Como viviam os ‘escravos da religião’, que foram abolidos antes dos demais no Brasil

Edison Veiga

Trabalhadores escravizados perfilados carregando enxadas e cestos para o trabalho no campo, observados por feitor. Litografia de Fréderic Sorrieu sobre foto de Victor Frond
Mosteiros e conventos tinham pessoas escravizadas que eram obrigados a professar a fé católica, participando de missas, momentos de orações e recebendo os sacramentos

As grandes instituições religiosas do Brasil colonial e imperial tiveram negros escravizados — e muitos. Pesquisas recentes apontam para um número de escravos muito acima da média do que havia nas grandes propriedades rurais, práticas de incentivo à procriação para aumentar a quantidade de mão de obra e até mesmo uma tabela de preços para quem quisesse comprar a alforria — com critérios específicos para precificar cada ser humano.

Os escravizados mantidos por mosteiros e conventos também eram obrigados a professar a fé católica, participando de missas, momentos de orações e recebendo os sacramentos.

Os que se rebelavam quanto à conversão costumavam ser punidos com castigos “de forma exemplar” ou seja, com intensidade suficiente para convencer os demais a não repetir gestos de desobediência.

De quebra, a luta pela aquisição de liberdade — ou seja, a compra de uma carta de alforria — costumava ser mais difícil para um escravo de ordem religiosa do que para alguém que estivesse sob o jugo de um senhor leigo.

Por outro lado, a libertação dos escravizados por mosteiros e conventos ocorreu 17 anos antes da assinatura da Lei Áurea, em 1871.

“Escravos da religião”

Autor do recém-lançado livro Escravos da Religião (Ed. Appris), pesquisador na Universidade Federal Fluminense (UFF) e idealizador do podcast Atlântico Negro, o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco revira arquivos da Ordem de São Bento desde 2014.

O material foi tema de sua iniciação científica, de sua monografia de conclusão de curso, de seu mestrado e, agora, está sendo esmiuçado em seu doutorado.

“Uma das principais descobertas foi o próprio termo ‘escravos da religião'”, conta ele.

“Não foi um termo que eu criei. É o termo na época que encontrei em livro de batismos. Foi um choque para mim.”

Na ocasião, ele estava analisando os registros dos nascidos no século 19 em propriedade rural mantida pelos beneditinos na Baixada Fluminense, a Fazenda São Bento de Iguassú.

“Na hora de qualificar os pais, o monge não os qualificava como ‘escravos da Ordem de São Bento’, mas sim como ‘escravos da religião’.”

Para o pesquisador, residia aí uma diferença fundamental entre o modo de vida dos escravos mantidos por instituições religiosas: o fato de o senhor não ser uma pessoa, mas sim uma entidade.

“Parece simples, mas não é. A situação geral da escravidão no Brasil é de escravos privados, de senhores leigos. No caso dos ‘da religião’, eles não pertenciam a um monge específico, eram de propriedade coletiva. E isso teve repercussões na vida dessas pessoas para sempre, porque influenciava na forma, no dia a dia deles”, diz o historiador.

Franco ressalta que o cotidiano desses negros escravizados estava “regulado” pelos hábitos religiosos do catolicismo e da vida monástica.

“Por mais que a sede dos religiosos estivesse no centro do Rio e a fazenda na Baixada Fluminense, sempre havia um monge cuidando de lá. Era o chamado padre fazendeiro”, contextualiza.

“Ele fazia o trabalho espiritual: batizava as pessoas, casava-as, sepultava-as. Os beneditinos eram um tipo de senhor que conhece muito bem sua escravaria, anotando tudo em muitos detalhes.”

“Os monges conheciam cada momento, cada fase da vida dos seus escravizados. Por mais que as propriedades fossem enormes, eles tinham o controle administrativo sobre aquelas pessoas, ao contrário dos senhores leigos, que muitas vezes tinham um contato muito pequeno com os escravizados”, compara.

“Isso dava (aos religiosos) um poder muito grande. Ser ‘escravo da religião’ significava ter sua vida controlada por uma instituição religiosa”, acrescentou Monteiro Franco.

Escravos participam da festa de Santa Rosália. “Fête de Ste. Rosalie, Patrone des nègres”. Gravura contida na obra “Voyage pittoresque dans le Bresil”, de Johann Moritz Rugendas e M. de Golbery, 1835.
Em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil escravizados

E não era um rebanho pequeno para ser controlado. De acordo com as pesquisas de Franco, quando os religiosos emanciparam seus escravos, em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil escravizados.

“Eram três as principais ordens religiosas escravistas do Brasil: os jesuítas, os beneditinos e os carmelitas. Em menor escala, os franciscanos também”, elenca.

A primazia da Companhia de Jesus foi até o século 18. Em 1759, contudo, os jesuítas foram expulsos do Brasil.

E aí os beneditinos assumiram essa posição. Durante o século 19, período analisado pela pesquisa de Franco, a Fazenda de Iguassú costumava ter um número constante de cerca de 130 escravos.

“Destoava muito das outras fazendas da região, em que havia em média 10 escravos por senhor”, afirma o pesquisador.

