Como nasceu e fracassou a invasão da Baía dos Porcos em Cuba há 60 anos
José Carlos Cueto | BBC News Mundo |
Johnny López de la Cruz sente que está sufocado. Trancado em um caminhão com mais de 100 prisioneiros, ele mal consegue respirar.
Dentro do contêiner, os presos se desesperam. Começam a suar. Vários desmaiam.
Alguns arrancam as fivelas do cinto militar para perfurar o teto e deixar entrar um pouco de ar.
Eles ganham tempo, mas a maioria acha que eles vão ser fuzilados assim que chegarem a Havana.
A viagem termina sete horas depois. Os militares castristas abrem as portas. Vários corpos inertes caem no asfalto. Nove prisioneiros morreram no trajeto.
Quando chega a vez de Johnny sair, ele mal consegue saltar do caminhão.
No “caminhão da morte”, eles não são os únicos prisioneiros. No total, distribuídos por diversos veículos, há cerca de 1,1 mil capturados.
São los sobreviventes da Brigada 2506, um exército de 1,4 mil jovens que poucas horas antes fracassou na tentativa de invadir Cuba, derrotados na Praia Girón pelas tropas de Fidel Castro.
A maioria são cubanos exilados que, após o triunfo da revolução, foram recrutados e treinados pela CIA para derrubar o governo revolucionário na ilha.
Fidel Castro havia chegado ao poder dois anos antes, ao vencer em 1º de janeiro de 1959 o governo golpista de Fulgêncio Batista, a quem acusavam de autoritário e corrupto.
Mas, apesar do grande apoio popular, muitos outros cubanos não compartilhavam das ideias revolucionárias de Castro e se exilaram.
O ataque à Baía dos Porcos de 1961, no entanto, estava condenado ao fracasso antes mesmo do primeiro disparo. E a Brigada ainda responsabiliza Washington.
Da Casa Branca, o então presidente John Fitzgerald Kennedy cancelou na última hora os ataques aéreos que iriam neutralizar as aeronaves castristas.
Isso aconteceu porque os Estados Unidos não podiam figurar como a força motriz por trás da invasão. Não só prejudicava sua imagem internacional, como também dava uma desculpa à União Soviética, que se consolidava como aliada-chave de Castro, para retaliar e provocar um conflito nuclear sem precedentes.
Assim, os jovens determinados, mas também inexperientes, que sonhavam em “libertar Cuba do castrismo”, resistiram menos de 72 horas.
Eles desembarcaram na madrugada de 17 de abril de 1961. Na tarde de 19 de abril, já haviam sido derrotados.
Os sobreviventes da Brigada 2506 foram libertados após intensas negociações no Natal de 1962, um ano e meio depois.
Os brigadistas que ainda estão vivos seguem aguardando no exílio a queda do governo socialista cubano.
Enquanto isso, Cuba comemora todo dia 19 de abril como uma pequena nação derrotou um exército de “mercenários” financiados pelo país mais poderoso do mundo.
Já passaram 60 anos
Esta é a história de como a invasão foi concebida, por que fracassou e o quanto marcou seus protagonistas.
Por que deixei de apoiar Fidel e me juntei à invasão
Johnny López de la Cruz
Johnny López de la Cruz, hoje com 80 anos, é o atual presidente da Associação de Veteranos da Brigada 2506. Ele fez parte do batalhão de paraquedistas da invasão da Baía dos Porcos. Ele conta como se exilou e se juntou à Brigada:
Abri meus olhos em relação a Castro no dia em que mataram o sargento Benítez.
O sargento Benítez era da polícia de Batista, um bom amigo da família que nunca saiu de Cuba por considerar que não havia feito nada de errado.
Eu apoiava Castro no início. Ele nunca disse ser comunista. Do contrário, ninguém em Cuba teria aceitado.
Mas logo começaram a fuzilar as pessoas, confiscar propriedades, estatizar e tirar terras.
Um dia, dois homens de Castro apareceram e levaram Benítez para ser julgado. Eu estava lá para apoiá-lo.
Durou menos de meia hora. Não o deixaram nem depor. Ele e outros quatro réus foram considerados culpados e levados para um cemitério abandonado fora da cidade.
Foram fuzilados e jogados em uma cova.
Acordei. Não entendia como era possível fuzilar alguém sem defesa. Aquilo era abuso de autoridade.
