Do Sertão nordestino as Diretas Já: uma crônica sobre o legado da minha avó

Conheça a história da heroína anônima, que enfrentou a fome, seca e lutou contra a ditadura militar no Brasil

Victória Gearini
Minha vó me segurando quando eu era criança
Minha vó me segurando quando eu era criança – Divulgação / Acervo Pessoal / Victória Gearini

Sorriso largo. Olhos profundos. Cabelos grisalhos. Mãos enrugadas e calejadas pelo tempo. Características físicas marcantes, presentes no corpo da minha avó, a nordestina arretada Maria Carmelita de Lima Silva. Oriunda do sertão pernambucano, a mulher na qual eu chamo de “mãe-vó”, carrega em suas veias uma história excepcional.

Lutar para ela é sinônimo de sobrevivência. Lutar contra a seca. Contra a fome. Lutar pela vida. Para ela a vida nunca foi fácil, muito menos gentil, mas nunca deixou isso abalar sua força. Força essa que corre nas veias das mulheres do Norte e Nordeste brasileiro.

Embora tenha feito somente até o equivalente ao segundo ano da escola, nunca deixou de estudar. Com brilho no olhar, ela fica fascinada quando eu sento ao seu lado e lhe ensino algo novo.

Mas caro leitor, não se engane, porque essa história não é só sobre a mulher que me criou, mas também sobre a história do país. Da seca que devastou o sertão nordestino no século 20. Sobre a migração dessas pessoas para o Estado de São Paulo. E sobre o sombrio período da ditadura militar. 

Sobretudo, essa história é sobre a força da mulher brasileira, que em meio ao sistema machista e patriarcal, encontra forças para lutar diariamente. Seja onde ela estiver, a mulher brasileira é sinônimo de coragem. A história do país deve-se a todas elas.

A difícil infância no sertão Nordestino

Em meio ao Sol escaldante de Cachoeirinha — pequena cidade localizada no sertão de Pernambuco — Carmelita Maria dos Santos — mais tarde adicionando o Lima ao sobrenome — dava à luz a uma menina, Maria Carmelita de Lima Silva. 

A pequena — que mais tarde seria minha avó — nasceu no dia ensolarado de 11 de janeiro de 1955. Contudo, o que ela não imaginava, é que sua infância seria interrompida desde muito cedo. As bonecas seriam trocadas por enxadas. E a inocência daria lugar ao instinto de sobrevivência.

Minha vó na adolescência (não há registros de sua infância) / Crédito: Divulgação / Acervo Pessoal / Victória Gearini

Aos quatro anos, a pequena Lica — apelido carinhoso que carrega até hoje — presenciou pela primeira vez o que há de mais cruel na sociedade: a violência. Com as memórias claras em sua mente, minha avó relembra que viu seu pai, Vicente José da Silva, agredir fisicamente sua mãe.

Após respirar profundamente, retornamos a nossa conversa. Neste momento, minha avó relembra os efeitos colaterais de uma cultura misógina, que demoniza e inferioriza os corpos femininos.

“O machismo era tão grande, que minhas tias não iam para a roça quando estavam menstruadas, porque os homens acreditavam que o sangue delas poderia estragar a plantação e a colheita”, exalta em voz alta, apresentando indignação com tamanho absurdo.

Ao falarmos novamente em meu bisavô Vicente, vovó conta que após a dura separação de seus pais, ela foi morar com o patriarca. Dos cinco aos oito anos de idade, a pequena garota presenciou inúmeras vezes sua madrasta ser espancada pelo marido. Em sua mente, guarda as memórias mais tristes das inúmeras vezes que também apanhou do patriarca.

“Eu tenho manchas em meu corpo de tanto apanhar. Com seis anos eu já carregava uma lata d’água em minha cabeça. Era normal eu derramar o líquido, mas para ele, era algo imperdoável”, relembra “mãe-vó” com a voz estremecida.

Mais tarde, Lica mudou-se para a casa de seus avós maternos Antônio Cordeiro de Lima e a famosa parteira da cidade, Maria Marculina Cordeiro de Lima — mais conhecida como “Mãe Véia”. Contudo, no novo lar, ela não encontrou uma realidade tão diferente.

