O achado que pode ser a última relíquia de Tomás Becket, santo assassinado há 850 anos
Stephen Mulvey
Sobre Tomás Becket, o arcebispo espancado até a morte na Catedral de Canterbury, na Inglaterra, há exatamente 850 anos, mais se escreveu do que sobre qualquer outro inglês da Idade Média que não fosse membro da realeza.
No entanto, parece que ainda é possível descobrir coisas novas sobre sua vida extraordinária.
Antes do amanhecer de 14 de outubro de 1164, Tomás Becket encontrou um portão aberto nas paredes de Northampton e saiu a cavalo com um criado e dois guias, o som de cascos sendo abafado pelo vento forte e pela chuva torrencial.
O arcebispo estava fugindo depois de passar uma semana no banco dos réus em um julgamento no Castelo de Northampton.
A acusação inicial era de um crime menor, mas o rei Henrique 2º havia acrescentado novas acusações cada vez mais sérias, e parecia provável que um veredicto de traição seria dado.
Becket rumou para o norte, alcançando a cidade de Lincoln em dois dias; em seguida, vestindo o manto áspero de lã escura de uma ordem religiosa local, ele adotou o nome Christian e dirigiu-se para o sul, para a área mais pantanosa.
Seus companheiros conseguiram conduzi-lo por pântanos e riachos até eremitérios e priorados isolados, onde ele poderia planejar seus próximos passos.
Se ele tivesse sido pego, diz a professora Anne Duggan, a principal especialista no mundo em Becket, o rei poderia ter escolhido qualquer punição que quisesse: castração, cegueira e até morte.
Mas Becket não foi pego.
Finalmente, ele chegou a Kent e de lá foi levado para a França no início de novembro.
No exílio, ele precisaria de dinheiro. Antes de deixar Northampton, Becket tinha enviado secretamente seu confidente mais próximo, o estudioso Herbert de Bosham, para Canterbury, para reunir tudo que pudesse trazer para a Abadia de St. Bertin, nas proximidades de Calais.
Mas também havia outra coisa que ele queria que Herbert encontrasse: um certo “livrinho”.
“A implicação é que este era um livro muito importante para Becket e que Herbert sabia ao que ele estava se referindo”, diz Anne Duggan.
“É muito interessante que ele não tenha dito claramente o que era, então há um mistério aí. Não era um livro de lei, não era um evangelho, era um livrinho.”
O livrinho
No verão de 2014, Christopher de Hamel, então bibliotecário em uma das faculdades da Universidade de Cambridge, convidou um historiador medieval, Eyal Poleg, para almoçar.
Durante o café, De Hamel comentou que sempre achou estranho que, enquanto qualquer fragmento da roupa de um santo fosse considerado na Idade Média uma relíquia sagrada, ligada ao Espírito Santo e capaz de fazer milagres, os livros de santos quase nunca tiveram esse status.
Poleg respondeu que sabia de uma exceção e procurou em seu laptop uma lista feita em 1321 de tesouros mantidos na Catedral de Canterbury.
Em latim, ele leu em voz alta: “Objeto, encadernado com o saltério (livro de salmos) de São Tomás, encadernado em prata dourada, decorado com joias …”
Ao ouvir essas palavras, De Hamel diz que teve “um daqueles arrepios repentinos que fazem nossas vidas como historiadores valerem a pena”.
Ele já tinha lido sobre algo semelhante em um dos manuscritos da Biblioteca Parker, uma coleção legada ao Corpus Christi College Cambridge por um ex-arcebispo de Canterbury, Matthew Parker, em 1574.
O inventário mencionado por Poleg certamente se referia ao mesmo livro.
A nota
Os dois homens deixaram o café e correram para a biblioteca, onde De Hamel puxou um livro de salmos de mil anos de idade do cofre e mostrou a Poleg uma nota adicionada a uma das páginas finais cerca de 500 anos atrás, na época de Matthew Parker.
“Este saltério, em mesas de prata dourada e decorado com joias, já foi o de N, arcebispo de Canterbury [e] acabou caindo nas mãos de Tomás Becket, falecido arcebispo de Canterbury, conforme registrado na antiga inscrição.”
Até aquele ponto, a nota era vista com suspeita — “quase certamente uma ficção completa” segundo uma avaliação recente. Mas de repente se descobriu que ela era verossímil.
Os monges de Canterbury em 1321 certamente pareciam acreditar nisso.
Uma razão para o ceticismo foi a ausência do saltério em um inventário de manuscritos de catedrais do início do século 14, uma lista que inclui cerca de 75 volumes que pertenceram a Becket, junto com os números das prateleiras onde eram mantidos em um lugar longe dos claustros.
Mas isso agora tinha uma explicação: o saltério não fora guardado com os outros manuscritos, mas em um repositório de objetos de valor ou no santuário de São Tomás, que foi o que Becket se tornou três anos após seu assassinato, em 29 de dezembro de 1170.