Comecei então a participar de atividades contrarrevolucionárias. Distribuíamos manifestos e escrevíamos ‘Abaixo Fidel’ nas paredes.
Mas eles prenderam dois do meu grupo. E pessoas próximas disseram que eu era o próximo.
Foi assim que três companheiros e eu fomos para Havana e voamos para Miami com documentos falsos.
Quando cheguei aos Estados Unidos em 1960, já sabia que outros exilados estavam sendo treinados pela CIA na Guatemala para invadir Cuba. Fui para lá alguns dias depois.
Exército de 1,4 mil exilados
Entre 1959 e 1960, milhares de jovens anticastristas, como López de la Cruz, chegaram à conclusão que a única saída era o exílio ou o pegar em armas.
A maioria foi para os Estados Unidos, um país disposto a financiar a queda de Castro.
As estatizações de indústrias e negócios americanos e o fortalecimento dos laços comerciais e militares com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) logo colocaram Cuba na posição de desafeto dos Estados Unidos.
Castro havia se tornado uma ameaça real à influência regional do país mais poderoso do mundo.
A CIA, agência de inteligência americana, o Pentágono e a Casa Branca, sob o governo de Dwight Eisenhower, se propuseram a acabar com o líder revolucionário.
E encontraram em um grupo de cubanos exilados o exército perfeito para executar o plano.
No total, foram recrutados cerca de 1,4 mil homens.
Cuba, enquanto isso, se preparava diante das suspeitas de uma invasão iminente.
“Herói da Pátria”
Jorge Ortega Delgado
Jorge Ortega Delgado lutou do lado fidelista durante a invasão. E quando se lembra disso, um brilho ofusca seus olhos. Sentado no terraço de sua casa em Havana, aos 77 anos, ele contou à BBC como se juntou às milícias:
Venho de uma família operária muito humilde. Quando a revolução triunfou, eu tinha 15 anos e me juntei imediatamente às atividades revolucionárias.
Os Estados Unidos começaram a intervir e a tentar atacar Cuba e, em outubro de 1959, foram fundadas as milícias nacionais revolucionárias.
Me alistei e participei de todos os treinamentos durante 1959 e 1960.
No fim de outubro de 1960, Fidel Castro, o comandante-chefe, apareceu no treinamento.
Fidel pediu para reunir todos os milicianos. Éramos quase 1,5 mil.
E, naquela ocasião, pediu aos jovens com menos de 20 anos que se juntassem à artilharia antiaérea.
Naquela tarde, pedi permissão aos meus pais para poder me apresentar. Eles concordaram.
Entramos para a bateria 30. Foi quando nosso treinamento em artilharia antiaérea começou.
O plano
O plano original da CIA e do governo Eisenhower era que os exilados partissem de Puerto Cabezas, na Nicarágua, e desembarcassem perto da cidade de Trinidad, no sul de Cuba.
O objetivo principal era ocupar a região e resistir por tempo suficiente para estabelecer um governo de oposição de líderes no exílio que logo seria apoiado pelos Estados Unidos.
Trinidad fica perto das montanhas do Escambray , onde já havia membros da resistência anticastrista que se juntariam às tropas invasoras e organizariam, se necessário, uma guerra de guerrilhas semelhante à que Fidel Castro saiu vitorioso na Sierra Maestra poucos anos antes.
Para facilitar o desembarque,16 aviões bombardeariam previamente os principais aeródromos de Castro , inutilizando sua força aérea e ganhando assim vantagem no céu cubano.
Mas o roteiro mudou radicalmente quando Kennedy se tornou presidente em janeiro de 1961.
Ele concordou em continuar com o plano, mas não sob essas condições. Invadir Trinidad em plena luz do dia parecia estrondoso demais.
“Kennedy queria negar qualquer envolvimento na invasão. Tinha que ser encoberta. Desembarcar em Trinidad durante o dia demonstrava muito poderio, que os EUA estavam por trás”, explica à BBC News Mundo Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação de Cuba do Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos.
“A operação tinha que ser o mais secreta possível, e Kennedy deu à CIA três dias para refazer um plano que havia sido tramado durante um ano inteiro”, acrescenta o especialista, que conseguiu divulgar o relatório do fracasso que se manteve em sigilo por 37 anos.
