100 anos da BCG: o misterioso cientista uruguaio que trouxe a vacina contra a tuberculose ao Brasil
André Biernath
Ninguém sabe onde e quando ele nasceu. A data e local da morte também são desconhecidos. Não há sequer uma foto de seu rosto.
Mesmo assim, Julio Elvio Moreau figura na lista dos personagens mais importantes da saúde pública brasileira: foi ele quem, ainda na década de 1920, trouxe ao nosso país as primeiras culturas de bactérias para a fabricação da vacina BCG, que nos protege contra a tuberculose e suas formas mais graves.
A história de como as primeiras doses desse imunizante, que acaba de completar um século de existência, chegaram e foram produzidas no Brasil envolve uma verdadeira aventura em alto-mar: num momento em que as viagens internacionais e os equipamentos científicos eram rudimentares, Moreau teve muito trabalho para que sua preciosa carga não estragasse no meio do caminho.
Mas para entender como essa epopeia virou realidade, é preciso dar alguns passos para trás e compreender o que significou a criação de uma vacina contra uma doença tão perigosa e mortal.
Uma conquista da ciência
Embora a tuberculose seja conhecida há mais de 9 mil anos, o agente causador da doença só foi identificado no século 19.
Em 1882, o médico alemão Robert Koch (1843-1910) publicou os primeiros trabalhos demonstrando que a bactéria Mycobacterium tuberculosis (também conhecida como bacilo de Koch, em homenagem ao seu descobridor) estava por trás da enfermidade, marcada pela destruição progressiva dos pulmões.
Naquele período, a tuberculose era um problema muito grave e frequente. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, uma a cada sete pessoas morria em decorrência das complicações dessa moléstia no final do século retrasado.
Falamos aqui de um período em que os antibióticos nem existiam e os médicos precisavam apelar para tratamentos nada confiáveis (como óleo de fígado de bacalhau ou massagens com vinagre).
Em muitos casos, a única saída era mandar os pacientes para repousar em sanatórios e asilos, que ficavam em cidades mais afastadas e com o clima ameno.
Mas, na virada do século 20, dois cientistas que trabalhavam no Instituto Pasteur, da França, resolveram mudar de uma vez por todas esse cenário.
O médico Albert Calmette (1863-1933) e o veterinário Camille Guérin (1872-1961) levaram 13 anos e fizeram mais de 230 tentativas antes de chegar à fórmula final de uma vacina capaz de frear a tuberculose.
Feito a partir de uma bactéria viva atenuada (a Mycobacterium bovis, que causa tuberculose em bois e vacas), o imunizante recebeu o nome de BCG, sigla para Bacilo de Calmette e Guérin.
O sonho da dupla virou realidade há cem anos: em 1921, uma criança cuja mãe havia morrido de tuberculose alguns dias antes recebeu a primeira dose dessa vacina no Hospital Charité, em Paris.
Travessia cheia de desafios
Nos anos seguintes, Calmette e Guérin resolveram distribuir seu invento para institutos de pesquisa em várias partes do mundo.
E é justamente nessa hora que Julio Elvio Moreau entra em cena: o cientista uruguaio trabalhava no Instituto Pasteur e ficou responsável por trazer o imunizante para a América do Sul em 1925.
Os artigos científicos que revivem essa história destacam que ninguém sabe ao certo o ano de nascimento ou de morte desse personagem histórico, tampouco sua cidade natal.
O médico Luiz Roberto Castello Branco, atual diretor científico da Fundação Ataulpho de Paiva, no Rio de Janeiro, acrescenta que, até hoje, não foram encontrados registros fotográficos de Moreau ou de sua passagem pelo Brasil.
“Nós já procuramos essas informações. Historiadores da Casa de Oswaldo Cruz também tentaram, mas não acharam muita coisa”, atesta.
O que temos à disposição são relatos de que o cientista saiu da França, pegou um navio, cruzou o Atlântico e desembarcou no Rio de Janeiro.
“E podemos imaginar a dificuldade que ele enfrentou durante a viagem”, raciocina Castello Branco.
Na década de 1920, ir da Europa ao Brasil não era tarefa fácil: a embarcação podia levar até 40 dias para completar o trajeto.
E vamos combinar que Moreau levava a tiracolo uma carga preciosíssima. Falamos aqui de culturas de bactérias vivas, que exigem cuidado e atenção constantes.
