ela decidiu ir para o Mississippi, no sul do país, trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família branca.
“Sempre que encontrava alguém que não se enquadrava em um padrão que ela tinha em mente, ela os descartava”, explica a professora de estudos afro-americanos Alisha Gaines, da Universidade do Estado da Flórida, autora do livro Black for a Day: Fantasies of Race and Empathy (Preto por um Dia: Fantasias de Raça e Empatia, em tradução livre, publicado em 2017). “Ela aplicava estereótipos e enxergava a negritude somente como sofrimento, dor e vulnerabilidade.”
Foi na casa da família branca, porém, que ela chegou perto de ter uma das experiências que tanto a atemorizavam. Um dia, o homem (branco) da família tentou estuprá-la, e ela conseguiu se livrar quebrando um retrato da família na cabeça dele. Halsell interrompeu a experiência ali, faltando alguns meses para completar o ano a que se havia proposto. E concluiu, no livro, que “o problema é maior que branco ou preto. É a desumanidade do homem com o homem (e mulher) sempre e por toda a parte”.
Onde começa e termina o romantismo de seus relatos, é difícil saber. Halsell, que morreu aos 77 anos de mieloma em setembro de 2000, encontrou nas transformações raciais um “nicho” de carreira. Depois de viver como mulher negra, passou uma temporada entre os índios Navajo, conviveu com imigrantes mexicanos ilegais e viveu com famílias israelitas, palestinas e judaicas em Jerusalém.
“Soul Sister é em muitas formas um livro irritante, mas também muito poderoso dependendo da parte que você lê, e ela cita [o romancista negro James] Baldwin”, disse o historiador Robin Kelley, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles, em uma apresentação na Universidade de Illinois em Chicago.
Kelley está trabalhando em um livro sobre a jornalista que deve ser lançado neste ano. “Baldwin nos ensinou que não precisamos ser como os outros para construir solidariedade. E ela fala algo parecido com isso, sobre encontrar o que havia de diferente e entender como as pessoas sofrem, sair de dentro de nós mesmos. É por isso que ela fez o experimento, não porque queria ser uma mulher negra.”
Solidariedade versus empatia
Embora se abstenha de emitir opinião sobre seu objeto de pesquisa — “eu não preciso gostar do meu sujeito”, explicou na apresentação —, Kelley reconhece que os experimentos de Halsell são delicados. E um dos problemas é a linha tênue entre falar sobre solidariedade e empatia: a primeira leva a uma ação concreta, enquanto a segunda tende a ser considerada o suficiente.
“A minha definição favorita de empatia vem de Leslie Jamison, que diz que a empatia está sempre empoleirada entre presente e invasão. O gesto de empatia de querer entender o outro é bom, mas quando esse entendimento se torna invasão, ou o peso dele é colocado nas pessoas de cor, isso não é empatia”, diz Gaines.
“Outro problema é quando ela é considerada o suficiente, aquela coisa do ‘oh, eu sinto tanto, sinto profundamente, estou chorando, mas enfim…’ Se não te propulsiona para solidariedade, construção de coalizão e ação, qual o sentido?”
Para muita gente, gestos como o de Halsell e Griffin são considerados o ápice da empatia pelo outro — nada poderia demonstrar maior vontade de compreender outra pessoa do que literalmente se colocar no lugar dele. Em seu obituário no New York Times, por exemplo, Halsell é descrita como “a jornalista que buscou a verdade no disfarce”. O livro de Griffin é, até hoje, incluído na lista de leitura nas escolas estadunidenses.
Além deles, há outros casos de pessoas brancas que se fingiram negras. O mais recente e amplamente divulgado na mídia é o de Rachel Dolezal, que em 2015 acendeu um debate ao mentir sobre sua verdadeira raça. Ela, uma mulher branca de Montana, declarou-se negra e chegou a ser presidente da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP) em Spokane, no estado de Washington, até ter sua verdadeira identidade revelada e se declarar “transracial”: embora tenha nascido e sido criada como branca, ela disse em diversas entrevista, sentia-se e se identificava como uma mulher negra. A controvérsia virou o documentário “The Rachel Divide”, lançado em 2018 pela Netflix.
“A luta antirracista não é ter empatia pelo outro, e sim lutar por uma sociedade melhor. Quando um branco faz algo pelo negro, ele precisa se colocar como dever cívico, e não de superioridade moral”, explica a professora Lia Vainer Schucman, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em racismo, branquitude e relações raciais. “E a tentativa de se parecer negro é a pior coisa que alguém pode fazer na luta antirracista, porque mesmo que viva por um dia como negro, ele pode tirar aquela roupa, e ser negro é o acúmulo de dias, é uma continuidade histórica.”
Lugar de escuta
Na visão das especialistas, a empatia pode acabar reforçando os privilégios da população branca. “Por exemplo, o que está acontecendo agora, com George Floyd. Tenho visto muitas pessoas brancas dizendo ‘imagine se ele fosse branco'”, diz Gaines. “O fato de que pessoas brancas têm que fazer esse exercício imaginativo para entender que não está certo ajoelhar no pescoço de alguém por 8 minutos, isso é privilégio em seu auge.”
No fim, o que deveria ser uma demonstração de empatia ou um ato de solidariedade, coloca o branco no centro da questão. “Algumas pessoas brancas não conseguem olhar para uma pessoa negra e enxergar uma pessoa, elas têm que torná-la seus próprios filhos brancos e reimaginar todo o cenário para sentir raiva”, conclui a professora.
E é esse o maior problema de experiências como a de Halsell, Griffin ou casos como o de Dolezal: em vez de ouvir o que pessoas negras ou outras minorias têm a dizer, eles acreditam que precisam falar por elas. “Assim como tem o lugar de fala, tem o lugar de escuta. As pessoas brancas escutam melhor outras pessoas brancas, porque na própria ideia de branquitude, há a ideia de que o branco é neutro e de que o negro fala com viés, o que é um engano, porque não existe um lugar sem viés”, diz a pesquisadora brasileira. “Mas a branquitude pauta a ideia de uma pseudo neutralidade para o branco, então se ele fala, ele está sendo acadêmico, se o negro fala, ele está sendo militante, vitimista. Então é um lugar em que brancos escutam melhor os brancos, e que faz parte da própria lógica racista.”
“A Grace não amplificou as vozes de pessoas negras, ela se enfiou no meio e falou por eles. Ela dizia ‘estou falando por minhas irmãs mais escuras’, como se essas irmãs não tivessem voz”, diz Gaines. “As pessoas não são mudas, elas só precisam de amplificação. Chamo Grace de uma aliada que falhou, porque ela estava no centro de tudo, o tempo todo.”
As obras assinadas por autores negros no período evidenciam isso. No mesmo ano em que Halsell publicou Soul Sister, Maya Angelou lançou o primeiro volume de sua autobiografia, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, editado pela primeira vez no Brasil em 2009. Em 1970, Toni Morrison publicou o aclamado O Olho Mais Azul — quatro livros depois, em 1993, foi reconhecida com um Nobel de Literatura.
O próprio James Baldwin, que teria inspirado Halsell, publicou sua mais importante coletânea de ensaios sobre racismo entre 1955 e 1963. Isso sem falar nos que vieram antes, entre eles Ralph Ellison, que lançou O Homem Invisível em 1952, e Langston Hughes, morto em 1967, que deixou uma prolífica bibliografia de poesias, romances, contos, teatro e dramaturgia. Não faltavam autores negros para falarem do próprio sofrimento e experiências. Faltavam pessoas brancas dispostas a ouvi-los.