Mas essa propriedade não era a maior das beneditinas. Em Jacarepaguá, a fazenda dos religiosos tinha mais de 300 escravos. Em Campos dos Goitacazes, 700.

“E essas são só as três maiores propriedades dos monges de São Bento”, diz Franco. “É muita gente. Era a principal ordem escravista do Brasil. Eu nem considero a Ordem de São Bento uma grande proprietária [de escravos]. Era uma megaproprietária, estava acima dos grandes proprietários, era a elite da elite.”

Incentivo à gravidez

Uma maneira de garantir a abundância de mão de obra escrava era o incentivo que os monges davam para que as escravizadas tivessem muitos filhos.

“As mulheres que procriavam pelo menos seis filhos conseguiam privilégios, tais como não realizarem trabalhos ‘penosos'”, conta o historiador Robson Pedrosa Costa, autor do livro Os Escravos do Santo (Editora UFPE) e professor no Instituto Federal de Pernambuco e na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

A partir de 1866, os benefícios às mães de pelo menos seis filhos passaram a ser a liberdade gratuita — desde que elas “estivessem devidamente casadas”, pontua o historiador.

Mapa que situa a propriedade dos beneditinos na Baixada Fluminense
Mapa que situa a propriedade dos beneditinos na Baixada Fluminense

Para os monges senhores de escravos, religião era uma coisa, negócios eram outra. Pelo menos é o que fica claro em outro achado do historiador Monteiro Franco: nos registros de batismo, a maior parte das crianças era registrada como sendo filho de mãe solteira.

Havia uma razão econômica para isso. “Até pouco tempo atrás se acreditava que as ordens religiosas de maneira geral incentivavam o casamento por causa do valor cristão do matrimônio e também para um fator de incentivo da reprodução da comunidade escrava, do ponto de vista senhorial”, pontua o pesquisador. “Mas o que encontrei foi a maior parte das mulheres como mães solteiras.”

Segundo ele, isso não significa que essas mulheres não tivessem relacionamento estável ou que vivessem na promiscuidade.

A questão chave estava na propriedade da criança que nasceria dessa gravidez. Em caso de mãe e pai sacramentalmente unidos, poderia haver alguma discussão se o filho pertenceria ao senhor da mãe ou do pai.

Então, os beneditinos preferiam não oficializar relações estáveis quando as mulheres de sua fazenda tinham homens de fazendas vizinhas.

Quando ambos eram da mesma propriedade, aí sim, o sacramento do matrimônio era concedido.

Tais condutas fizeram com que os beneditinos conseguissem manter um grande número de escravos no século 19, mesmo com a dificuldade, para os latifundiários escravocratas, decorrentes da Lei Eusébio de Queirós — que, a partir de 1850, proibiu o tráfico negreiro.

“Estas instituições [religiosas] construíram, ao longo dos séculos, grandes corporações, muito semelhantes a grandes empresas pautadas em um complexo sistema organizacional”, afirma Costa.

“No caso dos beneditinos, foi possível entender que a instituição foi capaz de construir um sistema de gestão eficiente e duradouro, que garantiu o fornecimento de escravos para as suas propriedades sem recorrerem ao tráfico.”

“Claro que eles compraram escravos no século 19, mas foram poucos”, completa o professor.

A estratégia consistia em incentivar a procriação e a tentativa de manutenção das famílias. “Eles evitavam ao máximo vender seus escravizados, principalmente a separação de famílias, uma instituição sagrada para os monges. Apenas os cativos considerados ‘incorrigíveis’ deveriam ser vendidos. Mas eles foram poucos. As famílias escravizadas eram extensas e duradouras. Isso garantia a perpetuação do quantitativo de escravos”, explica Costa.

Alforrias

Prática relativamente comum entre escravizados no Brasil, a compra da liberdade era mais difícil para um “escravo da religião”. Enquanto no caso daquele que servia a um senhor leigo bastava convencê-lo — com acordos e, muitas vezes, um valor em dinheiro — no caso dos monges era preciso passar por um processo formal.

Capa de 'Escravos da Religião', livro de Vitor Hugo Monteiro Franco
O historiador Vitor Hugo Monteiro Franco revira arquivos da Ordem de São Bento desde 2014 – foi assim que encontrou o termo “escravos da religião”

Aquele que pleiteava a alforria precisava fazer uma petição aos religiosos. Não havia negociação direta. “Estamos falando de uma propriedade institucional”, lembra o historiador Franco. “Não era simples. Os monges liam a petição e colocavam para votação, usando favas pretas para marcar as negativas e favas brancas para sinalizar positivo.”

A partir da década de 1850, a Ordem de São Bento criou uma tabela de preços para casos de alforria. Pelo documento, o preço dos escravizados variava conforme saúde, idade e sexo.

“O valor ia aumentando de acordo com a idade até a fase mais produtiva. A partir da adolescência, eles passam a entender que um homem pleno de saúde vale mais do que uma mulher”, explica Franco.

“Esse documento mostra com todas as letras qual a posição de um senhor de escravos: transformar as pessoas em commodities”, define ele.

