Mayflower: o incômodo legado dos peregrinos que chegaram aos EUA há 400 anos
Em um momento em que os Estados Unidos estão sob pressão pelo peso e contradições de sua história, chega o 400º aniversário do Mayflower, o icônico navio que, em 1620, transportou da Inglaterra aos EUA os peregrinos que formariam a primeira colônia permanente na costa leste americana.
Neste ano, o país se vê obrigado a enfrentar o terrível legado da escravidão e do racismo sistêmico que surgiu desse pecado original.
Estátuas comemorando os heróis da Confederação têm sido derrubadas. Novos marcos surgiram, como as palavras Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) pintadas em letras amarelas fluorescentes a poucos metros da Casa Branca. A recente morte do congressista negro John Lewis nos lembrou das batalhas da era dos direitos civis na década de 1970.
Assim, em meio à luta contra o surto distópico do coronavírus e o surgimento de um novo mundo, também estivemos imersos nos acontecimentos do passado.
O passado é sempre o presente nos Estados Unidos da América.
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Do atual Tea Party (movimento conservador do Partido Republicano) aos manifestantes contra o general confederado mais famoso, Robert E. Lee; da discussão se o time de futebol de Washington deveria se autodenominar Redskins (Peles Vermelhas) até o debate sobre se os fundadores dos Estados Unidos que possuíam escravos ainda deveriam ser homenageados… Nenhum país no mundo vive e contesta sua história com tanta paixão e ferocidade.
As guerras culturais da política partidária contemporânea, as batalhas que fazem esse país parecer uma terra ocupada por tribos em guerra, muitas vezes são guerras realmente históricas.
Assim, onde o Mayflower se encaixa na história americana? Que significado devemos atribuir à chegada desses dissidentes ingleses? Como isso influencia o presente?
Neste 400º aniversário, ele merece tanta comemoração? Afinal, o Mayflower não levou os primeiros colonos ingleses para a costa americana.
Nem mesmo a plantação de Plymouth (em Massachusetts, onde eles se estabeleceram) foi o assentamento inaugural. Jamestown, na Virgínia, fora fundada 13 anos antes. No oeste, os espanhóis já haviam se estabelecido em Santa Fé, capital do que hoje é o Estado do Novo México.
E talvez valha a pena dizer o óbvio desde o início: que os peregrinos não devem ser confundidos com os fundadores, patriotas que lutaram contra os britânicos, os visionários que em 1776 deram início a esta experiência turbulenta de democracia.
George Washington não era um dos passageiros a bordo do Mayflower, como se costumava pensar, embora nove presidentes dos Estados Unidos possam rastrear suas linhagens até aqueles que fizeram a viagem, incluindo os Bush e Franklin Roosevelt.
Também é um erro ver a chegada do Mayflower como a primeira interação entre colonos brancos e nativos americanos. O contato com os europeus durou pelo menos um século, em parte porque os traficantes de escravos tinham os nativos americanos em sua mira. Quando os peregrinos chegaram, alguns membros da tribo Wampanoag sabiam até falar em inglês.
Plymouth Rock (destino final do Mayflower) não é a Filadélfia, o berço da Constituição americana. A viagem transatlântica do Mayflower não possui a mesma glória nacional que a travessia do rio Delaware ou o ataque às praias da Normandia, apesar das afirmações de atrações turísticas locais de que foi a viagem que criou uma nação.
Os americanos não têm em relação a Plymouth Rock o mesmo senso de peregrinação que, por exemplo, Gettysburg (palco da batalha mais trágica da guerra civil americana, em 1863) ou até mesmo Graceland, a mansão que foi de Elvis Presley.
No final do século 19, havia um plano para erguer uma estátua para homenagear os peregrinos que rivalizaria com o Colosso de Rodes e tornaria a Estátua da Liberdade, em Nova York, pequena. Mas essa oitava maravilha do mundo nunca se tornou realidade, e um monumento menor foi construído em seu lugar.
Quanto ao pavilhão que envolve o pedaço de rocha que marca o ponto de desembarque, ele é, para os padrões americanos, um marco modesto: um dossel sustentado por doze colunas que poderia facilmente ser confundido com um coreto.