Castello Branco explica que a BCG ficava armazenada num meio de cultura líquido, numa espécie de “nata” (ou camada mais grossa) que se formava no topo dos recipientes.
Para sobreviver, essas bactérias precisam de estabilidade: se a tal da “nata” é agitada, ela se mistura com as substâncias do vasilhame e perde a consistência. Com isso, os micro-organismos podem morrer.
Em outras palavras, movimentos constantes atrapalhariam a viabilidade das vacinas que seriam produzidas.
“E podemos imaginar o quanto balançava um navio naquela época”, completa o médico.
Outro desafio grande era a manutenção dos meios de cultura, que precisam ser trocados a cada 28 dias.
O cientista uruguaio, portanto, teve que tomar esses cuidados ao longo de toda a viagem, mesmo sem contar com a estrutura de um laboratório.
Chegada no Rio
Apesar de todos os desafios, Moreau cumpriu sua missão e desembarcou no Rio de Janeiro com a carga intacta.
Ele entregou as cepas da BCG e a receita de como preparar a vacina para o médico Arlindo de Assis (1896-1966), que à época trabalhava no Instituto Vital Brazil, em Niterói, e na Faculdade de Medicina da futura Universidade Federal Fluminense.
E aqui há um detalhe curioso: lembra que o Instituto Pasteur mandou amostras do imunizante para vários lugares do mundo?
Como esses materiais eram feitos de bactérias vivas atenuadas, em cada local os micro-organismos sofreram modificações e desenvolveram características próprias.
Em razão disso, cada uma dessas cepas ganhou um nome diferente. Hoje temos, por exemplo, a BCG Connaught, a Pasteur, a Tice…
“Em homenagem ao cientista uruguaio, a versão brasileira recebeu o nome de Moreau-Rio de Janeiro, uma ideia muito cavalheiresca do Arlindo de Assis”, completa Castello Branco.
Com a entrega feita, Moreau parece ter voltado direto para a França, sem passar por outros países. Os motivos que o fizeram encurtar a estadia pelo nosso continente seguem um mistério.
Uma vacina para chamar de nossa
Com os ingredientes e a receita em mãos, Assis começou a trabalhar nos experimentos em território nacional e fez testes em coelhos e bois. Essas pesquisas aconteceram no Instituto Vital Brazil, em Niterói.
Num estágio mais avançado, entre o final da década de 1920 e o início de 1930, o médico transferiu a fabricação e a distribuição do imunizante para a Liga Contra a Tuberculose.
“Essa instituição tinha se formado em 1900 e congregava pessoas da elite carioca, como médicos, advogados e religiosos. Eles se reuniam numa pensão no bairro da Glória e faziam uma série de ações assistenciais de prevenção e tratamento dessa doença”, explica Castello Branco.
Nesse mesmo ano de 1927, a primeira criança brasileira recebeu a BCG, que à época era um líquido administrado por via oral.
E nós sabemos até os nomes dos personagens envolvidos nesse momento histórico: no dia 30 de agosto, o pediatra Almir Rodrigues Madeira (1884-1972) teve o privilégio de aplicar a primeira dose na recém-nascida Therezinha de Jesus Lopes.
Em 1936, a Liga Contra a Tuberculose mudou de nome e passou a se chamar Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), em homenagem a um de seus fundadores.
Entre 1927 e 2016, a fundação ficou responsável por fornecer 100% das doses de BCG utilizadas em território brasileiro.
Mais recentemente, porém, um problema no processo de fabricação fez com que o serviço fosse interrompido após décadas e o país precisasse comprar doses dessa vacina no exterior.
Um esforço do tamanho do Brasil
Nas primeiras décadas, a aplicação da BCG na população era muito irregular e dependia da ação dos Estados e das cidades.
“Não existia uma coordenação nacional e esse trabalho estava vinculado aos centros locais, como era o caso da Fundação Ataulpho de Paiva, no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantan, em São Paulo”, descreve Castello Branco.
A coisa começou a mudar de figura a partir da década de 1970, com a criação do Programa Nacional de Imunização.
“A obrigatoriedade da aplicação da BCG em todas as crianças brasileiras, determinada pelo Governo Federal, existe desde 1976”, detalha a médica Susan Martins Pereira, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
“Essa vacina é aplicada em dose única, de preferência logo após o nascimento. Em algumas regiões do Brasil, isso acontece ainda na maternidade”, aponta o médico Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria.