Emoção
De Hamel e Poleg olharam para o manuscrito de 50 x 15 centímetros “tremendo de emoção”, escreve De Hamel em um pequeno livro publicado no início deste ano intitulado O Livro na Catedral: a Última Relíquia de Tomás Becket.
Não tinha a encadernação anglo-saxã com joias de prata dourada; isso teria sido arrancado e derretido durante a Reforma, mas havia o livro, pensou De Hamel, que certamente era uma relíquia sagrada perdida da Idade Média.
De Hamel era familiarizado com os manuscritos de Becket desde os anos 1970, e conhecia um curioso hábito dos monges de Canterbury daquela época: eles pegavam a descrição de cada livro do inventário e copiavam essa descrição na primeira ou na última página do livro em si.
A capa do saltério de De Hamel e Poleg já estava perdida havia anos.
Mas a nota encontrada parecia ser uma versão de uma nota anterior, a julgar pela frase final: “conforme registrado na antiga inscrição”.
Talvez no século 16 já fosse difícil de ler, ou a página estava solta?
Isso explicaria por que alguém o copiou em uma página diferente.
E já que Henrique 8º havia ordenado a remoção do culto a São Tomás de Canterbury não muito antes, seria compreensível que a referência a “São Tomás” tivesse sido mudada para “Tomás Becket, falecido arcebispo de Canterbury”.
Embora a correspondência entre a nota no inventário de relíquias da catedral de 1321 e a nota no saltério fosse emocionante, a formulação da nota também continha um quebra-cabeça.
O livro havia sido “outrora de N, arcebispo de Canterbury [e] eventualmente caiu nas mãos de Tomás Becket”, diz a nota.
Quem era N?
Existe apenas um arcebispo anterior cujo nome começa com N — Nothelm, do início do século 8. E é impossível, diz De Hamel, que esse manuscrito seja datado desse período. A julgar por seu estilo, acredita-se que ele tenha sido escrito em Canterbury por volta do ano 1000.
Mas ocorreu a De Hamel que talvez a pessoa que escreveu a nota anos depois tenha confundido o Æ medieval, uma combinação de A e E, com um N. Às vezes, eles podem ser semelhantes, observa ele.
Os dois primeiros arcebispos do século 11 têm nomes que começam com Æ — Aelfric e Aelfheah (comumente conhecido como Santo Alfa) — e De Hamel afirma que o saltério pertenceu primeiro a um e depois ao outro.
Existem pistas para essa conclusão, diz ele, incluindo dois acréscimos curiosos ao texto.
Um deles é uma ladainha (uma espécie de prece) de santos acrescentada ao final do livro, na mesma época em que o restante do livro foi feito, em que os nomes de dois santos menores, Vicente e Eustácio, aparecem em letras maiúsculas.
Isso era tido por estudiosos como uma conexão entre o saltério e Abingdon Abbey, no rio Tâmisa ao sul de Oxford, que continha importantes relíquias de ambos os santos.
De Hamel agora aponta que isso acontece porque o livro teria pertencido a Aelfric, que era um monge em Abingdon, antes de se tornar arcebispo em 995.
O segundo acréscimo consiste em textos religiosos para serem lidos em memória de Alphege, arcebispo de 1006 a 1012, quando foi espancado até a morte pelos dinamarqueses em Greenwich.
A explicação mais simples para isso, De Hamel argumenta, é que o saltério pertencia a Alphege e foi associado ao seu culto depois de ser canonizado em 1078.
Alphege é registrado para recitar os salmos com alegria durante o cativeiro dinamarquês. Será, especula De Hamel, que ele estava segurando este livro quando foi martirizado?
Isso certamente tornaria o livro uma relíquia aos olhos da Igreja medieval, diz ele, justificando a encadernação em prata dourada e joias.
Portanto existem dois candidatos para o N mencionados na inscrição: Aelfric e Alphege.
Alphege parece ter sido particularmente importante para Becket, que “de certa forma adotou Alphege como um santo padroeiro”, diz De Hamel.
O sermão de Becket na Catedral de Canterbury no dia de Natal de 1170, poucos dias antes de ser assassinado, foi sobre a morte de Santo Alphege.
E de acordo com dois relatos de contemporâneos da morte do arcebispo, um de uma testemunha ocular, suas últimas palavras foram para confiar sua alma aos cuidados de Santo Alphege.
Bem mais íntimo
Quando De Hamel contou essa história em uma conferência da Society of the Antiquaries, em Londres, em 2017, Anne Duggan estava na plateia e fez uma pergunta sobre o “livrinho” que tanto a intrigou.
Em sua biografia de Becket no século 12, Herbert de Bosham diz que o arcebispo havia dito a ele “para cuidar de um livro particular seu, temendo que, quando outros descobrissem sobre sua fuga, eles o destruíssem no saque”.
Ele acrescenta que enquanto Becket era “indiferente às posses” — na verdade, ele era conhecido por sua extravagância — “havia pelo menos um pequeno livro que importava para ele”.