Pacto de Mayflower
O pacto de Mayflower é um documento histórico significativo, o “berço das nossas liberdades”, como um historiador o colocou de forma evocativa. Assinado pelos Peregrinos e pelos chamados Estranhos, artesãos, mercadores e serventes trazidos com eles para estabelecer uma colônia de sucesso, o documento concordava em aprovar “leis justas e igualitárias para o bem da Colônia”.
Foi a primeira experiência de autogoverno do Novo Mundo. Alguns acadêmicos chegam a vê-lo como uma espécie de Carta Magna americana, um modelo para a Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos.
No entanto, os pesquisadores do Centro Constitucional da Filadélfia ressaltam que ela já havia sido esquecida na época em que os fundadores se encontraram no Independence Hall.
Nem a crença dos peregrinos no que Robert Hughes chamou de “a hierarquia dos virtuosos” se enquadra na poesia mais secular da Declaração de Independência de que todos os homens são criados iguais e dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis.
Além disso, o Pacto de Mayflower começa com uma declaração de lealdade ao Rei Jaime 1 da Inglaterra e 6 da Escócia.
Depois que Washington triunfou em Yorktown contra os britânicos e esta nação incipiente começou a se afirmar no mundo, os primeiros escritores da história americana preferiram começar suas histórias com Cristóvão Colombo, apesar do fato de o explorador italiano nunca ter posto os pés na América do Norte.
Um novo país que acabara de expulsar os britânicos não queria ser definido por seu caráter inglês. Minimizar a importância do Mayflower tornou-se um primeiro ato de descolonização.
Puritanos e peregrinos
Os políticos de hoje se apropriaram de parte da linguagem messiânica da era colonial.
Ronald Reagan gostava de falar sobre “a cidade na colina”, imitando a linguagem usada por John Winthrop durante sua viagem para a Nova Inglaterra. Mas Winthrop era mais puritano do que peregrino e navegou a bordo do Arbella em vez do Mayflower.
É uma diferença sutil, mas importante.
Ao contrário dos peregrinos, os puritanos, que chegaram dez anos depois, não eram separatistas. Eles permaneceram na Igreja da Inglaterra na esperança de banir os costumes católicos lá de dentro.
A colônia da baía de Massachusetts que eles fundaram ao norte, o assentamento que se tornou Boston, foi muito mais influente na formação da América do que a plantação de Plymouth.
Porém, tudo somado, o legado dos peregrinos e puritanos é fundamental.
O legado
A ética do trabalho. O fato dos americanos não tirarem muitas férias anuais. Noções de autossuficiência e atitudes em relação à assistência social governamental. Leis que proíbem o consumo de álcool em bares para jovens de até 21 anos. Certo pudor. A religiosidade. Os americanos continuam esperando que seus presidentes sejam homens de fé. Na verdade, nenhum ocupante da Casa Branca se identificou abertamente como ateu.
Além disso, a motivação do lucro era forte entre os colonos, e com a crença de que a prosperidade era uma recompensa divina por seguir o caminho de Deus. Um precursor do evangelho da prosperidade pregado pelos atuais evangelistas da televisão.
Todas essas características nacionais têm raízes nos puritanos.
O francês Alexis De Tocqueville chegou a escrever em sua obra Democracia na América: “Acho que podemos ver todo o destino da América contido no primeiro puritano que desembarcou nessas praias”.
Os peregrinos, ou mais precisamente, as peregrinas, também deixaram para trás um acervo genético do qual continuam extraindo dezenas de milhões de americanos.
Tantos cidadãos americanos afirmam ter descendentes que chegaram no Mayflower que você seria desculpado se pensasse que o navio de três velas era do tamanho de um porta-aviões.
Por tudo isso, quase a única vez que os peregrinos ocupam um lugar de destaque no imaginário nacional é o Dia de Ação de Graças, aquela festa com peru e abóbora antes do Natal, quando toda a América faz uma pausa cheia de calorias.
