Muito além do Copacabana Palace: o papel da família Guinle na saúde brasileira
O sobrenome Guinle é conhecido de muitos brasileiros, especialmente os cariocas, como o de uma das família mais poderosas do país do fim do século 19. Vencedores de uma concessão para modernizar o Porto de Santos em 1888, os Guinle construíram um verdadeiro império: é deles alguns dos empreendimentos mais emblemáticos do país, como o Copacabana Palace, construído em 1923, o Palácio Laranjeiras, atual residência do governador do Rio de Janeiro, o Jóquei Clube Brasileiro, e a Granja Comary.
Um dos membros do clã, Arnaldo Guinle, foi presidente do Fluminense Football Club por mais de uma década, até 1930, tendo promovido a construção do primeiro estádio de futebol para grandes públicos no Brasil, na sede do clube, no bairro carioca das Laranjeiras na zona sul do Rio.
Pelos cálculos do historiador Clóvis Bulcão, autor do livro Os Guinle (editora Intrínseca, 2015), no auge do movimento do Porto de Santos, o patrimônio da família era o equivalente ao que hoje seriam US$ 24 bilhões.
Embora as histórias de luxo, glamour e até decadência — a família acabou perdendo boa parte de sua fortuna — sejam relativamente conhecidas, há uma parte que nem sempre é lembrada: o papel dos Guinle na saúde brasileira.
Mais especificamente, de Guilherme Guinle, o herdeiro dos negócios. Ele financiou a criação do Hospital Gaffrée e Guinle, um dos primeiros hospitais do país projetados com uma arquitetura moderna, em blocos em vez de pavilhões, pensada especialmente para minimizar a disseminação de doenças altamente contagiosas.
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O hospital também serviria para desafogar o atendimento das Santas Casas da Misericórdia, instituições de uma irmandade católica criada em Portugal no século 15.
Por serem as únicas que prestavam assistência gratuita aos mais pobres, sofriam com sobrecarga e falta de leitos.
Criado a pedido do presidente Epitácio Pessoa e inaugurado em 1929, o Hospital Gaffrée e Guinle simbolizou um marco na modernização da saúde pública do país e no combate às doenças venéreas, principalmente a sífilis.
Doença bacteriana sexualmente transmissível, a sífilis provoca lesões na pele, nos ossos, no coração, no cérebro e pode levar à morte, além de ser transmitida a bebês durante a gestação.
“Em Casa Grande e Senzala, o sociólogo Gilberto Freyre disse que o Brasil não foi colonizado por Portugal, e sim sifilizado por Portugal”, diz a historiadora Gisele Sanglard, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz, que em sua tese de doutorado pesquisou a fundo a filantropia de Guilherme Guinle à saúde e à ciência no Rio de Janeiro dos anos 1920 a 1940. “E, com a modernidade, isso foi percebido como um grande empecilho para uma nação forte e sadia”.
Entre amigos
Após coordenar o combate à epidemia de peste bubônica em 1900, o sanitarista Oswaldo Cruz foi nomeado diretor da Diretoria Geral de Saúde Pública pelo presidente Rodrigues Alves, que tinha como principal meta a modernização do Rio de Janeiro.
Como parte do projeto, o combate a três doenças que eram consideradas calamidades sociais: a tuberculose, a sífilis e o câncer. Todas tinham em comum a cidade do Rio de Janeiro, cujas condições de vida — independente, promíscua, suja — eram consideradas a causa das moléstia e, portanto, um mal a ser remediado.
Como diretor, Oswaldo Cruz ficou encarregado de promover uma reforma sanitária, a fim de higienizar a capital e livrar a recém criada república das doenças.
Foi por isso que, quando funcionários adoeceram com malária durante a construção de uma hidrelétrica em Ipatinga para abastecer o Porto de Santos, os sócios Gaffrée e Guinle buscaram ajuda do sanitarista. Oswaldo Cruz enviou seu braço direito e discípulo, Carlos Chagas, e dali surgiu uma amizade que viria a ser muito importante.
Igualmente importante em termos históricos, a amizade de Cândido Gaffrée e Eduardo Palassin Guinle.
Ambos gaúchos — Gaffrée, de Bagé, quase na fronteira com o Uruguai, e Guinle, de Porto Alegre, se conheceram ainda no Rio Grande do Sul e viraram sócios e compadres.