Violência e trabalho

Embora haja uma corrente que acredite que a escravidão impetrada por religiosos fosse mais branda do que a conduzida por senhores leigos, pelos valores cristãos supostamente respeitados, Franco não compactua com essa ideia. Primeiramente porque é enfático ao dizer que a privação da liberdade a que um escravo está sujeito já é, por si só, uma grande violência.

Além disso, ele encontrou registros que atestam atos de crueldade. “Tem um caso, em um fazenda de Cabo Frio, também dos beneditinos, em que dois monges foram presos depois de matarem, de tanto espancar, um escravizado. Isso no século 18”, conta ele. “Olha o nível da violência.”

Ele também se deparou com relatos de fugas em que o escravo, uma vez capturado, era submetido a um “castigo exemplar”. O mesmo acontecia para quem não demonstrasse seguir a fé católica.

“Há um registro de uma visitação realizada por um monge (encarregado de vistoriar os trabalhos do padre fazendeiro), que dizia que era bom que o mesmo não descuidasse do espiritual dos escravos, para ver se eles estavam seguindo os preceitos do cristianismo”, aponta Franco.

“E, verificando que não estivessem seguindo, que fossem punidos exemplarmente. Se não se redimissem, que fossem vendidos.”

Mas em que trabalhavam os “escravos da religião”?

Boa parte deles fazia um trabalho semelhante a qualquer outro escravo de propriedades rurais. As instituições religiosas tinham muitas terras e nelas cultivavam cana de açúcar e outros insumos valiosos para a economia da época. Quem fazia esse trabalho era a mão de obra escrava.

No caso dos religiosos, contudo, havia também muitos escravos com trabalhos especializados. Carpinteiros, ferreiros, oleiros, sapateiros, boticários, enfermeiros. “Além daqueles que serviam os monges no claustro: botavam a comida na mesa, tocavam o sino da capela, seguravam o livro na hora da missa, e por aí vai”, diz o historiador Franco.

Nesse sentido, a Ordem de São Bento investiu em capacitação. Como eles tinham grandes propriedades com necessidades específicas, passaram a treinar os escravos que pareciam mais aptos a trabalhos específicos. “Para eles, era melhor fazer isso do que pagar um sujeito livre para desempenhar esses papéis”, afirma.

Esses que tinham ofícios especializados não eram inimputáveis a sofrerem castigos. “Encontrei um registro de um monge que se dedicava a ensinar ferraria a escravos. E ele era tão violento que acabou sendo deslocado de posição”, exemplifica Franco.

Desempenhar essas funções especiais, por outro lado, conferia prestígio dentro da comunidade escrava. E muitos desses profissionais acabavam conseguindo fazer trabalhos “por fora” e, assim, juntar dinheiro para, no futuro, comprar a alforria.

Abolição prematura

As ordens religiosas libertaram seus escravos ao longo de 1871, ou seja, 17 anos antes da Lei Áurea. A primeira instituição a fazer isso foi a Ordem de São Bento. Aos poucos, os beneditinos foram seguidos pelos demais religiosos.

Segundo os pesquisadores, esse movimento era resultado de um embate da Igreja Católica com o Estado.

“Havia uma relação de tensão entre Estado e as ordens religiosas”, pontua Franco. “Estava ocorrendo um embate político em que cada vez mais a classe política e outros setores da elite brasileira acreditavam que os religiosos tinham propriedades demais, escravizados demais e eram improdutivos. Por outro lado, o Estado via a chance de se apropriar das propriedades dos religiosos.”

Ao libertar os escravos na mesma época da promulgação da Lei do Ventre Livre, as instituições católicas geraram uma comoção nacional.

“A abolição não significa simplesmente a questão humanitária por trás da liberdade do indivíduo, mas também uma questão de ordem econômica sobre aqueles que você teria de estar empregando”, afirma o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“O custo de manutenção desses indivíduos, em geral era muito mais dispendioso ter os escravos do que importar pessoas de fora e pagar salário”, acrescenta.

O historiador Costa lembra que desde a Independência, em 1822, “várias vozes começaram a sugerir que as ordens religiosas eram instituições inúteis e péssimas administradoras de seus bens”.

“Quando os debates sobre a abolição se acirraram a partir de 1865, novamente as ordens, consideradas grandes escravistas, foram colocadas na berlinda. Uma lei de 1869 instituiu que as instituições religiosas deveriam libertar todos os seus escravos em um prazo de 10 anos. Até lá, poderiam libertá-los ou criar contratos de prestação de serviço por tempo determinado”, detalha o historiador.

“Prevendo uma maior intervenção do Estado e do Parlamento, a Ordem de São Bento do Brasil já havia se antecipado, decretando a liberdade de todo as crianças nascidas a partir do dia 3 de maio de 1866”, diz ele.

Essa medida teve impacto nas autoridades. O imperador Dom Pedro Segundo (1825-1891) presenteou o então abade geral com uma caixa de ouro cravejada de diamantes. Já o deputado Tavares Bastos (1839-1875), voz abolicionista, declarou que o gesto era “um ato generoso e solene” — e que deveria ser seguido pelas demais instituições religiosas.

Em 1871 veio a libertação total dos “escravos da religião”.

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