Despedida de Mãe Menininha do Gantois teve cortejo de 3h por ruas de Salvador
Cortejo foi conduzido por caminhão do Corpo de Bombeiros (Foto: Arquivo CORREIO) |
Ainda era o meio da tarde de uma quarta-feira, dia 14 de agosto de 1986, quando uma multidão desceu a Ladeira do Gantois, no bairro da Federação, em Salvador, em direção a um carro do Corpo de Bombeiros. O destino era o Cemitério Jardim da Saudade, em Brotas, num percurso de cerca de 15 quilômetros, acompanhado de perto por dezenas de ônibus e carros particulares, e ainda observado por pessoas enfileiradas nas calçadas. Dentro e fora dos carros, um misto de emoção, dor e saudade na despedida de uma das mais queridas e mais conhecidas Ialorixás do Brasil: Mãe Menininha do Gantois.
Filha de Oxum, descendente direta de povos africanos da nação Egbá-Arakê, da Nigéria, e bisneta de negros libertos, Maria Escolástica da Conceição Nazareth, que ficou conhecida no Brasil inteiro – e fora daqui – como Mãe Menininha, havia morrido na noite anterior, aos 92 anos de idade. O cardiologista Edivaldo Brito tinha sido chamado ao terreiro na manhã do dia 13 de agosto para examinar a ialorixá, que sentia dores abdominais, e decidiu interná-la. Durante o dia, na Clínica São Marcos, a equipe médica tentou uma série de procedimentos e, por fim, decidiu fazer uma cirurgia, que não chegou a ser realizada. Por volta das 20h30, Mãe Menininha faleceu.
Filhos, filhas, mães-de-santo, amigos, admiradores, políticos e artistas vieram de diversos lugares para a despedida, iniciada ainda na noite do dia 13, no próprio Terreiro do Gantois, no Largo da Pulquéria. Primeiro, o ritual sagrado e restrito do Axexê – em 2018, o antropólogo Fábio Lima, ao tratar da morte de outra ialorixá baiana, Mãe Stella de Oxóssi, descreveu o axexê como um evento para desatar os laços dos mortos com aqueles do mundo dos viventes. Depois, uma cerimônia aberta a um público que disputava espaço e tentava se acomodar em longas filas organizadas em frente ao terreiro pelos filhos-de-santo.
Após o Axexê e velório aberto no Gantois, corpo de Mãe Menininha foi levado ao Cemitério Jardim da Saudade (Foto: Arquivo CORREIO) |
Dali, por volta das 15h do dia 14 de agosto, o corpo de Mãe Menininha foi levado até o Jardim da Saudade. O cortejo conduzindo o corpo da ialorixá passou pelos bairros do Garcia, Campo Grande, Avenida Joana Angélica, Bonocô, Avenida ACM, até chegar, três horas depois, ao destino.
“Já estava escurecendo quando o cortejo chegou ao Cemitério Jardim da Saudade, em Brotas, onde uma multidão já aguardava ansiosa, procurando os locais mais estratégicos para poder observar melhor”, dizia um trecho de uma reportagem publicada no CORREIO em 15 de agosto daquele de 1986, há 34 anos.
Mãe Menininha, que abriu as portas do Terreiro do Gantois aos brancos e aos católicos, e que convenceu os bispos a permitirem a entrada de mulheres nas igrejas usando as roupas tradicionais das religiões de matriz africana, costumava assistir missas. No Jardim da Saudade, teve uma em sua homenagem celebrada pelo padre Hélio Rocha, à época pároco da Igreja de São Pedro dos Clérigos e do Rosário dos Pretos. Antes da celebração católica, contudo, palmas e cantos em iorubá.
O padre, à época, disse que a Igreja Católica estava mais ecumênica, “procurando atrair o povo e não afastá-lo do seu seio”, mas afirmou que era uma “incoerência” rezar uma missa para uma representante do candomblé.
Muita gente assistiu àquele momento, entre eles o artista plástico Carybé, os cantores Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa, além da atriz Lúcia Veríssimo. Os Filhos de Gandhy prestaram homenagens e também foram à despedida a atriz e cantora Tânia Alves, o então reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Germano Tabacoff, e a atriz Gessy Gesse, ex-mulher do poeta Vinícius de Moraes.
“Muito emocionada, Gesse falou que sentia-se órfã e desamparada. Lembrou que foi Menininha, com sua força e sabedoria ‘que ninguém sabia de onde vinha’, que conseguiu transformar Vinícius, um ateu convicto, em fervoroso adepto do candomblé”, dizia outro trecho publicado pelo CORREIO, na época.
Saída do corpo de Mãe Menininha pela Ladeira do Gantois, em agosto de 1986 (Foto: Arquivo CORREIO) |
Jorge Amado, que estava no Rio de Janeiro, não conseguiu passagens para Salvador naquele dia. Em 1994, ano em que Mãe Menininha completaria 100 anos de idade, escreveu um artigo ao jornal Folha de S. Paulo falando sobre a emoção que sentia todas as vezes que cruzava os batentes do Gantois. “A emoção cresce quando atravesso o salão de festas e chego às salas do museu, do Memorial de Menininha do Gantois. Aqui era o quarto pobre, simples, limpo e acolhedor. A cama não era um leito de enferma, era um trono de rainha. Apoiada nos travesseiros, o busto levantado na animação da conversa, o rosto concentrado no jogo dos búzios, no instante da adivinhação, Menininha do Gantois personificava a verdade do Brasil, de um Brasil mais profundo e mais belo, situado além da corrupção, da injustiça, da violência, da mentira, das pequenezes, da delação transformada pelos pobres homens da baixa política em suprema virtude nacional. Ai, mãe Menininha, acode-nos nesta hora de quase desespero, dá-nos o alimento da confiança e do sonho”.
Fonte: Correio da Bahia