As agressões físicas cometidas pelo pai foram substituídas pelos abusos psicológicos. “Nossa você é muito preguiçosa, aprendeu com o seu pai”. “Nossa você não sabe fazer nada, isso aprendeu lá”. Eram algumas das frases ditas por eles, para que ela aos oitos anos fosse trabalhar na fazenda da família.

Despertar da juventude

Em sua pré-adolescência viu a cidade ser tomada por políticos inescrupulosos, que buscavam de pau-de-arara os eleitores mais humildes para votar. A lavação psicológica foi tão grande, que conseguiram convencer meus tataravós a mudarem os registros dela.

Maria Carmelita de Lima Silva, agora, não nascera mais em 11 de janeiro de 1955, mas sim, em 11 de janeiro de 1953. A tática era muito utilizada na época. Os governantes convenciam a população a trocar o ano de nascimento dos adolescentes para que eles pudessem votar, em troca prometiam comida e outros favores. A essa altura, o nordeste sofria com a seca e fome.

Ela lembra-se que a única comunicação que tinha em sua casa, até então, era feita pelo rádio. A partir deste meio, vovó soube sobre a morte do Castello Branco e pode conhecer, ainda, a inesquecível história de Leila Diniz.

Vovó usando vestindo inspirado em Leila Diniz / Crédito: Divulgação / Acervo Pessoal / Victória Gearini

“Mãe-vó” conta que se lembra de ter visto sua família ficar escandalizada com o fato de uma mulher ir à praia e usar biquíni. “Mulher tem que ir para a cozinha”. Vovó, por outro lado, viu aquilo como um sinal de empoderamento e ficou encantada com a atitude da atriz.

“Como eles eram muito religiosos, segundo a Bíblia, já tinha chegado a besta. Eles disseram que a mulher não podia ir à praia e não podia se mostrar”, recorda ela.

Tempos depois, enquanto lia um jornal, minha avó se deparou com uma foto da Leila Diniz, usando um lindo vestido tubinho. Logo ficou encantada com a vestimenta e com a forte personalidade da atriz. Em seguida, decidiu costurar uma roupa parecida, mas foi duramente repreendida pela família, apanhando de meu tataravô.

Os anos se passaram e a adolescência chegou de fato. Entre sentimentos confusos que qualquer garota nesta fase enfrenta, a jovem pernambucana viu a hora de dizer adeus a sua terra. Como tantos outros nordestinos, “mãe-vó” deixou o seu lar. Fugiu da seca e partiu em direção ao sudeste do Brasil.

Na terra da garoa

Em um ônibus lotado de outras pessoas, vovó passou quase quatro dias sonhando com a nova vida. “Passei esses dias todos de fome, mas sonhando que tudo seria maravilhoso, que eu iria trabalhar e ter meu lar”. Contudo, ela não imaginava que o que lhe esperava era muito diferente do que havia projetado em seus sonhos.

“No Nordeste a gente não sabia de nada do que acontecia por aqui, só através de jornais velhos. Às vezes a notícia já tinha saído há mais de dois ou três anos”, revela ela.

Em 1973, desembarcou na capital de São Paulo. O dia chuvoso e nublado já entregava que a terra da garoa era muito diferente do sertão nordestino. Ao desembarcar na Estação da Luz, localizada na região central da cidade, teve o primeiro choque cultural e econômico.

“Eu vi muita gente passando fome e desmaiada na rodoviária, que era muito suja. Vi pessoas do Norte e Nordeste implorando para serem contratadas para qualquer serviço. Uma vida muito difícil”, lamenta minha avó.

Vovó, por sua vez, felizmente, teve o amparo de familiares que já moravam na capital. Mais tarde começou a trabalhar e passou a morar em uma pensão que abrigava muitos outros migrantes. E foi lá que ela conheceu meu avô, José Horácio da Silva, um paraibano mais velho que lhe mostrou a militância.