Esse “livrinho” poderia ser o saltério, observou Duggan.
No vídeo da conferência, De Hamel pode ser visto ouvindo com olhos arregalados e boca aberta.
“Sinto um arrepio na espinha”, diz ele. Becket provavelmente já estava pensando sobre o martírio, acrescenta, e “a associação com o livro desse mártir deve ter sido muito significativa para ele”.
Em seu livro, ele comenta: “Pode ter sido seu bem mais íntimo.”
Será verdade?
Baseando-se em seu profundo conhecimento de manuscritos medievais, a história contada por De Hamel é emocionante, extrapolada a partir de pequenas pistas. Mas é verdadeira?
“Toda a narrativa construída aqui [no livro] é como uma história de detetive baseada em várias evidências, convergindo para a mesma conclusão mais simples. São vocês, senhores do júri, que devem decidir se estão convencidos”, diz ele à BBC.
Ele está pessoalmente certo de que este é o saltério do Inventário de Bens de Valores de 1321 de Canterbury e que os monges o aceitaram como sendo de Becket.
A ideia de que o livro pertencia a Aelfric e Alphege é um palpite, mas “extremamente provável”, acrescenta, e é ainda mais provável que Becket pensasse que era de Alphege.
“É uma hipótese fascinante” é o veredicto da sucessora de De Hamel como bibliotecária de Parker no Corpus Christi College, Philippa Hoskin.
Mas Eyal Poleg, que largou o café no meio e foi correndo com De Hamel à biblioteca de Parker para observar com entusiasmo o saltério, aconselha cautela.
“Acho que a única coisa que podemos dizer com certeza é que no século 14 o livro era considerado o saltério de Becket em Canterbury. Acho que é onde começamos e é onde paramos.”
Não há nenhuma evidência de que era realmente o saltério de Becket, ele diz, e ele não está convencido de que pertencia a Aelfric ou Alphege.
Além disso, ele não acredita que foi necessariamente considerada uma relíquia de São Tomás de Canterbury.
“Quando você é medievalista, você está um pouco tateando no escuro e procurando algo em que se agarrar”, diz Lloyd de Beer, curador da próxima exposição do Museu Britânico sobre Becket, adiada pela pandemia até a primavera.
“E esse trabalho de Christopher, porque ele escreve tão lindamente e é uma história tão atraente, parece nos levar para muito perto dessa história.”
De Beer espera que mais esforços sejam feitos agora para datar com precisão o manuscrito.
“Ainda há muito trabalho a ser feito, mas essa é a grande coisa sobre Christopher. Ele está levantando todas essas grandes ideias, e os melhores acadêmicos são aqueles que deixam esse tipo de trilha.”
Durante seus seis anos de exílio na França, as negociações de Becket com Henrique 2º, em sua maioria conduzidas por intermediários, conseguiram remendar algumas das rachaduras em seu relacionamento, mas não todas.
Quando Becket decidiu ir para a França, no início daquele dezembro de 1170, alguns de seus parentes o advertiram para não fazê-lo; outros apontaram que o martírio poderia ter um resultado positivo.
Para piorar as coisas, Becket suspendeu ou excomungou na véspera de sua partida três bispos que haviam participado da coroação do filho de Henrique (Henrique, o Jovem Rei), que então servia como cogovernante. Foi isso que precipitou os acontecimentos de 29 de dezembro.
Naquela noite, quatro barões invadiram a catedral para prendê-lo e, quando ele resistiu, mataram-no com golpes de espada na cabeça.
As orações na catedral estavam chegando ao fim quando ocorreu o ataque ao transepto norte; os fiéis não puderam ver, mas ouviram tudo. Um dos barões armados montou guarda para impedi-los de vir em auxílio de Becket.
As pessoas começaram a coletar seu sangue quase imediatamente, com a expectativa de que faria milagres, e logo começaram a relatar que isso acontecia de verdade.
Canterbury então se tornou — e permaneceu por 300 anos — um dos principais centros de peregrinação da Europa.
Com o tempo, a extremidade leste da catedral foi reconstruída em pedra tingida de rosa ao redor de um santuário para Becket, também em mármore rosa com uma cobertura de ouro.
O saltério, em sua encadernação com joias, teria sido levado em procissão ao altar.
Mas, assim como tudo relacionado a Becket e seu culto, o santuário foi destruído por ordem de Henrique 8º em 1538.
Restam apenas alguns dos fragmentos de mármore rosa e as 146 folhas de pergaminho do saltério, que serão expostas no Museu Britânico.
“A descoberta deste livro em Corpus Christi (da Universidade de Cambridge) realmente fornece uma espécie de conexão tangível com o culto de Becket na Idade Média em Canterbury”, disse Lloyd de Beer.
“E, considerando-se que quase nada sobreviveu, é muito emocionante.”
As fotografias do saltério da Biblioteca Parker são cortesia do Master and Fellows of Corpus Christi College, Cambridge.