Kennedy reduziu os aviões de 16 para oito e instou a CIA a mudar o local e o horário de desembarque.
O lugar escolhido se revelou mais tarde um dos piores possíveis: a Baía dos Porcos, uma enseada de difícil acesso também no sul da ilha.
Nesta área, a costa é hostil.
É uma área pantanosa, com muitos manguezais intransponíveis e “dentes de cachorro”, como são conhecidas as concentrações de recifes em Cuba, afiados.
Um cenário difícil para desembarcar em sigilo e com fluidez.
Perto da Baía dos Porcos havia um aeroporto, essencial para que os aviões invasores pudessem reabastecer.
O bombardeio
15 de abril
Jorge Ortega Delgado completa seu primeiro treinamento em canhões antiaéreos e aguarda ansioso em 15 de abril para dar uma volta. São vários meses de formação militar.
Mas naquela mesma manhã o alarme de combate toca. Aviões invasores bombardearam dois aeroportos em Havana e outro em Santiago de Cuba.
“Saímos imediatamente, nos mandaram pegar os canhões e nos colocaram numa praia. Quando chegamos, nos contaram que, ao amanhecer de 15 de abril, aviões mercenários atacaram nossos aeroportos e mataram sete do nosso lado”, lembra Ortega.
“Todos os jovens sentiram um repúdio completo. Não podíamos acreditar. Estávamos dispostos a fazer o que fosse necessário para defender a pátria “, acrescenta o ex-combatente, ainda com fervor na voz.
O bombardeio de 15 de abril de 1961 era o primeiro dos que Kennedy havia autorizado para inutilizar os aviões de Castro antes do desembarque, previsto para 17 de abril.
Os oito aviões decolaram na madrugada de 15 de abril da base de Puerto Cabezas, na Nicarágua, e lançaram granadas sobre os aeródromos de Santiago de Cuba, no leste do país, e Ciudad Libertad e San Antonio de los Baños, ambos em Havana.
Apesar de ter deixado sete mortos, apenas poucas aeronaves cubanas foram danificadas, algumas já imprestáveis.
A força aérea castrista ficou praticamente intacta e, além disso, conseguiu abater um dos aviões invasores.
Após o bombardeio, um avião se passando por cubano pousou em Key West, na Flórida. O piloto alegou ser um desertor das forças armadas de Castro.
Na verdade, era parte do plano da CIA para não envolver os Estados Unidos no ataque.
Dessa forma, pareceria que havia eclodido uma rebelião interna anticastrista em Cuba, em vez de uma ação promovida pelo alto comando dos Estados Unidos.
“Mas a história do desertor durou apenas algumas horas. Embora os Estados Unidos negassem, todo mundo ficou sabendo que os aviões eram americanos e que pretendiam fingir que o ataque fora perpetrado por desertores cubanos”, explica Kornbluh.
Com a suspeita de envolvimento dos Estados Unidos, Kennedy cancelou o restante dos ataques. Um golpe decisivo contra as aspirações da Brigada 2506, que não teria apoio aéreo suficiente.
“Sempre digo que a guerra estava perdida antes de começar”, lamenta López de la Cruz.
Mas, naquele momento, nenhum dos invasores sabia.
O desembarque
17 de abril
1h da manhã. As lanchas com invasores se aproximam da Praia Larga, no final da estreita Baía dos Porcos.
Eles não querem fazer barulho. Surpreender é parte essencial do plano.
Mas Castro pressente há meses um ataque. Ele sabe que uma guerra contra os Estados Unidos é como uma batalha de Davi contra Golias — e se preparou bem.
“Ele tinha milícias patrulhando praticamente todas as praias da ilha”, explica Kornbluh.
Uma dessas patrulhas escuta ruídos. E abre fogo.
Os invasores respondem. Conseguem capturar alguns dos patrulheiros, que haviam tido tempo de dar o alerta. O elemento surpresa havia ido por água abaixo.
As tropas de Castro já estão se mobilizando para conter a invasão, e ainda faltam muitos para desembarcar.
“Barcos de papel”
Humberto López Saldaña
Humberto López Saldaña tem 83 anos. Em 1960, deixou Cuba e se exilou com a família em Miami, onde logo se juntou à Brigada. Ele estava em um dessas lanchas invasoras e contou à BBC News Mundo como foi o desembarque:
Tivemos muitas dificuldades. Começamos a combater cedo demais. Isso atrasou o desembarque.