Esse feriado nasceu da celebração que marcou a primeira colheita em 1621, quando os colonos se reuniram com os nativos americanos Wampanaog. É embalado como um ato de coexistência pacífica, um banquete agradável que sugere que os índios americanos receberam os peregrinos de braços abertos.
No entanto, a maior parte do que as crianças americanas aprendem sobre o feriado não resiste a um exame minucioso. É mitologia, não história.
Por um lado, existem as imprecisões inconsistentes.
Acredita-se, por exemplo, que o prato principal seja a carne de veado, e não o peru. O moderno menu de peru e torta de abóbora foi inventado por um editor de uma revista do século 19, que leu sobre a primeira festa e pressionou Abraham Lincoln para que o Dia de Ação de Graças fosse um feriado nacional.
Mas a maior ficção é a mais prejudicial.
Em uma recontagem fraudulenta da história, o lugar dos nativos americanos naquela mesa é comumente mal usado e mal compreendido. O Dia de Ação de Graças fomentou a ideia de que os nativos americanos receberam calorosamente os colonos europeus brancos; que ajudaram os recém-chegados ensinando-os a sobreviver no Novo Mundo; que viviam juntos em harmonia; que se reuniram para a festa e depois desapareceram da história.
É uma narrativa de validação colonial; de aceitação artificial; conforto branco. É uma história que aceita ao pé da letra um selo da colônia desenhado pelo Massachusetts Bay Colony que mostrava um índio americano seminu implorando aos ingleses: “Venham e ajudaremos”.
Consequentemente, o Dia de Ação de Graças se tornou um véu americano, uma capa de invisibilidade em torno da qual as verdades incômodas da história foram escondidas por séculos.
Mas na realidade…
Embora houvesse uma sensação de distensão naqueles primeiros anos — principalmente porque os Wampanoag estavam ansiosos para recrutar aliados contra uma tribo rival —, ela logo mudou.
Os nativos americanos se tornaram vítimas dos colonos; presos por grilagem de terras, exploração dos recursos naturais e doenças mortais importadas da Europa, às quais eles não estavam imunes.
Todas essas tensões explodiram em uma série de guerras entre os habitantes indígenas da Nova Inglaterra e os colonos que roubaram suas terras.
Esta, então, é mais uma história de conflito do que colaboração; de derramamento de sangue, não de fraternidade. Os feriados de Ação de Graças às vezes eram comemorados para celebrar as vitórias sobre os nativos americanos.
Hierarquia cultural
Como o historiador David Silverman mostrou em seu livro This Land is Their Land (“Esta Terra é a Terra Deles”, em tradução livre), a ideia de que os peregrinos foram os pais da América foi adotada pelos habitantes da Nova Inglaterra no final do século 18, preocupados que sua influência cultural não fosse tão forte quanto deveria ser quando a primeira república tomou forma.
Desde então, a primazia dos peregrinos e os mitos do Dia de Ação de Graças foram reutilizados sempre que os protestantes brancos sentiam que sua hegemonia estava ameaçada.
Isso foi especialmente verdadeiro no século 19, quando ondas de imigrantes europeus católicos e judeus desafiaram o domínio do protestantismo branco.
Os peregrinos foram cooptados para afirmar o domínio da cultura WASP: termo em inglês para branco, anglo-saxão e protestante. Eles foram usados para estabelecer uma hierarquia cultural.
Esse domínio persiste até hoje.
Um país colonizado por protestantes anglo-saxões continua a favorecer os protestantes anglo-saxões. Foi só em 1960 que os Estados Unidos elegeram um presidente católico, John Fitzgerald Kennedy, um político de ascendência irlandesa. Joe Biden pretende se tornar o segundo.
Há também uma dimensão de classe na cultura WASP, o que significa que os peregrinos dificilmente são considerados heróis populistas. A cultura WASP tem sido tradicionalmente uma preservação da classe alta, reforçada por meio de casamento, herança, patrocínio e escolas e universidades de elite.
Os peregrinos foram os criadores de um sistema de classes americano que fez Donald Trump, com todas as suas riquezas, se sentir um estranho.
