A vida nos assentamentos jesuítas no século 16, chamados de ‘triunfo da humanidade’
O filósofo iluminista Voltaire (1694-1778), tipicamente um grande crítico das religiões organizadas, estava tão apaixonado por um período extraordinário de 159 anos da história da América do Sul que se sentiu compelido a descrevê-lo assim:
“O assentamento no Paraguai, realizado apenas pelos (jesuítas) espanhóis, parece, em alguns aspectos, um triunfo da humanidade. Parece expiar as crueldades dos primeiros conquistadores. Os quakers na América do Norte e os jesuítas na América do Sul… eles deram uma nova luz ao mundo.”
Esse “triunfo da humanidade” foram as missões fundadas pelos jesuítas na vasta região do Paraná, conhecidas como “reduções”, que no castelhano dos séculos 16 e 17 significava “comunidades”.
Voltaire não foi o único a destacar seus méritos.
Outro expoente do Iluminismo, o filósofo francês Montesquieu (1689-1755), as definiu como “a cura de uma das mais terríveis feridas infligidas por homens a outros homens”.
E, mais tarde, Paul Lafargue (1842-1911), genro de Karl Marx, as declarou como o primeiro estado socialista de todos os séculos.
Pode ser, mas com uma origem profundamente arraigada na religião.
Opção menos indigesta
Quando os jesuítas chegaram às terras dos guarani, que já pertenciam à coroa espanhola, havia se passado um século desde aquele “encontro de culturas” promovido pela invasão colonialista.
Os indígenas que viviam nessas terras, que hoje fazem parte dos atuais Paraguai, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Uruguai, ficaram com apenas duas opções:
1) Trabalhar sob o sistema de encomiendas para proprietários de terras espanhóis, que os exploravam em troca de “salvá-los” por meio do cristianismo, “educá-los” para falar espanhol e “protegê-los” dos inimigos.
Ou…
2) Correr o risco de serem perseguidos por bandeirantes, ou caçadores de escravos, também chamados de paulistas (por estarem baseados em São Paulo, a fronteira nessa época), que frequentemente organizavam incursões para capturar indígenas e vendê-los como escravos.
Mas os membros da Companhia de Jesus, uma ordem mais nova do que o Novo Mundo em que haviam chegado, traziam consigo outras ideias.
A ordem dos jesuítas havia recebido a bênção formal do papa Paulo 3º em 1540 e seus padres foram enviados aos confins do mundo então conhecido para pregar o evangelho cristão.
Eles chegaram à América do Sul em 1549, com a intenção de implementar a bula pontifícia de 1537 do mesmo papa, Sublimis Dei, que proibia expressamente a escravidão dos povos indígenas e buscava resguardar sua liberdade e direito à propriedade.
Com isso em mente, em 1604 foi formada uma nova província jesuíta chamada Paraquaria para dar início ao trabalho missionário entre os índios guarani, que viviam em pequenas aldeias sob a autoridade de caciques.
2 jesuítas, 10 caciques
A primeira incursão dos jesuítas na região de selva do Rio Paraná foi empreendida em dezembro de 1609 por dois padres, Marcelo de Lorenzana (1565-1632), sacerdote superior em Assunção, e seu jovem assistente, Francisco de San Martín.
Um cacique local, Arapizandú, que se mostrou disposto a aprender sobre o evangelho cristão, convidou os dois jesuítas para celebrar as missas de Natal em uma cabana rústica em sua aldeia.
Poucos dias depois, outros nove caciques da região chegaram ao local. Eles souberam que os jesuítas estavam prestes a fundar uma “redução”, o que parecia ser uma opção menos indigesta do que as que eles tinham.
Embora isso não signifique que todos os receberam bem.
O padre jesuíta, missionário e escritor peruano Antonio Ruíz de Montoya, autor do livro Conquista espiritual: feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape, relata, por exemplo, que:
“Os xamãs lideraram a resistência contra os jesuítas. Os demônios trouxeram esses homens até nós, dizia um desses líderes ao seu povo, porque eles querem com novas doutrinas nos tirar o bom e velho modo de vida de nossa antepassados, que tiveram muitas mulheres, muitas criadas e liberdade para escolhê-las ao seu gosto e agora querem que nos atemos a uma única mulher.”