Além disso, nossas lanchas eram muito pequenas. Cada vez que se chocavam contra os recifes, ficavam praticamente destruídas. Muitas afundaram.
O desembarque durou até as primeiras horas da manhã. Esperamos a maré baixar para ter uma visão melhor e evitar os recifes. Da costa, nos jogaram uma corda para chegar à terra firme.
Por volta das 6h da manhã apareceu a força aérea castrista. As bombas caíam do lado. Nossos barcos cambaleavam como se fossem de papel.
Pouco depois, um foguete atingiu meu barco, o Houston.
O pânico se instalou. Vários companheiros morreram. O capitão jogou o Houston contra os recifes para facilitar o acesso dos demais à terra.
Além de inutilizar o Houston, os aviões de Castro também afundaram o Rio Escondido. Nessas embarcações tínhamos muita munição e toneladas de gasolina de aviação. Perdemos tudo.
“Quando você começa a disparar, se exalta e perde o medo”
Jorge Ortega e sua bateria chegaram à província de Matanzas, onde fica a Baía dos Porcos, no dia 17 de abril por volta das 5h da tarde.
Lá soube que lutaria contra os 1,2 mil homens que haviam conseguido desembarcar, além do batalhão de paraquedistas que foi lançado em outras áreas próximas.
Ortega se lembra de ouvir os milicianos, a explosão de tanques e morteiros.
“No dia 16 de abril, ouvimos com atenção o discurso de Fidel em homenagem aos nossos sete compatriotas que morreram nos bombardeios. No caminho para Havana, o povo saía com bandeiras às ruas nos pedindo para derrotar o inimigo”, recorda Ortega sobre as horas antes de se posicionar atrás do canhão.
Foi nesse discurso que Castro declarou pela primeira vez o caráter socialista da revolução e exortou o povo a expulsar os mercenários.
Na manhã de 18 de abril, Ortega avistou aviões inimigos. Foi a primeira vez que ele disparou um canhão.
“Você se sente inibido. Todos nós sentimos medo. Quem diz que não, está mentindo. Mas você olha para o lado e vê o resto firme e determinado. Quando você começa a disparar, se exalta e perde o medo”, conta Ortega.
Nesse mesmo dia, sua bateria entrou com mais tropas nas imediações de Praia Larga, já cercando grande parte do exército de exilados.
“Ao amanhecer de 19 de abril, vimos cair no mar um dos aviões que derrubou nossa bateria. Outro avião caiu em um canavial. O copiloto morreu carbonizado, mas o piloto saltou de paraquedas e tentou fugir. Morreu lutando cercado por nossas tropas”, relata o ex-combatente.
Com os ataques prévios ao desembarque cancelados, os aviões B-26 que acompanharam a invasão foram presas fáceis diante da frota praticamente intacta de Castro.
Os barcos que transportavam o combustível foram perdidos, e os aviões invasores não podiam usar o aeroporto próximo à Praia Girón como pretendiam.
Para reabastecer, eram necessárias quatro horas de voo de ida e volta até a base da Nicarágua. Cada vez que voltavam a Cuba, tinham menos de uma hora para bombardear.
As metralhadoras traseiras foram removidas para deixá-los mais leves — e isso os tornou mais vulneráveis.
Mal haviam se passado 24 horas desde o desembarque na madrugada de 17 de abril, e os invasores já haviam perdido dois dos seis barcos e metade da frota aérea.
O restante das embarcações partiu para alto mar para evitar maiores danos diante da reação de Castro.
Em 19 de abril, quatro instrutores de voo americanos que aguardavam na Nicarágua foram acudir os brigadistas que combatiam sozinhos, mas as forças fidelistas os derrubaram.
“Não era a hora deles morrerem, mas sentiram que deveriam nos apoiar. Foi um grande gesto”, lamenta López de la Cruz.
Fracasso consumado
19 de abril
Castro conhece as dificuldades do inimigo. Por isso se apressa e avança com tudo para encurralá-los na costa e impedir que escapem.
Suas tropas chegam em ondas: caminhões com mais homens, tanques blindados, morteiros, aviões.
No terceiro dia, os invasores não têm mais munição, tampouco aviões ou rota de fuga. Eles se rendem por volta das 17h30 da tarde de 19 de abril.
