‘Festival de Besteira que Assola o País’, as crônicas que ironizavam a ditadura e que ‘estão mais vivas que nunca’
O dia do jornalista carioca Sérgio Porto (1923-1968) começava cedo. Logo pela manhã, ele ia à Praia de Copacabana – bairro da Zona Sul do Rio onde nasceu, viveu e morreu -, levando as três filhas: Ângela, Solange e Gisela. Enquanto as meninas brincavam perto da água, o pai, sentado na areia, lia uma pilha de jornais e revistas. Com uma tesoura, ele recortava as notícias mais controversas do dia.
Foi assim que, em junho de 1966, Porto tomou conhecimento da estreia do espetáculo Electra no Theatro Municipal de São Paulo. Agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão de repressão do regime militar, foram mandados ao local para prender o autor da peça, acusado de subversão. Ao chegarem lá, descobriram que o sujeito, um tal de Sófocles, tinha morrido em 406 a.C.
A tentativa frustrada de prisão do subversivo dramaturgo grego é apenas uma das mais de 250 histórias que Stanislaw Ponte Preta, o ‘alter-ego’ de Sérgio Porto, publicou no extinto jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Entre 1966 e 1968, essa e outras histórias foram reunidas em três volumes de uma antologia intitulada Festival de Besteira que Assola o País. Ou, simplesmente, Febeapá.
“As crônicas do Stanislaw ironizavam a onda conservadora da ditadura militar. Naqueles anos de censura e repressão, ele registrava as situações absurdas e as declarações estapafúrdias das autoridades”, afirma Cláudia Thomé, doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de O olhar crítico do cronismo do Febeapá contra a onda conservadora que levou ao AI-5 em 1968 (2018).
“Mais por fora do que umbigo de vedete”
O festival de despautérios incluía de capitães a prefeitos, de generais a delegados. Em São Paulo (SP), agentes do Dops invadiram a casa da escritora Jurema Finamour e, entre outros objetos considerados suspeitos, apreenderam um aparelho de liquidificador. Em Belo Horizonte (MG), policiais davam voz de prisão a torcedores que insistissem em soltar mais de três palavrões por jogo de futebol.
Aliás, quase tudo era proibido na “Redentora” – apelido “carinhoso” dado por Stanislaw Ponte Preta ao golpe militar de 1964: de serenata, em Ouro Preto (MG), a vodca, em Brasília (DF), de namoro no jardim da praça, em Mariana (MG), a máscara em baile de carnaval, em São Luís (MA). No caso da vodca, a bebida destilada de origem russa foi proibida por um nobre “depufede” – neologismo criado pelo autor para designar “deputado federal” – para “combater o comunismo”.
“O que será que o Stanislaw diria hoje da descoberta de que nossos livros didáticos ‘têm muita coisa escrita’ (em referência a frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro em janeiro), da defesa da abstinência sexual (campanha promovida pela ministra Damares Alves) como política pública ou, então, da afirmação de que o ‘índio está evoluindo e, cada vez mais, é um ser humano igual a nós’ (frase também dita por Bolsonaro)?”, indaga a professora Cláudia Thomé, da UFJF. “Imagine isso tudo aos olhos do Stanislaw Ponte Preta. Penso que nossas prateleiras seriam pequenas para tantos volumes novos do Febeapá”.
Stanislaw não livrava a cara de ninguém. Nem mesmo de seus colegas jornalistas. Volta e meia, citava uma ou outra manchete, como “Todo fumante morre de câncer a não ser que outra doença o mate primeiro”, do Correio do Ceará, de Fortaleza (CE), ou “É necessária muita cautela para revidarmos uma autocrítica”, do Jornal da Cidade, de Gravatá (PE).
“Só levanto o olho da máquina de escrever para botar colírio”
Antes de ganhar a vida como escritor, radialista e teatrólogo, entre outras profissões, Sérgio Marcos Rangel Porto trabalhou 23 anos no Banco do Brasil. Lá, conheceu e tornou-se amigo de outro Sérgio, o Jaguaribe – nome de batismo do cartunista Jaguar. “Sérgio não trabalhava menos que 15 horas por dia. A qualquer hora do dia ou da noite, quando ia visitá-lo em casa, lá estava ele batucando as teclas de sua Remington semiportátil. Numa dessas visitas, ao buscar os originais de um livro, soltou uma de suas muitas pérolas: ‘Só levanto o olho da máquina para botar colírio'”, diverte-se.
Porto ainda batia ponto como bancário quando, em 1947, aos 24 anos, começou a trabalhar como jornalista no Folha do Povo, de Aparício Torelly (1895-1971), o irreverente Barão de Itararé. Não parou mais. Ao longo da carreira, deu expediente em uma infinidade de jornais (Diário Carioca, Tribuna da Imprensa e Última Hora) e revistas (Manchete, Senhor e O Cruzeiro). Por dois anos, chegou a produzir duas crônicas diárias: uma para o Tribuna da Imprensa e outra para o Última Hora.
