Arte de manicômio: O inusitado conflito entre Monteiro Lobato e Anita Malfatti

Com uma visão bastante conservadora do cenário artístico da época, o autor enxergava as obras da artista modernista como uma bagunça sem sentido, uma “arte anormal”

Pamela Malva
Fotografias de Anita Malfatti e Monteiro Lobato
Fotografias de Anita Malfatti e Monteiro Lobato – Wikimedia Commons

Quando comparados, dois quadros de Anita Malfatti podem passar duas impressões diferentes ao apreciador. Alguns, com cores mais vivas e traços mais aerados, mostram uma arte expressionista, que transbordava o modernismo.

Outras obras, no entanto, um pouco mais contidas, mostram um momento da vida da artista no qual ela tentava representar o realismo a sua volta. A diferença chega a ser palpável e, durante anos, entusiastas tentaram entender a motivação da mudança.

Muitos sugerem, portanto, que a nova abordagem das obras de Anita foram motivadas por uma briga específica, iniciada em dezembro de 1917. Segundo as teorias, teria sido Monteiro Lobato o causador da reviravolta nos quadros da artista.

Autoretrato de Anita Malfatti / Crédito: Wikimedia Commons

Polêmica em telas

Em meados de 1916, Anita havia retornado de seus estudos na Alemanha e nos Estados Unidos. Com a cabeça cheia de ideias, ela colocou os pés em uma São Paulo conservadora, que claramente ainda não estava pronta para o modernismo.

Assim, a artista decidiu criar uma exposição didática, a fim de apresentar um novo tipo de representação à elite, em 1917. Através de 53 obras autorais, Anita não procurava causar polêmica — se fosse assim, ela exporia seus retratos de nudez masculina.

O fato é que, de volta à São Paulo, Anita sabia que lidaria com um público muito mais atrasado do que em outros lugares que já experimentaram as vanguardas. Para Monteiro Lobato, no entanto, o objetivo não foi alcançado.

Anita Malfatti na juventude / Crédito: Wikimedia Commons

Duras palavras

Criador do famoso Jeca Tatu, o autor visitou a exposição de Anita e, pouco tempo mais tarde, publicou uma crítica no Estadão. Em 20 de dezembro de 1917, então, o público ficou sabendo sobre a opinião de Monteiro em relação aos quadros de Anita.

De tão rígida, a nota publicada fez com que cinco das oito obras modernistas da artista compradas na exposição fossem devolvidas. Mais tarde, em 1950, Anita contaria que “um amigo de casa ameaçou meus quadros com a bengala, desejando destruí-los”.

Nas folhas de jornal, Monteiro não economizou palavras para reconhecer que, apesar do “talento vigoroso” e “fora do comum” de Anita, a pintura, na verdade, produzia uma “arte anormal”. Palavras como “paranóia” e “mistificação” também caracterizavam os quadros.

Pintura de Anita Malfatti / Crédito: Wikimedia Commons

Mudança de maré

Embora tenha participado da Semana de Arte Moderna de 1922 — um dos episódios mais polêmicos no cenário artístico de São Paulo —, Anita mudou um pouco suas técnicas após a crítica de Monteiro. Poucos sabiam, no entanto, que aquele sempre foi seu plano e que, por trás das cortinas, Lobato foi apenas o estopim da mudança.

Segundo o crítico Tadeu Chiarelli, Malfatti recuou em suas obras expressionistas por causa do claro momento antivanguardista que se instalava em terras paulistas. Diante de tantas pessoas conservadoras, ela se manteve atenta ao debate nacionalista e, assim, decidiu mudar um pouco o seu fazer artístico.

Já fazia tempo que, após estudar no exterior, Anita ansiava por treinar técnicas de pintura realista, ou naturalista. Ela adorava a vanguarda europeia e americana, mas também procurava explorar outros formatos.

Moneiro Lobato ainda na juventude / Crédito: Wikimedia Commons

Universo de críticas

O mal estar criado pela crítica de Lobato, no entanto, permaneceu, apesar de ele não ter causado nenhuma mudança abrupta na vida de Anita. Isso porque, no texto, Monteiro não apenas criticou a artista, como também falou do modernismo em si.

Para o autor, por exemplo, as telas de Anita — que eram claramente expressionistas —, se pareciam com os desenhos “que ornam as paredes internas dos manicômios”. A única diferença entre ambos era que, nas instituições, a “arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses”.

Com essas palavras, o autor deixou claro que as vanguardas, em sua opinião, não tinham “nenhuma lógica, sendo mistificação pura”. Ainda mais, na exposição de Anita, ele enxergava “acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia”.

No fim, ele ainda tentava enterrar outras escolas: “Futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural”. A sorte foi que, apesar das críticas, Anita, Mário de Andrade e Oswald de Andrade se uniram e, juntos, defenderam um estilo artístico que tirou São Paulo do conservadorismo latente.

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