Nascida há mais de 500 anos, ideia de renda básica para todos ganha força na pandemia
“Os ladrões são condenados a um suplício cruel e atroz, quando seria preferível assegurar a subsistência de cada um, de maneira a que ninguém se encontrasse diante da necessidade de roubar para ser, em seguida, executado.”
Assim o viajante português Rafael Hitlodeu defende, no início da obra Utopia, escrita pelo filósofo e estadista britânico Thomas More (1478-1535), a distribuição de meios básicos de subsistência à população para impedir que cidadãos precisem roubar para sobreviver.
O diálogo acontece entre o personagem ficcional Hitlodeu e a versão literária do próprio autor, no início do livro publicado em 1516. Nele, através dos relatos do viajante, o escritor descreve a ilha de Utopia, uma sociedade supostamente ideal por meio da qual More satiriza a realidade política e social da Inglaterra de seu tempo.
Foi esse livro que o ex-senador, hoje vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) enviou ao presidente Jair Bolsonaro no início do mês de julho, com a recomendação no Twitter de que “melhor do que distribuir armas será assegurar a Renda Básica de Cidadania para todas as pessoas”.
A obra foi tão influente que chegou a inaugurar um gênero literário, caracterizado pela criação de sociedades ficcionais utópicas ou, seu contrário, distópicas. Entre filósofos e economistas, é também visto como ponto de partida para a ideia da renda básica, que volta a ser discutida em meio à pandemia do coronavírus, responsável por milhões de desempregados em todo o mundo.
O trecho da obra teria inspirado o humanista e amigo de More, Juan Luis Vives, a escrever em 1526 o relatório De Subventione Pauperum (sobre a ajuda aos pobres), no qual propunha à prefeitura de Bruges, na Bélgica, criar uma lei que garantisse a todos os cidadãos um auxílio independente dos lucros individuais do trabalho.
“Mesmo aqueles que dissiparam suas fortunas em um modo de vida dissoluto — por meio de jogos, prostitutas, luxos excessivos, gula e apostas — devem receber alimentação, pois ninguém deveria morrer de fome”, escreve.
Vives, um dos primeiros a defender a renda básica, sugeria que ela se baseasse nas condições de trabalho de cada um, combinando ao auxílio a busca por um emprego ou o aprendizado de uma profissão que permitisse aos necessitados ganhar o próprio pão.
Embora a proposta do autor não tenha sido implantada em Bruges, a discussão persistiu, sendo mais tarde abraçada por figuras como o filósofo Condorcet (1743-1794), o político Thomas Paine (1737-1809) e o filósofo e matemático Bertrand Russell (1872-1970).
A renda básica através dos séculos
Abrigado na casa de uma amiga enquanto fugia da perseguição em plena Revolução Francesa, o Marquês de Condorcet escreveu, em 1793, Ensaio de um Quadro Histórico do Progresso do Espírito Humano, um de seus trabalhos mais famosos.
No último capítulo, o autor defende a distribuição de uma renda fixa para as famílias pobres cujos pais cheguem à velhice sem meios de continuar trabalhando para sustentá-las.
A ideia precederia a seguridade social, “garantindo àqueles que chegam à velhice um seguro produzido por suas economias e aumentado pelas de indivíduos que, ao fazer o mesmo sacrifício, morrem antes do momento de colher seus frutos”.
Amigo de Condorcet e também perseguido durante a Revolução Francesa, o filósofo americano Thomas Paine, um dos fundadores dos Estados Unidos, publicou em 1797 o panfleto Justiça Agrária, ainda em solo francês.
No texto, Paine propunha “um fundo nacional, pago a todas as pessoas ao chegarem aos 22 anos, no valor de 15 libras esterlinas” e “dez libras por ano por toda a vida para todos que passarem dos 50, para permitir que vivam a velhice sem miséria, e deixem o mundo de forma decente”.
Esse valor seria conseguido por meio de uma taxa paga por proprietários de terras sobre sua herança e chegaria a todos, ricos ou pobres, pois, segundo Paine, esta não era caridade, e sim uma restituição pelo uso da terra, que deveria ser coletivo.
Mais de um século depois, em 1918, seria a vez do filósofo Bertrand Russell sugerir, no livro Caminhos da liberdade, um futuro em que “uma pequena renda, suficiente para as necessidades, deve ser garantida para todos, trabalhem ou não, e uma renda maior, determinada pela quantidade de mercadorias produzidas, deve ser dada aos que estão dispostos a se engajar em algum trabalho considerado útil pela comunidade”.
Entre os vários defensores de um modelo de renda básica ao longo do século 20, o economista americano Milton Friedman foi um dos mais proeminentes. Adepto da economia liberal, Friedman sugeria a criação de um imposto de renda negativo, em que aqueles com rendimentos mais baixos receberiam pagamentos do governo em complemento à sua renda.
“Esse sistema garantiria uma renda mínima para todas as pessoas em necessidade, causando o mínimo dano possível ao seu caráter, sua independência ou aos seus incentivos para melhorar suas condições”, escreve no livro Livre para Escolher.
Um grupo de estudiosos e pesquisadores criou em 1986 a Rede Europeia de Renda Básica, hoje de escopo mundial e que se dedica ao estudo e ensino de questões ligadas à renda básica. Entre seus fundadores, o filósofo e economista belga Philippe Van Parijs é atualmente considerado um dos principais defensores da ideia no mundo.
A partir da década de 1990, com o avanço da automatização e a substituição de trabalhadores por robôs, alguns estudiosos passaram a defender a renda básica como forma de compensar a mudança no mercado de trabalho. A ideia também foi recentemente defendida por figuras famosas, como o economista Thomas Piketty e o empreendedor bilionário Elon Musk.
