Ruth Guimarães: o centenário da escritora pioneira que colocou a identidade negra no centro de sua obra
Edison Veiga
Literatura caipira e negra. Para a escritora Ruth Guimarães (1920-2014), a definição era orgulhosamente assumida.
Em 2007, em depoimento concedido ao Museu Afro Brasil, ela afirmou que, “assim como somos um povo mestiço, todo cheio de misturas de todo jeito, a nossa literatura também é toda feita de pedaços de textos, de arrumações aqui e ali”.
“Não há nada que nos torne inteiriços, inteiros”, definiu.
“Minha literatura é isso também. Eu conto a história da roça, de gente da roça, do caipira. Eu também sou caipira, modéstia à parte. Eu não me importei muito se havia uma tendência, ou se havia uma inclinação para contar a história do preto; como eu também sou misturada, o meu livro é misturado. Como eu sou brasileira, nesse sentido de brasileiro todo um pouco para lá, um pouco para cá, o meu livro também é assim, um pouco para lá, um pouco para cá.”
E prosseguiu enfatizando que era preciso “saber da raiz negra de onde viemos”.
Reconhecida como a primeira escritora brasileira mulher negra a ter projeção nacional, deixou claro que o legado é para ser usufruído pelas geração que a sucederam e sucedem. “A história negra está por fazer, a literatura negra está por fazer, a poesia está por fazer”, disse.
No ano em que é celebrado o centenário de seu nascimento, a obra de Guimarães — que publicou 51 livros entre romances, contos, crônicas, traduções e ensaios folclóricos — é resgatada.
Nesta quinta (19/11), a FlinkSampa: Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra lançou uma edição comemorativa aos 70 anos do livro Os Filhos do Medo.
A escritora é a grande homenageada na edição deste ano do evento — que será on-line por conta da pandemia. Em 2020 foram publicados ainda dois livros inéditos da autora, Contos Negros e Contos Índios. E outros dois devem chegar às livrarias no ano que vem — Contos da Terra e do Céu e Contos de Encantamento.
Pioneirismo
Mas a grande obra da lavra de Guimarães, o livro que a catapultou para o reconhecimento nacional, foi publicado quando ela era uma jovem de 26 anos. Trata-se de Água Funda, lançado em 1946 e cujo enredo se passa em uma fazenda do sul de Minas Gerais entre a abolição da escravatura e o início do século 20.
“A trajetória dela é um exemplo a ser seguido no sentido da segurança e autoconfiança no que escrevia e, tendo essa certeza, mostrou sua escrita para quem estava receptivo a novas descobertas na literatura, o quê se pretendia na época: uma escrita focada na identidade nacional, no caso, a identidade negra”, avalia à BBC News Brasil a escritora Ana dos Santos, pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Na minha pesquisa sobre escritoras negras observo que a ousadia, que é uma qualidade que nós mulheres negras temos que ter é o primeiro passo na direção dos nossos sonhos e projetos literários.”
Água Funda rendeu à autora a admiração de literatos como o crítico Antonio Candido (1918-2017) e os escritores Guimarães Rosa (1908-1967) e Jorge Amado (1912-2001).
Nascida em Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo, ela apaixonou-se pela literatura ainda na infância. Aos 10 anos já publicava poemas em jornais de sua cidade.
Formou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e passou a atuar como jornalista — publicou em grandes jornais como O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Também foi tradutora. E, em sua cidade natal, trabalhou como professora.
Casou-se com um primo, com quem teve nove filhos — oito deles com problemas de saúde, sendo que três portadores de síndrome de Alport, uma doença genética degenerativa. Para o curador da FlinkSampa, o escritor e biógrafo Tom Farias, a questão familiar pesou sobre a própria carreira de Guimarães.
“Ela escreveu no seu confinamento em Cachoeira Paulista, onde nasceu e morreu, teve nove filhos, ficou viúva… O fato de ela ser uma mulher e ter se dedicado muito mais à família do que à vida literária, acreditamos, fez com que ela não fosse tão valorizada pela academia. Já passou da hora de homenageá-la. Não podíamos deixar esse centenário sem nenhuma manifestação de reconhecimento”, diz ele à BBC News Brasil.
Farias explica que Guimarães é um exemplo daquilo que a FlinkSampa luta para recuperar: uma grande escritora brasileira “que foi, de alguma maneira invisibilizada pela academia e pelo mundo literário”
“O encantamento de Ruth Guimarães está em ela ter ocupado espaços restritos para pessoas negras da época, como estudar em universidade pública e aprender um novo idioma, a ponto de traduzir obras clássicas e, ainda assim, ter mantido um compromisso com a cultura caipira e popular em seus contos e no seu romance Água Funda”, diz à BBC News Brasil a tradutora e militante feminista Natália Chaves, recém-eleita covereadora em mandato coletivo pelo PSOL.
“Avalio que a junção desses fatores a levou a um patamar ao qual poucas pessoas negras podem chegar, em um país onde o analfabetismo é três vezes maior para pessoas negras do que brancas.”
Também militante feminista, a jornalista Viviane Duarte, fundadora do projeto Plano de Menina, acredita que o resgate da vida e da obra da escritora servem como estímulos para as novas gerações.
“Ela é uma inspiração para todas nós, mulheres negras. Foi uma mulher que não se intimidou com seu tempo. Ocupou espaços importantes e construiu espaços importantes”, comenta.
“Não estamos falando de meritocracia, mas sim de comprometimento com a paixão, com o talento. Em buscar fazer o talento acontecer independentemente das circunstâncias.”
Questão de gênero, questão de pele
Para especialistas, tanto a cor quanto o gênero podem ter pesado no esquecimento de Guimarães.