No entanto, em 1610, foi criada a primeira redução jesuíta de San Ignacio Guasu em território guarani.
O esforço teve tanto sucesso que os missionários jesuítas fundaram muitas outras reduções entre 1610 e 1707.
Destas, um total de 30 acabaram sobrevivendo à extensa destruição causada pelas repetidas incursões de bandeirantes, que obrigaram algumas reduções a ter que mudar de lugar várias vezes.
Sistema colaborativo
Uma redução geralmente compreendia dois jesuítas e até 5 mil homens, mulheres e crianças guaranis; quando uma delas crescia muito, se formava um novo assentamento.
Embora a maioria dos guarani que viviam nas reduções buscasse o batismo cristão, nenhum deles era obrigado a ser batizado.
A genialidade das reduções estava no desenvolvimento de um empreendimento jesuíta-guarani genuinamente colaborativo.
Os jesuítas nunca teriam tido sucesso em seus esforços sem o conhecimento dos guarani, que eram capazes de identificar locais adequados para novos assentamentos com fornecimento de água, pedras para construção e terras férteis para cultivo abundantes; e os guarani não poderiam ter prosperado materialmente sem a perícia técnica dos jesuítas, que incluía o trabalho de ferreiro.
Apenas os jesuítas mais capazes foram selecionados para esse trabalho missionário, e as candidaturas para cargos em Paraquaria excederam em muito as vagas disponíveis.
Os que eram enviados à América do Sul aprendiam rapidamente a língua guarani e, liderados por homens como o padre Ruíz de Montoya, publicaram os primeiros dicionários guaranis, ensinando os indígenas a ler e escrever seu idioma, que até então só era oral.
Além dos altos índices de alfabetização em guarani, segundo alguns historiadores, os moradores das reduções tinham bons conhecimentos de latim, espanhol, alemão, aritmética e música.
Em volta da praça
Embora cada redução tivesse um desenho diferente, todas seguiam um padrão comum: o assentamento era sempre baseado em uma praça central principal, que tinha em uma das extremidades uma igreja enorme capaz de abrigar toda a comunidade, um cemitério comunitário adjacente e uma escola ao lado da qual os jesuítas viviam.
Nas oficinas perto da igreja, cada redução desenvolvia suas próprias áreas de especialização, incluindo trabalhos em ferro e prata, carpintaria, tecelagem e fabricação de instrumentos musicais.
Em três lados da praça havia moradias individuais para famílias de guarani. Cada redução tinha um koty guasu ou abrigo separado para viúvas, órfãos e mulheres solteiras.
Tudo isso era construído no estilo barroco guarani, único barroco nativo da América.
Água encanada e saneamento básico estavam disponíveis para toda a comunidade, e todas contavam com um hospital.
Prosperidade e inveja
A justiça estava nas mãos do cacique, que ocupava o cargo de parokaitara ou poro puaitara, ou ‘aquele que dá as ordens’ em guarani.
Notavelmente, não havia pena de morte, então é provável que tenha sido a primeira sociedade ocidental a aboli-la, considerando que a primeira a fazer isso na Europa foi o Ducado da Toscana em 1786.
Abaixo do cacique ou corregedor, estavam os prefeitos ou vírayucu — que significa ‘o primeiro entre aqueles que carregam o bastão’ —, que zelavam pelos bons costumes, punindo os preguiçosos e os vagabundos.
É que se mantinha um equilíbrio cuidadoso entre trabalho e lazer, com jornadas de trabalho comunitárias de 6 horas, metade da prevista no sistema de encomiendas, mas muito mais produtivas.
Para isso, os indígenas deviam marchar ao ritmo de um dispositivo trazido da Europa, o relógio mecânico, que ditava o que antes apenas seus costumes e a natureza indicavam, desde quando acordar até quando voltar a descansar.
Cada redução operava uma economia de troca e, com muitos bens em comum, era uma comunidade autônoma e autossuficiente.
Havia a propriedade privada — lotes que pertenciam aos indígenas e proporcionavam a eles sustento familiar — e a terra de Deus — comunal, em que todos trabalhavam em turnos e cujos lucros eram investidos em encargos, benfeitorias ou no fomento da economia da redução.
