O sumiço de 130 crianças alemãs por trás da lenda mágica do flautista de Hamelin
Raphael Kadushin
Todas as manhãs, antes de ir para o trabalho, Michael Boyer veste uma meia-calça colorida, amarra sua capa vermelha, pega sua flauta e sai pelas ruas medievais de Hamelin, uma cidade de 60 mil habitantes na região da Baixa Saxônia, na Alemanha.
Ele repete esse ritual há 26 anos.
“As pessoas às vezes me confundem com um super-herói, bobo da corte ou Robin Hood”, diverte-se.
Não é à toa que se tornou uma figurinha fácil no Instagram de qualquer turista.
Ele foi escolhido para dar vida ao “filho adotivo” favorito (pelo menos comercialmente) – e ao mesmo tempo, mais odiado – da cidade.
Responsável por saudar grupos de turistas e dignitários, Michael realiza tours pela cidade e incorpora o personagem da lenda que atrai a maioria dos viajantes até aqui.
Originada como parte do folclore medieval, a história inspirou um verso de Goethe, Der Rattenfänger (O Apanhador de Ratos, em tradução livre) uma história dos Irmãos Grimm, O Flautista de Hamelin; e um dos poemas mais conhecidos do poeta inglês Robert Browning, de mesmo nome.
E embora cada escritor tenha dado seu toque à narrativa, o enredo básico permaneceu o mesmo: o da cidade de Hamelin que contrata um flautista para livrá-la da praga de ratos.
Seguindo as notas hipnóticas da flauta mágica do caçador de ratos, os roedores atravessaram educadamente os portões da cidade em direção à sua suposta ruína.
Mas eles não foram os únicos atraídos por sua música.
Quando a cidade se recusou a pagar o flautista por seus serviços, ele colocou em prática seu plano de vingança, atraindo as crianças de Hamelin com sua melodia.
Em transe, meninos e meninas seguiram o flautista para fora da cidade e simplesmente desapareceram.
E não é só a lenda que parece ter resistido ao tempo, a cidade de Hamelin até hoje parece fazer parte de um conto de fadas.
O tour de Boyer leva os visitantes para passear pelas fileiras de casas no estilo tradicional típico alemão conhecido como enxaimel, na qual as paredes são montadas com vigas de madeira encaixadas entre si em posições horizontais, verticais ou inclinadas, com espaços preenchidos por tijolos ou outros materiais.
Há mansões burguesas do século 16 decoradas com frontões góticos, e construções exuberantes que mais parecem um bolo de casamento, oferecendo belos exemplos da arquitetura do final do Renascimento, típica do noroeste da Alemanha, com gárgulas a espreitar e esculturas em madeira policromada de cores vivas.
No entanto, tudo isso é apenas pano de fundo para a verdadeira indústria artesanal da cidade, que capitaliza tudo o que tem a ver com o flautista.
Os restaurantes locais preparam um prato de “cauda de rato” exclusivo, feito de fatias finas de carne de porco, enquanto as padarias vendem pães e doces na forma do roedor.
O Museu Hamelin apresenta uma recriação da música do flautista; atores locais encenam uma peça ao ar livre durante o verão; e as lojas vendem recordações da cidade inspiradas em ratos.
Se quiser, você pode voltar para casa com a mala cheia de camisetas, ímãs de geladeira, canecas e flautas do Flautista de Hamelin.
No entanto, o que poderia se tratar de uma curiosidade divertida esconde algo mais profundo – e sugere por que a lenda ainda vive não apenas em Hamelin, mas no folclore da região.
De certa forma, o conto toca num medo primitivo, quando notamos que o flautista é uma versão de um bicho-papão universal que continua a nos assombrar.
Os pais sempre temem a perda de seus filhos. Todos os dias, em alguma parte do mundo, uma criança desaparece.
O flautista é, em última análise, a face da morte.
Embora a história evoque um medo universal, ainda ressoa mais alto em Hamelin – e o tour do flautista sugere por quê.
Na verdade, a grande surpresa do passeio não é tanto a paisagem urbana lindamente preservada, mas a sugestão de que o flautista é muito mais do que apenas um conto de fadas.
Os irmãos Grimm e Robert Browning podem ter transformado a lenda em arte, mas parece que a história é baseada em um incidente histórico que realmente aconteceu.
A prova está gravada nas próprias paredes de Hamelin.
Uma placa na fachada de pedra da chamada casa do flautista, residência privada no estilo enxaimel datada de 1602, evidencia o mistério.
“Em 26 de junho de 1284, no dia de São João e São Paulo, 130 crianças nascidas em Hamelin foram retiradas da cidade por um flautista vestido com roupas multicoloridas. Depois de passar pelo Calvário perto de Koppenberg, desapareceram para sempre”, diz a inscrição.
A inscrição não é o único indício.
Uma anotação nos registros da cidade de Hamelin, datada de 1384, lamenta que “já se passaram 100 anos desde que nossas crianças partiram”.
O vitral da igreja de São Nicolau da cidade, destruído no século 17 mas descrito em relatos anteriores, ilustrava a figura do flautista com várias crianças fantasmagóricas de branco.
