Há 90 anos, Uruguai e Argentina lutavam pela primeira Copa
Estádio inacabado, nevoeiro no Rio da Prata, 1600 revólveres e um Mundial quase cancelado: a Copa de 1930 e a grande final de Montevidéu entraram para a história do futebol, escreve Gerd Wenzel.
Em 13 de julho de 1930 era dado o pontapé inicial da primeira Copa do Mundo, que por muito pouco quase não se realizou. Quase um ano antes, o crash da Bolsa de Valores de Nova York desencadeou a mais devastadora crise econômica da história dos Estados Unidos, considerando-se a abrangência global e a duração dos seus efeitos.
Pouco antes, em maio de 1929, já não havia muitos países interessados em sediar o torneio porque o país-sede teria que arcar com todos os custos da organização. Enquanto Estados Unidos e a Europa sofriam com a grande depressão e desemprego em massa, o Uruguai dispunha ao final da década de 1920 de considerável estabilidade econômica. O padrão de vida no pequeno país sul-americano era alto, havia ensino público gratuito e leis trabalhistas avançadas para a época.
O governo uruguaio garantiu a todos os participantes que assumiria os custos da competição incluindo despesas de viagem e hospedagem das equipes. Apesar disso, os europeus relutaram em participar por conta da longa viagem transatlântica de navio, de aproximadamente 15 dias. Faltando apenas dois meses para o início do torneio, nenhuma nação europeia havia se inscrito e já se cogitava do seu cancelamento.
No fim das contas, apenas quatro países do Velho Continente confirmaram sua presença: Romênia, França, Bélgica e Iugoslávia. Para aquela primeira Copa do Mundo, qualquer país poderia se inscrever livremente, mas, mesmo assim, apenas 13 nações participaram da competição.
Inglaterra, berço do futebol, e outras potências europeias como Itália, Áustria, Espanha e Tchecoslováquia ficaram de fora, assim como Alemanha, Suíça e Holanda. Não fosse o empenho de Jules Rimet, fundador da Fifa, a primeira Copa do Mundo ficaria reduzida à mais uma edição da Copa América.
Naquela época, o Uruguai era bicampeão olímpico de futebol e considerou a desistência das potências europeias uma afronta, um desrespeito para com a seleção “Celeste”. Cogitou-se, inclusive, de boicotar futuros torneios patrocinados pela Fifa.
Apesar dos contratempos, o entusiasmo do povo uruguaio pela Copa tomava as ruas de Montevidéu. Quando o transatlântico Conte Verde ancorou no porto em 5 de julho de 1930, com as três seleções da Europa (Romênia, França e Bélgica), além do Brasil que subiu a bordo no Rio de Janeiro, a recepção não poderia ter sido mais calorosa. Milhares de torcedores se aglomeravam no cais dando as boas-vindas aos visitantes.
Uma semana depois começaria o torneio, mas não no Estadio Centenario como inicialmente previsto. As fortes chuvas de outono impediram a conclusão das obras a tempo. e as primeiras partidas tiveram que ser realizadas nos estádios do Peñarol (Pocitos) e do Nacional (Gran Parque Central).
A inauguração do monumental Centenário só aconteceria em 18 de julho, com uma bizarra cerimônia de abertura. Todas as delegações desfilaram, inclusive aquelas que já tinham sido eliminadas do torneio, como México e Bolívia. De todo modo, 60 mil espectadores viram uma vitória apertada do Uruguai sobre o Peru por 1 x 0. O jogo representaria o pontapé inicial da caminhada da “Celeste” rumo ao seu terceiro triunfo mundial consecutivo. Foi campeã nas Olimpíadas de 1924 e 1928 e venceria também o título da primeira Copa do Mundo.
Mesmo antes da Copa começar, as bolsas informais de apostas davam como certo que a final seria disputada entre Uruguai e Argentina, considerados por muitos as duas melhores seleções do mundo. Nas Olimpíadas de 1928, em Amsterdã, se enfrentaram na final com vitória uruguaia por 2 x 1 num jogo desempate já que a primeira partida havia terminada empatada em 1 x 1.
A grande final de Montevidéu entrou para a história do futebol. Os dois favoritos disparados à conquista do título e arquirrivais nas Américas frente à frente lutando pela conquista da Taça Jules Rimet.
Foi decretado feriado na capital uruguaia, e os portões do Estádio Centenário foram abertos às 8h da manhã, seis horas antes do jogo começar. Nas crônicas esportivas da época, o público presente era estimado entre 70.000 e 100.000 torcedores.
Milhares de fãs argentinos não chegaram a tempo em Montevidéu por causa de um intenso nevoeiro que pairava sobre o Rio da Prata, impedindo a progressão em segurança dos barcos que tentavam fazer a travessia habitual entre Buenos Aires e a capital uruguaia.
O árbitro da partida, o belga John Langenus, temendo tumultos, pediu aos organizadores da final que todos os torcedores fossem revistados para evitar que entrassem no estádio com armas de fogo. Deu resultado: foram apreendidos aproximadamente 1.600 revólveres.
Coincidência ou não, o primeiro tempo, que foi jogado com bola argentina, terminou 2 x 1 para os visitantes. No segundo tempo, a bola de fabricação uruguaia favoreceu a “Celeste”, que marcou três gols. Seu eterno capitão daquela época de ouro do futebol uruguaio, José Nasazzi, herói da virada e artífice da gloriosa virada, levantou a Taça Jules Rimet pela primeira vez na história do futebol mundial.