É complicado fornecer dados exatos sobre o número de mortos do lado invasor.
“Havia o pessoal da marinha nos barcos que afundaram e ali perdemos a contabilidade exata”, explica De la Cruz.
O presidente da Associação de Veteranos estima que houve 103 mortos e outros 100 feridos.
Ele considera que as baixas foram mínimas levando em conta que não pararam de lutar durante três dias.
Do lado cubano, um dos comandantes que liderou a resistência, José Ramón Fernández, estimou o saldo em 176 mortos, 300 feridos e 50 incapacitados em um livro sobre a invasão que escreveu com Fidel Castro.
“Um ato de arrogância”
“A invasão da Baía dos Porcos foi um erro de cálculo tremendamente arrogante por parte da CIA”, avalia Kornbluh.
O alto comando estava convencido de que a revolução de Castro era impopular e que bastava uma invasão militar de opositores para que o povo se voltasse contra ele.
“Mas a verdade é que Castro era muito popular nessa região. Havia levado eletricidade e apoio agrícola. A CIA confiou em suposições falsas e pobres para armar a invasão.”
“Também não era difícil imaginar que dezenas de milhares de militares cubanos derrotariam rapidamente 1,4 mil invasores”, diz Kornbluh.
A prisão
Humberto López Saldaña conta à BBC News Mundo o que aconteceu após ser capturado:
Antes de sermos transferidos para a prisão, Che Guevara chegou. Nos perguntou o que fazíamos antes de deixar Cuba. Parecia muito calmo, mas sempre pensei que a qualquer momento poderia levar um tiro.
Nos transportaram em vários caminhões. Um estava muito cheio. Fechado hermeticamente. Nesse, morreram nove companheiros.
O meu foi com as portas abertas. Enquanto estávamos sendo transferidos, as pessoas gritavam na rua: “Mercenários, traidores da pátria, vamos fuzilar vocês!”
Depois, em Havana, nos trancaram na prisão de Castillo del Príncipe. Lá o tratamento não foi bom.
Algumas celas estavam superlotadas e você tinha que dormir no chão.
Se nossos familiares nos mandavam algo, os guardas jogavam no chão. As pessoas brigavam para pegar. Tínhamos que nos organizar e repartir as coisas.
Conseguir charutos era muito difícil. Alguns prisioneiros fumavam até casca de laranja.
Quando saíamos para caminhar no pátio, um guarda nos cutucava com baionetas se não andássemos rápido.
Uma coisa bem tétrica é que éramos cerca de 150 por galeria e só havia um banheiro.
Nos ofereciam um café com leite que, na verdade, era água suja — e, muitas vezes, cuspiam nele antes de entregar. O pão que nos davam era duro como pedra. Jogavam no chão e não acontecia nada com ele. Você tinha que molhar para poder comer. A comida era muito escassa.
A troca
López de la Cruz passou mais de três meses em uma cela solitária porque tentou escapar e passou a integrar a categoria de presos perigosos.
Por isso, foi colocado no último avião que mandou os prisioneiros livres de volta a Miami.
Era Natal de 1962.
Kennedy havia enviado um famoso advogado para negociar com Castro.
Era James B. Donovan, que em fevereiro de 1962 havia conduzido uma troca de prisioneiros entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Ele viajou pela primeira vez a Havana em 30 de agosto de 1962 e, no dia seguinte, se reuniu por quatro horas com Fidel Castro.
Nos meses seguintes, Donovan se encontrou várias vezes com o líder cubano.
As negociações foram tratadas como um processo de “indenização”, mais do que uma troca humanitária, “algo que Castro exigiu desde o início porque queria que Cuba fosse compensada pelos custos da invasão”, explica Kornbluh.
Meses antes da libertação, os prisioneiros haviam sido julgados publicamente por traição à pátria.
Muitos acreditavam que acabariam sendo fuzilados, mas foram condenados a 30 anos de prisão e impuseram uma fiança no valor total de US$ 62 milhões.
No fim de dezembro de 1962, Donovan acordou com Castro que os presos seriam libertados em troca de US$ 53 milhões em remédios e alimentos que seriam distribuídos ao povo cubano.