“À tarde, papai se recolhia em seu ‘escritório’, ou seja, a parte da sala dividida por uma estante de madeira. Ali, ficava até tarde na máquina de escrever, produzindo sua crônica diária para jornal. Aos de casa, era exigido fazer silêncio. Tinha o hábito de ouvir música e, enquanto trabalhava, tinha preferência por jazz. À noite, saía para entregar os textos no jornal, na rádio ou na TV, e íamos com ele, já de pijama no carro”, relembra a historiadora Ângela Porto, uma das três filhas de Sérgio com Dirce Pimentel de Araújo, com quem ele se casou em 1952.
Como escritor, Sérgio Porto lançou dez livros: sete como Stanislaw e três como Sérgio. “Não considero o Stanislaw Ponte Preta um pseudônimo do Sérgio Porto e, sim, um heterônimo”, explica Raquel Solange Pinto, doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e autora de Espaços da crônica: espetáculo e bastidores do Febeapá (2003).
“A personagem é construída com todo um histórico: tinha família, amigos e até data de nascimento: 22 de novembro de 1955”.
A “família” a que Raquel se refere era formada, entre outros membros, pela Tia Zulmira, uma senhora muito culta e inteligente; o Primo Altamirando, um típico mau-caráter, corrupto e autoritário; e Rosamundo das Mercês, um sujeito distraído, mas tão distraído que nasceu de dez meses. No livro Dupla Exposição: Stanislaw Sérgio Ponte Porto Preta (1998), o jornalista Renato Sérgio explica que a criação foi “coletiva”. Participaram dela, além do próprio Porto, o ilustrador do jornal Diário Carioca, Tomás Santa Rosa, e o crítico musical Lúcio Rangel. Cada um deles sugeriu um nome tomando como referência o personagem-título de Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade (1890-1954).
“A irreverência é a arma do humorista”
Ao contrário do dramaturgo grego, Sérgio Porto nunca teve agentes do Dops batendo em sua porta. “Ele não chegou a sofrer censura e perseguição simplesmente porque morreu antes, em 30 de setembro de 1968”, explica o jornalista Luís Pimentel, organizador de A Revista do Lalau (2008). “Foi a partir de 13 de dezembro de 1968, quando o AI-5 foi decretado, que as coisas pioraram”.
Censura ou perseguição, Sérgio Porto pode até não ter sofrido. Mas, tentativa de envenenamento, sim. Em julho de 1968, ele estava apresentando o Show do Crioulo Doido no Teatro Ginástico, no Rio, quando, no camarim, sentiu um gosto amargo no café. Na mesma hora, vieram à lembrança as ameaças que estava recebendo em represália ao espetáculo.
“O show não tem nada demais, a não ser suas irreverências. E ninguém puxa irreverência e atira. É arma de humorista, não machuca tanto quanto cassetete na cabeça da Marília Pera ou pontapés na barriga de moça grávida, como fizeram lá em São Paulo”, declarou em entrevista à revista Manchete, de 10 de agosto de 1968, referindo-se à invasão do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, em 18 de julho de 1968, quando integrantes de um grupo paramilitar chamado Comando de Caça aos Comunistas (CCC) agrediram o elenco da peça Roda Viva.
Já em casa, Porto tomou um comprimido para dormir, mas, em vez de cair no sono, passou 30 horas acordado. Foi levado para um hospital. “Sérgio concedeu várias entrevistas, associando esse possível atentado a outros cometidos contra espetáculos teatrais no Rio e em São Paulo”, relata a historiadora Dislane Zerbinatti Moraes, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de O trem tá atrasado ou já passou: A sátira e as formas do cômico em Stanislaw Ponte Preta (2003). “Esse atentado nunca foi devidamente investigado ou comprovado, mas podemos deduzir que houve, sim, uma reação dos militares à obra do Stanislaw como um todo”.
Sérgio Porto morreu em 1968, aos 45 anos, vítima de um terceiro infarto. Em 2005, o jornalista Clóvis Rossi (1943-2019) declarou, em uma de suas colunas, que “se vivo fosse, Stanislaw teria hoje material para uns 500 festivais por dia, tal o nível de besteiras que caracteriza a política brasileira”.
“O Febeapá continua mais vivo que nunca”, endossa o historiador Hélio Dias da Costa, autor de Stanislaw Ponte Preta e a desconstrução da imagem da ditadura: uma análise da representação satírica do Febeapá (2008). “Stanislaw continua vivo nos espetáculos de ‘stand up comedy’, nos canais interativos de humor e até nos colunistas de jornal, rádio e TV que atuam na desconstrução de mitos. Era um mestre na arte de aliar informação e humor, e oferecer denúncia sob a forma de gracejo”, diz.
Quinze anos depois da declaração de Rossi, o ator e humorista Gregório Duvivier, apontado pelas filhas de Sérgio Porto como ‘herdeiro literário’ do pai, por fazer “uma crítica feroz da política e dos costumes”, assina embaixo. “Sérgio Porto é um gigante. Foi com ele que entendi que humor político é redundância. Millôr Fernandes, que tive a sorte de conhecer, falava dele como de um irmão. Os dois, ao lado do Nelson Rodrigues, formam a santíssima trindade do humor brasileiro. Que sorte a nossa!”.