Por meio de métodos de cultivo eficientes, a variedade e o volume dos produtos cultivados em uma redução, incluindo a erva-mate, e o número de gados e cavalos criados nelas frequentemente excedia a norma padrão.
Em tamanho e escala, as construções de muitas das 30 reduções, que juntas chegaram a abrigar mais de 120 mil guaranis, se equiparavam aos grandes mosteiros da Europa medieval.
Tantas conquistas, que incluíam a produção de magníficas esculturas, arte e música barrocas guaranis, despertaram a inveja de certos colonizadores que queriam a expulsão dos jesuítas e a imposição do controle colonial.
O começo do fim
Mas por mais obedientes e bem-sucedidos que fossem, o destino dos guarani que viviam nas reduções nunca esteve em suas mãos. Estava ligado ao dos jesuítas e à mercê da política internacional.
A coroa espanhola se beneficiou durante várias décadas da existência de missões que serviam de barreira à expansão portuguesa, e contribuiu inclusive para armar e treinar uma milícia guarani para se proteger das incursões de seus vizinhos do norte.
No entanto, quando chegou a hora de colocar as coisas em ordem e regularizar as fronteiras, Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Madri de 1750.
Sete reduções a leste do rio Uruguai foram transferidas para o território português; seus 29 mil habitantes e os jesuítas receberam ordem para se mudar para a costa oeste.
Os jesuítas obedeceram, mas os guarani se revoltaram. E aquela milícia que a coroa espanhola havia patrocinado teve que enfrentar os exércitos de ambos poderes coloniais.
A guerra sangrenta culminou em 1756 com a Batalha de Caiboaté, na qual foram mortos mais de 1,5 mil guaranis, incluindo seu carismático líder, Sepe Tiaraju.
As reduções em território espanhol sobreviveram. Mas, novamente, seu destino foi interrompido por acontecimentos alheios à sua vontade.
Ao longo dos anos, a Companhia de Jesus foi desde o braço direito dos papas na luta da Igreja contra o protestantismo até fonte de eruditos e teólogos brilhantes, assim como de missionários que difundiram a fé na Ásia e nas Américas do Norte e do Sul.
Em meados do século 18, os jesuítas eram um exército espiritual formidável, que contava com cerca de 23 mil membros, tinha 800 residências, 700 colégios e universidades e supervisionava 300 missões. Além disso, eles eram os confessores dos governantes católicos de toda a Europa e educavam tanto os filhos dos nobres e da crescente classe média, como das massas.
Dado seu sucesso, eles tinham muitos (e poderosos) inimigos, que os acusavam — justa e injustamente — de todos os tipos de delitos.
Um dos seus principais inimigos foi Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal em Portugal, que culpou os jesuítas pela rebelião dos guarani no novo território português e iniciou uma campanha para acabar com eles.
Ele os acusou de estarem por trás de uma conspiração para assassinar o rei em 1758; os expulsou de Portugal; os acusou de terem estabelecido um reino independente na América do Sul, onde, segundo ele, haviam escravizado os índios e enriquecido com seu trabalho. O próprio Voltaire repetiu essas histórias em seu romance Cândido.
As acusações não foram ignoradas. Outros, incluindo colonizadores das cidades vizinhas às reduções, amargurados ao vê-los prosperar mais, inventaram rumores semelhantes.
Vários governos começaram a tomar medidas ativas contra a Companhia de Jesus, incluindo o rei Carlos 3º, que a baniu da Espanha e de suas colônias no exterior em 1767.
A partir daí, sem o ímpeto dos jesuítas, as reduções foram gradualmente abandonadas, e alguns guarani começaram a se deslocar para áreas urbanas.
Epílogo
Em 21 de julho de 1773, o papa Clemente 14 suprimiu a Companhia de Jesus.
As fabulosas construções e obras de arte que os guarani haviam criado nessas terras pareciam destinadas a ser nada mais do que um mero resquício até ter início um esforço de recuperação e conservação no século 20.
Hoje, as impressionantes ruínas das reduções são uma recordação perene de algo que, apesar de seus defeitos, foi um “triunfo da humanidade”.
Um triunfo que a Unesco declarou Patrimônio da Humanidade.