Quando os primeiros carregamentos de mantimentos chegaram em 23 de dezembro, os aviões da Pan American Airlines estavam transferindo os prisioneiros para Miami, onde uma recepção com 10 mil pessoas os aguardava no agora extinto auditório Dinner Key.
Enquanto isso, em Cuba, era celebrada a “segunda vitória de Girón”, por terem vencido “a batalha pela indenização”.
No último avião da Pan Am, López de la Cruz lembra de olhar pela janela e pensar que seria muito difícil voltar ao seu país.
“As pessoas dizem que nos trocaram por latas de compota, mas não nos sentimos humilhados. Pela nossa libertação, Cuba recebeu muitas roupas, alimentos e remédios que o governo distribuiu à sua maneira”, diz López Saldaña.
Nenhum dos dois exilados voltou a pisar em Cuba.
Jorge Ortega: “Sempre serão nossos inimigos”
Se um dia eu poderia sentar com um deles e tomar um rum? Para mim, parece muito difícil depois dos companheiros que morreram ou acabaram mutilados.
Conversar, sim, Cuba está sempre disposta a dialogar. Mas precisa haver igualdade de condições. Enquanto houver um embargo, não é possível.
Os integrantes da Brigada são mercenários porque se venderam a um país que os contratou.
Eles sempre serão nossos inimigos. Nunca deixaram de ser e, de Miami, continuam influenciando e apoiando este bloqueio contra nosso país.
É verdade que Obama esteve recentemente em Cuba e pediu a retomada do diálogo.
Mas ele também pediu para esquecer a história. A história não se esquece. Sempre a temos presente.
Heróis em Miami
A invasão da Baía dos Porcos é vista em Cuba como um ataque de traidores da pátria vendidos aos Estados Unidos.
Todo dia 19 de abril, é comemorado com marchas e paradas militares o que o governo cubano considera a “primeira grande derrota do imperialismo na América Latina”.
A 145 quilômetros, no entanto, o sentimento é muito diferente.
Pelas ruas de Miami, ecoa a nostalgia do que poderia ter sido. Monumentos, museus e parques homenageiam os heróis da Brigada 2506.
Os sobreviventes não gostam de falar hoje, 60 anos depois, sobre quantos cubanos do outro lado mataram durante a invasão.
“A verdade é que prefiro não dizer. Sabíamos que íamos para a guerra, mas ninguém jamais vai dizer que gostamos de matar pessoas. No fundo, éramos todos irmãos “, diz López de la Cruz.
“Alguém vai matar ou ser morto. Hoje parece diferente, é verdade que éramos todos cubanos. Mas naquela época estávamos simplesmente pensando em libertar Cuba de todo o horror que estava acontecendo”, reflete López Saldaña.
Os veteranos da Brigada ainda sonham em testemunhar em vida a queda do governo cubano.
Há dois presidentes americanos na história que eles têm dificuldade em perdoar: Kennedy e Obama.
“Kennedy não estava à altura. Foi uma estupidez porque, embora ele quisesse proteger os Estados Unidos, estava claro que eles estavam envolvidos. Com o passar dos anos, entendi sua decisão, mas é verdade que muita gente se sente traída e decepcionada com o que ele fez”, diz López de la Cruz à BBC News Mundo.
Os veteranos são ainda mais críticos em relação a Obama.
“Ele quis cair nas graças do regime de Castro e negociar, mas foi ingênuo. Cuba abriu as portas para eles sem mudar nada. Foi uma política desastrosa “, diz López Saldaña.
Grande parte da comunidade cubana exilada na Flórida continua a apoiar uma política linha dura contra a ilha e venera ex-brigadistas como heróis no exílio.
“Temos uma satisfação tremenda. Cumprimos nosso dever, embora não tenhamos alcançado o objetivo. Aqui em Miami somos muito respeitados. O próprio Donald Trump se encontrou conosco várias vezes. Em setembro de 2020, na verdade, ele nos convidou para ir à Casa Branca. Estamos muito orgulhosos”, reafirma López Saldaña.
Créditos
Pesquisa e reportagem: José Carlos Cueto
Edição: Daniel Garcia Marco e Liliet Heredero
Design e ilustração: Cecilia Tombesi
Programação: Catherine Hooper
Com a colaboração de Will Grant, Adam Allen e Sally Morales
Projeto liderado por Liliet Heredero e Carol Olona