Além disso, o manuscrito de Luneburg do século 15, junto com cinco versos de memória histórica, alguns em latim e outros em alemão da Idade Média, fazem referência a uma história semelhante de 130 crianças ou jovens que desapareceram em 26 de junho de 1284, seguindo um flautista até um lugar chamado Calvário ou Koppen.
E assim o flautista, mais do que uma lenda, se torna símbolo de um grande mistério histórico.
O que aconteceu com as crianças desaparecidas de Hamelin?
Mestre da sedução, o fascinante caçador de ratos é agora o centro das atenções de vários historiadores que investigam o que aconteceu exatamente na cidade em 26 de junho de 1284.
As teorias são várias, segundo Wibke Reimer, coordenador de projetos do Museu Hamelin, que organizou uma exposição especial com foco no alcance global da lenda do flautista.
Uma das principais teses atuais sugere que os jovens da cidade fizeram parte de uma onda de migração de alemães para a Europa Oriental provocada pela recessão econômica.
“Nesse cenário, o flautista desempenhava o papel do chamado localizador ou recrutador. Eles eram responsáveis por organizar as migrações para o leste, e dizem que usavam roupas coloridas e tocavam um instrumento para atrair a atenção dos colonos (clientes em potencial)”, afirma Reimer.
Embora alguns historiadores acreditem que os jovens migraram para a Transilvânia, a teoria do linguista alemão Jürgen Udolph é a mais aceita.
“Ele sugere que as regiões ao redor de Berlim seriam os locais mais prováveis, área que agora forna o leste da Alemanha”, explica Reimer.
“E ele baseia sua teoria em evidências de nomes nesses lugares.”
De fato, Udolph descobriu que os sobrenomes mais comuns em Hamelin naquela época apareciam com surpreendente frequência nas áreas de Uckermark e Prignitz, perto de Berlim, que ele indica como sendo o centro da migração.
A teoria também é reforçada por evidências de que a região, então recém-libertada dos dinamarqueses, estava pronta para a colonização alemã.
Há ainda outras hipóteses mais fantasiosas. Alguns historiadores sugerem que a lenda reflete a Cruzada das Crianças do século 13, parte da onda de cruzadas medievais com o objetivo de recuperar a Terra Santa.
E há quem argumente que esses jovens foram perdidos para a Peste Negra, embora as datas não coincidam.
Mais intrigante é a teoria que faz uma associação com o fenômeno medieval da “praga da dança”, um surto de dança coletiva, desencadeado por uma sucessão de pandemias e desastres naturais.
Conhecida como Dança de São Vito, a praga da dança teria aparecido na Europa continental no século 11.
Era uma forma de histeria em massa.
A dança podia se alastrar de um indivíduo para grandes grupos, e todos padeciam de uma compulsão incontrolável de dançar loucamente, às vezes por semanas, geralmente pulando e cantando. Às vezes, alucinando até a exaustão e, ocasionalmente, até a morte – como um pião que não é capaz de parar de girar.
De fato, no século 13, houve um surto de uma espécie de febre da dança ao sul de Hamelin, na cidade de Erfurt, onde foi documentado que um grupo de jovens girava descontroladamente enquanto se afastava dos limites da cidade, e acabou a 20 km de distância em um povoado vizinho.
Algumas crianças, sugere uma crônica, faleceram logo em seguida, literalmente dançaram até morrer, e as que sobreviveram ficaram com tremores crônicos.
Talvez, teorizam alguns, Hamelin tenha testemunhado uma praga semelhante, na qual, figurativamente, os jovens dançavam ao som da melodia do flautista.
Mas todas essas teorias deixam escapar um elemento específico sobre o mistério de Hamelin.
“Não explicam a data específica citada em que as crianças desaparecem, e o sentimento local de trauma”, observa Reimer.
“Aconteceu algo que as autoridades encobriram? Algo tão traumático que se transmitiu oralmente durante tanto tempo na memória coletiva do povo, durante décadas e até séculos?
A data do desaparecimento das crianças que está registrada em toda a documentação local é 26 de junho – mesmo dia das celebrações pagãs do solstício de verão.
E o fato de a documentação também enfatizar que os jovens seguiram o flautista até o Koppen, normalmente traduzido como “montanhas”, sugere outra hipótese.
“Havia regiões na Alemanha onde a chegada do verão era celebrada acendendo fogueiras nas montanhas”, explica Reimer.
Tudo isso leva a uma leitura particularmente macabra da lenda do flautista.
Talvez o flautista, símbolo de um xamã pagão, estivesse conduzindo os jovens de Hamelin às festividades de verão quando a facção cristã local, na esperança de consolidar a conversão da região, atacou o grupo e promoveu um verdadeiro massacre.
Uma teoria menos sangrenta é que talvez as crianças tenham sido levadas para mosteiros locais.
No entanto, se o conto sugere uma possível tragédia histórica, ele também oferece uma redenção artística.
“A história do flautista é conhecida em pelo menos 42 países e 30 idiomas, talvez mais”, diz Reimer. “E aparece na arte, na literatura e na música. O flautista é uma herança compartilhada por muitas pessoas, e essa herança cultural nos conecta.”
Em última análise, o flautista pode ter fragmentado um povoado, mas acabou unindo uma comunidade muito maior.