Embora a mãe dele tenha nascido na Escócia, Donald Trump é descendente de alemães e cresceu no bairro do Queens, em Nova York. Isso o tornava “um cara pouco sofisticado” para os sangues azuis do WASP de Manhattan, que zombavam dele como um magnata do mercado imobiliário novo-rico e um candidato presidencial vulgar.
Por sua vez, os descendentes daqueles que desembarcaram em Plymouth Rock — a elite original da Costa Leste — são frequentemente alvo das investidas antielitistas de Donald Trump.
Domínio
Os peregrinos também afirmaram o domínio da raça branca, muitas vezes com força assassina.
Durante os primeiros anos, em um ciclo de matanças retaliatórias, houve massacres de ambos os lados. Mas a selvageria dos colonos brancos foi grotesca. Eles tentaram aterrorizar seus inimigos atacando não-combatentes, colocando fogo em cabanas e matando, com espada, aqueles que escapavam.
Logo eles envolveram aquela matança na linguagem da redenção, de como haviam feito a obra do Senhor ao enviar aquelas almas perversas para o inferno.
Os habitantes originais da terra passaram a ser tratados como invasores e saqueadores.
Quando em 1675 um grupo de nativos americanos se uniu para lutar contra os colonos, o cadáver de seu líder Metacom, a quem os ingleses apelidaram de ‘Rei Phillip’, foi tratado como um troféu. A cabeça foi exibida em um pique na plantação de Plymouth.
Escravidão e branqueamento
Assim como sua brutalidade tem sido tradicionalmente minimizada, a aceitação da escravidão pelos puritanos foi ignorada.
Os colonos não apenas importaram escravos africanos, mas também exportaram nativos americanos. Na década de 1660, metade dos navios do porto de Boston estava envolvida no comércio de escravos. Pelo menos centenas de nativos americanos foram escravizados.
A divisão racial tem sido a configuração padrão para a vida americana, e aqueles primeiros colonos brancos traçaram a linha de cores com o sangue nativo americano.
No entanto, até hoje, os peregrinos continuam a ser retratados principalmente como vítimas de perseguição, os primeiros solicitantes de asilo que fugiram da intolerância religiosa de sua terra natal.
Recontar a viagem de Mayflower como uma história da origem do país também promoveu e sustentou a crença de que a história americana começa na época da colonização europeia.
Isso não é tanto uma lavagem da história dos nativos americanos, mas sim sua completa eliminação. É um enquadramento da história baseado na crença contemporânea de que os colonos chegaram a terrenos baldios, e não a territórios ocupados havia milhares de anos. Esta crônica dos conquistadores ignora deliberadamente pelo menos 12 mil anos de história dos índios americanos, uma narrativa complicada e frequentemente sangrenta.
Os perdedores
Quando você começa a repensar a história a partir da perspectiva dos vencidos, algumas possibilidades historiográficas inovadoras se abrem.
Em sua obra americana de sucesso, “These Truths” (Estas Verdades), a estudiosa de Harvard Jill Lepore argumenta, por exemplo, que a revolução nos Estados Unidos não começou com os colonos ingleses que eventualmente se rebelaram contra o rei, mas com as pessoas que eles governaram. Nessa reformulação, os patriotas americanos que enfrentaram os britânicos são considerados os herdeiros revolucionários dos nativos americanos que enfrentaram os ingleses.
Ao menos durante as comemorações deste ano, a história do povo Wampanoag será reconhecida.
Não foi assim há 50 anos, no 350º aniversário. Embora um líder nativo americano tenha sido convidado para falar em um jantar em Plymouth, Massachusetts, ele não teve permissão para fazer o discurso que preparou. Nele, descreveu a chegada do Mayflower como o começo do fim para a cidade dele, uma dura verdade considerada desagradável demais para os anciãos da cidade que participavam de um banquete.
Dar mais destaque aos Wampanoag nessas comemorações será visto como um corretivo que já deveria ter sido adotado há muito tempo, transformando a celebração em uma busca de entendimento.
Mas não se engane: as guerras da história americana continuarão a ser travadas e os peregrinos continuarão presentes nessa batalha.