E essa pressa toda tem motivo: estima-se que mais de um terço da população mundial tenha o Mycobacterium tuberculosis em seu organismo (na grande maioria das vezes, essa bactéria não causa nenhum mal, pois o sistema imune está funcionando bem e impede o desenvolvimento de qualquer doença).
O objetivo, então, é proteger o bebê o mais rápido possível, pois há o risco de ele entrar em contato com o agente infeccioso logo cedo, durante a interação com os pais e todas as pessoas ao redor.
Vale destacar ainda que a década de 1970 marcou uma outra mudança importante na aplicação desse imunizante em nosso país: antes, ele era administrado via oral e, a partir dessa data, a versão injetável foi adotada.
É ela, inclusive, que deixa aquela pequena marca no braço direito de muita gente pelo resto da vida.
Uma vacina, muitos avanços
Nessa experiência de um século, a BCG é aplicada em mais de 100 milhões de crianças todos os anos e coleciona uma série de conquistas e resultados.
Ela está, inclusive, na lista de medicamentos e insumos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS).
“As estatísticas mundiais nos mostram que essa vacina reduz em 90% as formas mais graves da doença, principalmente a meningite tuberculosa [que afeta uma das membranas que envolve o cérebro]”, resume Pereira.
Que fique claro: a exemplo de outros imunizantes, a BCG não previne a infecção em si, mas diminui consideravelmente o risco de complicações, que estão relacionados à hospitalização e morte prematura.
É curioso notar como o uso dessa vacina também revela a disparidade social entre diferentes partes do mundo: enquanto ela nem é mais usada rotineiramente nos países mais ricos, como os Estados Unidos e boa parte da Europa, ela continua imprescindível na América Latina, na África e no Sudeste Asiático.
Isso ocorre porque a tuberculose está controlada há décadas nas nações mais desenvolvidas, mas continua a ser um tormento nas regiões pobres do planeta: até a chegada da covid-19, ela era a doença infecciosa mais mortal, deixando para trás outras fortes concorrentes, como a malária e a aids.
“Temos que lembrar que essa enfermidade ainda mata 1,4 milhão de pessoas todos os anos e está diretamente relacionada à vulnerabilidade social, miséria, fome e pobreza”, destaca o pediatra e infectologista Marcio Nehab, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/FioCruz).
Desde 2010, o Brasil contabiliza cerca de 60 mil casos e 4,5 mil óbitos por tuberculose todos os anos. Segundo o Ministério da Saúde, nosso país figura na lista das 30 nações mais atingidas por essa doença, apesar de a prevenção, o diagnóstico e o tratamento estarem disponíveis na rede pública.
Mil e uma utilidades
Por fim, é curioso notar que a BCG não se limita à tuberculose: ela também está indicada em programas de controle de outras doenças infecciosas, como a hanseníase e a leishmaniose.
E ela pode ajudar até no combate ao câncer: um dos tratamentos disponíveis há mais de 30 anos para tumores na bexiga envolve aplicar a vacina diretamente nesse órgão do sistema urinário.
A explicação para essa ampla gama de possibilidades está na forma como o imunizante ativa nossas células imunológicas.
“Essa vacinação tem um efeito indireto, de montar uma espécie de defesa global contra outros agentes. É como se nosso sistema imune criasse uma resposta mais ampla, e não apenas contra a tuberculose”, destrincha Nehab.
No caso do câncer de bexiga (que não está relacionado com uma doença infecciosa, diga-se), esse imunizante consegue ativar nossas células de defesa no local, que então passam a atacar o tumor.
E, diante de tantas evidências de versatilidade, alguns pesquisadores começaram a questionar se a BCG poderia ajudar de alguma maneira contra a covid-19.
Essa possibilidade foi aventada ainda em 2020, quando produtos específicos capazes de fazer frente ao coronavírus responsável pela pandemia atual não passavam de uma hipótese.
E foi assim que surgiu o Brace Trial, um estudo que aplicou essa vacina em 6,8 mil profissionais da saúde na Austrália, no Brasil, na Espanha, na Holanda e no Reino Unido.
“Estamos acompanhando os voluntários durante seis meses e esperamos ter os resultados em setembro deste ano”, informa o infectologista Julio Croda, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e investigador principal do Brace Trial no Brasil.
Independentemente de quais sejam os resultados dessa pesquisa, uma coisa é certa: com um século de serviços prestados e muitas epopeias pelo caminho, não podemos nunca subestimar a capacidade de a BCG nos surpreender.