Uma mulher no movimento sindicalista

Durante a década de 1970, meus avós ingressaram no movimento sindicalista. Como metalúrgicos viram o descaso do governo militar perante a classe operária. Cargas exaustivas de trabalho, remuneração baixa e maus tratos contra os trabalhadores eram comuns nas fábricas.

Meus avós, segurando minha tia no colo e minha mãe sorrindo / Crédito: Divulgação / Acervo Pessoal / Victória Gearini

Diante deste cenário, o casal aderiu à causa trabalhista e a partir disso passou a fazer parte de reuniões contra a ditadura militar. Os membros do movimento realizavam visitas surpresas a fábricas, com o intuito de denunciar o descaso contra o trabalhador.

Vovó, por sua vez, lembra-se que muitas vezes tiveram que fugir das autoridades, que duramente repreendia os manifestantes que lutavam pela democracia. Contudo, certa vez, se perdeu do meu avô. Ela conta que sentiu muito medo. Temia ser encontrada pelos agentes da repressão, e ter seu corpo descartado como lixo.

Por sorte conseguiu pegar um táxi e ir para sua casa. Contudo, ela lembra que vovô não teve a mesma sorte. Certo dia, ele chegou ao lar com a camisa rasgada e machucado, após um ato contra o governo.

Essa história nunca soubemos a fundo o que de fato aconteceu, pois ele nunca se abriu conosco. Hoje em dia, infelizmente, ele se encontra com Alzheimer. Portanto, talvez nunca saibamos ao certo o que aconteceu naquele dia.

“Essa história que só bandido e vagabundo sofria nas mãos dos militares é a maior mentira. Pessoas honestas e trabalhadoras, que só lutavam por condições dignas de trabalho, foram perseguidas, torturadas e mortas pelo exército. Era um horror”, desabafa a vovó, sem esconder a profunda indignação ao saber que existem pessoas nos dias atuais que pedem pela intervenção militar.

Minha mãe à esquerda, vovó ao centro e minha tia à direita / Crédito: Divulgação / Acervo Pessoal / Victória Gearini

Ao lado do meu avô — que carregava minha mãe em seus ombros — vovó foi às ruas paulistanas reivindicar pelas Diretas Já. Prestes a dar à luz a minha tia, ela não deixou o incômodo do barrigão e as dores no corpo a impedirem de gritar por liberdade.

A essa altura, a menina humilde e inocente do sertão pernambucano tinha ficado para trás. Agora, ela era uma mulher forte, que não se calava perante as atrocidades cometidas pelos militares.

Considerada a maior mobilização popular ocorrida no Brasil durante o século 20, as Diretas Já se concretizaram em abril de 1984. Esse era um novo começo para o país. O fim do longo período que durou 21 anos, responsável por executar diversas vidas. Era o início da restauração da democracia brasileira.

O legado da minha heroína

Hoje em dia, com as mãos enrugadas e os cabelos grisalhos, vovó fala com orgulho tudo o que viveu. Com brilho no olhar, a mulher que me criou diz que sente orgulho de ter lutado pelo Brasil. No entanto, sente medo das ameaças negacionistas e ditatoriais que assolam o país nos últimos anos.

Eu e minha vó quando eu ainda era criança / Crédito: Divulgação / Acervo Pessoal / Victória Gearini

Com lágrimas nos olhos, lamenta não ter tido a oportunidade de estudar. Mas sente orgulho das filhas e neta, que se dedicaram aos estudos e no que podem compartilham seus conhecimentos com ela.

“Gostaria de ter seguido uma profissão grande, que ajudasse as pessoas. Talvez no meio da política, porque é triste ver as pessoas falando que as outras não fazem as coisas porque não querem. Muitas delas não tiveram oportunidades. Não é todo mundo que dá uma reviravolta”, diz vovó, na esperança que um dia o ser humano entenda o verdadeiro significado de empatia.

Revolucionária, ela defende a liberdade sexual e de gênero. Sonha com um mundo livre de racismo, xenofobia, machismo e qualquer outra forma de opressão. E finaliza com a seguinte reflexão para as futuras gerações: “Quem não tem memória, não tem passado”.

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