“O fato de não ser tão amplamente conhecida talvez se deva ao fato do recorte gênero e raça, ainda mais se tratando do universo de São Paulo e Minas Gerais. Quantos anos Conceição Evaristo demorou a ser editada? E quanto tempo demorou para Carolina Maria de Jesus ter a visibilidade e reconhecimento merecidos? E Maria Firmina dos Reis? Maria Firmina foi a primeira romancista negra brasileira”, pontua a mestra em literatura Nélida Capela, curadora de acervo da Blooks Livraria e fundadora da plataforma NC Curadorias.
“As grandes editoras do mercados só investem parcialmente agora em autoras negras. Mas esse trabalho de divulgação da escritoras brasileiras vem sendo realizado há algum tempo pelas editoras independentes e as novas editoras, a exemplo da Pallas, que edita Conceição Evaristo, e da editora Malê, que edita inclusive jovens escritoras e intelectuais negras”, acrescenta ela.
Diversos outros exemplos mostram que o exemplo de Guimarães é seguido. Mas não sem dificuldades.
“Um dos apagamentos do racismo é o da nossa cultura, então a dedicação de Ruth para resgatar o folclore brasileiro pode servir de grande exemplo pra autoras contemporâneas”, lembra a tradutora Chaves.
“Jarid Arraes é um exemplo de escritora negra que traz com força a cultura popular, principalmente a cultura do cordel. Aline Valek também tem um trabalho interessante; o último livro dela, Cidades Afundam em dias Normais, se situa no Cerrado, por exemplo, um bioma que é bem esquecido no Brasil.”
Ana dos Santos cita pesquisa realizada pela Universidade de Brasília, publicada em 2018, que mostra que há mais de quatro décadas o perfil padrão do escritor brasileiro é o “homem branco, heterossexual, morador do sudeste do Brasil e pertencente às classes média e alta”. “O preconceito que ainda existe no mercado editorial brasileiro é um reflexo da sociedade racista, machista e homofóbica”, pontua.
“Nossa intelectualidade está correndo atrás da literatura negro-brasileira, correndo atrás de 300 anos de escravidão que contribuíram para o apagamento, silenciamento e esquecimento de autoras negras como Ruth Guimarães”, diz ela.
Tom Farias frisa que é preciso divulgar o valor da escritora independentemente de sua negritude. “Não gosto dessa classificação em ‘caixinhas'”, explica. “Quem coloca termos é uma classe que quer continuar dominando o mundo da indústria da literatura, que envolve livros, festas literárias. Isso é confinamento. Não acredito que haja uma linguagem própria dos autores e autoras negros.”
Autor do blog Arte Fora dos Centros e pesquisador de literatura marginalizada na Universidade Livre de Berlim, o jornalista Fred Di Giácomo concorda — e acredita que seja preciso revisar o cânone daqueles livros que são considerados os mais importantes do Brasil. “Existem argumentos técnicos, mas como se forma o cânone? Quem decide quem são os melhores livros geralmente são homens brancos ricos que se identificam e leem homens brancos ricos”, comenta ele, à BBC News Brasil. “Estamos em um momento mundial de questionamento do cânone e de redescoberta de vários autores e autoras, negros, indígenas…”
“Ela está no patamar de uma grande escritora e vai sendo, agora, aos poucos redescoberta. É preciso também que ela esteja nas universidades, na academia. Que esteja nas escolas, nas listas dos vestibulares, nos livros didáticos”, pontua Farias.
“Ruth Guimarães, como escritora, não está abaixo de nenhum outro ou nenhuma outra do período dela. Ela precisa ser olhada com esse respeito.”
Com as comemorações do centenário, há oportunidade para refletir. Prestes a ocupar um espaço no legislativo paulistano, Natália Chaves afirma ser “importante pensarmos em políticas públicas que possibilitem a mais mulheres explorarem seu potencial assim como Ruth pôde fazer”.
“É preciso combater o racismo estrutural, o analfabetismo e a própria ideia de que lugar de mulher é em tarefas domésticas, principalmente quando essa mulher é negra”, ressalta.
Nélida Capela conta que em seu trabalho de curadoria procura sempre pensar na representatividade.
“Quando digo representatividade, digo literatura e obras de conhecimento de autoras negras, autoras de povos originários e também livros sobre a questão de gênero”, afirma. Para ela, a responsabilidade, no entanto, precisa ser compartilhada: por quem edita, por quem organiza os livros na livrar, pelos jornalistas que publicam resenhas e divulgam livros e, claro, pelos leitores que escolhem o que consumir.
A escritora Ruth Guimarães sempre acreditou na persistência, apesar das dificuldades enfrentadas, do povo negro.
No mesmo depoimento de 2007 cujo trecho está no início desta reportagem, ela disse que “muita gente já fez esses estudos e até descobriram uma coisa muito bonita, muito gratificante para a gente: que todas aquelas qualidades do povo brasileiro, aquele povo igual, alegre, que aceita, que aguenta os trancos, que passa por tudo quanto é ruindade neste mundo, essa qualidade boa, excelente, que faz de nós um povo único no mundo, nós devemos aos negros”.
“Os negros é que são assim, aguentaram e continuam aguentando; não sei se são muito pacientes. Se for medir por mim, porque o homem é a medida do homem, se for medir por mim, essa qualidade de paciência nós não temos. Eu não tenho paciência. Não sou uma criatura paciente, mas sou uma criatura alegre, graças aos meus ascendentes negros. E agora, depois de muito velha, estou fazendo pesquisa e procurando o rastro do negro na nossa literatura de povo e na nossa alegria de contar histórias”, afirmou a escritora.