“Hoje em dia, as perspectivas de criação massiva de empregos são acompanhadas de precariedade”, afirma Tatiana Roque, professora do Instituto de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, que reúne estudiosos com o objetivo de educar a população sobre o tema.
“Esse fenômeno da precarização do trabalho, que decorre em grande parte da automação, faz com que se pense em uma forma de proteção social que não dependa do emprego.”
Experiências pelo mundo
“A proposta da renda básica está tendo no mundo experiências formidáveis”, afirma o ex-senador Eduardo Suplicy, que há 30 anos luta pela implantação do sistema no Brasil.
Em entrevista à BBC, ele conta que visitou projetos em países como Quênia, Namíbia e o Estado do Alasca, nos EUA.
“Também há experiências na Finlândia, na província de Ontário, no Canadá, em Barcelona, onde o debate está muito forte, na França, na Índia, na Coreia do Sul”.
O Alasca é um dos lugares onde a renda básica existe há mais tempo e em maior escala — desde 1982, seus mais de 700 mil habitantes recebem um valor anual, que varia de acordo com os rendimentos dos royalties do petróleo. Em 2019, foram US$ 1.609 por pessoa.
“Em 1980, o Alasca era o mais desigual dos 50 Estados norte-americanos. Atualmente, ele e o Utah são os dois Estados mais igualitários dos EUA, e hoje significa suicídio político para qualquer liderança propor o fim desse sistema”, declara Suplicy.
Um outro experimento recente com a renda básica, realizado na Finlândia entre 2017 e 2018, teve resultados ambíguos. Embora os dois mil finlandeses desempregados que receberam um auxílio mensal de 560 euros tenham apresentado queda nos níveis de estresse e insegurança, a pesquisa apontou pouca diferença na perspectiva de emprego em comparação com aqueles que não passaram pela experiência.
No Brasil, o município de Maricá, no Rio, começou a implementar no final de 2019 um projeto de renda básica a nível municipal. Desde dezembro de 2019, 42,5 mil pessoas com renda familiar de até três salários mínimos passaram a receber um benefício mensal. O valor é pago em mumbucas, moeda social criada em 2014 para estimular a economia local.
“Durante a pandemia, a cidade aumentou o benefício de R$ 130 para R$ 300 e implementou medidas como empréstimo para empresas, pagamento de salários a funcionários de empresas pequenas e distribuição de cestas básicas”, conta o economista e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fabio Waltenberg, que coordena um projeto de pesquisa na cidade.
Seu imenso litoral, com extensão de 46 km, garante a Maricá o posto de cidade brasileira que mais recebe recursos com a exploração do petróleo, o que permite a realização do experimento.
“Eles tiveram uma resposta rápida à pandemia porque são um município muito rico e já tinham uma estrutura montada. A prefeitura tomou a decisão de ampliar o benefício e na semana seguinte já estava na conta de todos.”
A ideia é que até 2022 todos os 161 mil habitantes de Maricá, sem distinção, estejam recebendo o benefício.
A pandemia e o caso brasileiro
Aprovada e sancionada desde 2004, a lei da renda básica da cidadania, proposta por Suplicy, nunca chegou a ser implementada no Brasil. Segundo o documento, brasileiros e estrangeiros que vivem no país há pelo menos cinco anos devem ter direito a um benefício suficiente para atender despesas básicas com alimentação, educação e saúde.
Em todo o mundo, apesar das várias experiências, nenhum país chegou a adotar a política a nível nacional.
Para Tatiana Roque, os principais pontos de resistência à ideia estão vinculados à questão do trabalho e à taxação necessária para que ela seja implementada. “Muita gente acha que os direitos sociais devem ser vinculados ao emprego ou isso desestimularia o trabalho. A outra resistência é financeira, embora esteja cada vez mais claro que a saída é tributar os mais ricos, para que haja uma redistribuição de renda.”
Com a pandemia e os auxílios financeiros instituídos em boa parte do mundo, o debate sobre a renda básica se ampliou. No Brasil, a questão vem sendo discutida por economistas e políticos, com propostas que variam desde a continuidade do auxílio emergencial até planos mais amplos de distribuição de renda.
De acordo com Waltenberg, a discussão é atemporal pois lida com preocupações bastante humanas.
“A questão da automação do trabalho não era forte há algumas décadas, mas a renda básica já era discutida. Enquanto uma pessoa de esquerda está preocupada com a igualdade, a de direita se preocupa com a liberdade, e a renda básica pode ser enxergada por esses dois caminhos. Hoje a pandemia mostrou que uma parcela da população é vulnerável economicamente. Então a motivação central para o debate muda, mas no fundo é sempre a mesma: a garantia de uma segurança econômica mínima.”
No caso brasileiro, o pesquisador da FGV Daniel Duque acredita que a discussão ainda é inicial e precisa avançar para que seja definido se a renda básica é ou não o melhor modelo.
“Muitos defendem que não é o caminho, que é preciso criar programas mais focados em crianças, por exemplo. Então ainda devemos levar anos para desenvolver uma política de apoio social de maior orçamento.”
Suplicy, que enxerga o Bolsa Família como um primeiro passo para implantar um programa mais amplo no futuro, vê com otimismo o debate atual e comemora o lançamento de uma frente parlamentar para coordenar a discussão sobre o tema no Congresso.
“Na minha vida, tenho duas montanhas a remover. A primeira é reconquistar diariamente a minha companheira, a segunda é instituir a renda básica de cidadania no Brasil. E eu acredito que vou conseguir remover as duas montanhas.”