Gaffrée era padrinho de Guilherme Guinle, segundo filho de Eduardo com a pelotense Guilhermina Coutinho Guinle (ao todo, o casal teve 7 filhos, 5 meninos e 2 meninas).
Na década de 1860, Gaffrée se mudou para a capital nacional para abrir a Aux Tuileries, uma loja na rua da Quitanda especializada na venda de tecidos. Uma década depois, o casal Guinle chegou à cidade e, em 1872, a firma Gaffrée & Guinle abriu o capital e começou a ampliar o negócio.
“A história da família Guinle pode ser comparada a do Barão de Mauá, de caixeiros viajantes que conseguiram enriquecer, daqueles casos excepcionais em que um garoto começa trabalhando no comércio como caixeiro, anotando números, e com isso enriquece”, opina Sanglard.
“Na minha concepção, o grande cérebro era o Gaffrée, que desde o século 19 estava metido com a maçonaria, acho que a partir daí, pelas amizades e contatos, eles conseguiram as coisas que conseguiram, embora eu não possa provar isso”, acrescentou.
Grande benemérito da ciência
Com a morte de Eduardo Guinle, em 1912, e de Cândido Gaffrée, em 1920, Guilherme virou a cabeça da sociedade e dos negócios das famílias.
Reza a lenda que, após a morte do padrinho, Guilherme teria encontrado um bilhete escrito por ele à mão pedindo que parte da fortuna fosse doada para a construção de um hospital.
De todo modo, a causa fazia sentido também do ponto de vista dos negócios, especialmente no Porto de Santos. “Eles caem na questão sanitária por causa de um paradigma industrial do século 20, o fordismo, que pregava ter todos os elementos da cadeia de produção sob controle e, naquela época, praticamente não existia Estado, ou os empresários davam, ou não tinha”, opina Bulcão.
“Então esses capitalistas [como os Guinle] ocuparam o espaço onde o Estado não atuava. Não era ‘pilantropia’, esse termo que algumas pessoas hoje usam, o Guilherme realmente ajudou muitas instituições, e não esperava nada em troca”, disse ele.
Para completar, observam os historiadores, o herdeiro dos negócios trazia consigo grandes ideais republicanos e era apaixonado pelo que eram considerados valores brasileiros, patrocinando a educação, arte, pesquisa e cultura local. “Guilherme era um grande nacionalista, o projeto dele era o Brasil”, diz Sanglard.
Coincidência ou não, Carlos Chagas sucedeu Oswaldo Cruz, morto em 1917, na diretoria de saúde pública, com a missão de continuar a reforma sanitária e construir um hospital. A amizade com os Guinle construída desde a época da malária veio a calhar: estava aí o financiamento para a empreitada.
Projetada pelo engenheiro arquiteto A. Porto d’Ave, uma das maiores referências da arquitetura hospitalar da época, a construção foi supervisionada Eduardo Rabello, médico e chefe da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, que assim a descreveu: “não é uma simples fundação de hospital, mas de uma grande instituição, que, uma vez levada a efeito, não terá par no mundo inteiro e colocará a profilaxia das doenças venéreas no Rio de Janeiro numa situação ímpar.”
O projeto de fato foi levado a cabo. Além dos 12 ambulatórios construídos, entre eles uma maternidade e um instituto de proteção e assistência à infância, foi inaugurado também um Instituto de Pesquisa.
Guilherme não parou por aí. Participou da construção do Hospital e Instituto do Câncer da Fundação Oswaldo Cruz, da criação do Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho em São Paulo, financiou as pesquisa de Evandro Chagas, Carlos Chagas Filho e Walter Oswaldo Cruz, e apoiou a criação do instituto de Biofísica e de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em 1982, centenário de seu nascimento, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) o homenageou com o diploma de grande benemérito da ciência brasileira.
“O glamour e o luxo que envolvem o nome da família de certa forma apagaram esse legado, o Copacabana Palace é um nada se comparado a todo o restante”, diz Bulcão.
Guilherme, que nunca se casou nem teve filhos, morreu aos 78 anos, em 1960.
A partir disso, os negócios começaram a entrar em decadência — o Porto de Santos foi prejudicado pela ditadura que teve início em 1964, o Banco Boavista (que se tornou um dos principais empreendimentos da família) faliu em 1999 e o próprio Copacabana Palace quase foi demolido porque, com a proibição de cassinos, deixou de ser lucrativo.
Mas o Hospital Gaffrée e Guinle permanece de pé: hoje, é o hospital universitário da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).