Luiz Gama: textos inéditos mostram como abolicionista denunciava violência policial no século 19
Leandro Machado
Um caso bárbaro de violência chocou o advogado abolicionista Luiz Gama em 1880. Quatro jovens negros e escravizados se apresentaram à delegacia de uma vila da cidade fluminense de Paraíba do Sul, que hoje se chama Três Rios, na divisa com Minas Gerais. Ao delegado, eles confessaram ter matado o filho do seu senhor — um homem rico e dono de muitos cativos.
Matar o senhor e voluntariamente confessar o crime era comum à época. Muitos negros preferiam a prisão à escravidão, que vivia seu período final e só seria abolida pela Lei Áurea oito anos depois, em 13 de maio de 1888. Mas a punição da Justiça aos quatro jovens foi diferente neste caso.
Segundo Luiz Gama, as autoridades policiais, ao saberem do assassinato, chamaram a população da cidade à delegacia. Compareceram 300 pessoas armadas e sedentas de vingança pelo assassinato de um membro importante da sociedade. A polícia então abriu as portas da delegacia.
Em um texto publicado em um jornal da época, Gama narra as cenas de barbárie que se seguiram. Ironicamente, ele pede aplausos aos linchadores, a quem chama “patriotas armados”:
” (…) E, aí, a virtude exaspera-se, a piedade contrai-se, a liberdade confrange-se, a indignação referve, o patriotismo arma-se, trezentos concidadãos congregam-se, ajustam-se, marcham direitos ao cárcere e aí (oh! é preciso que o mundo inteiro aplauda), à faca, a pau, à enxada, a machado, matam valentemente a quatro homens; menos ainda, a quatro negros; ou, ainda menos, a quatro escravos manietados em uma prisão!”
Esse texto, um dos mais conhecidos do abolicionista, faz parte das Obras Completas de Luiz Gama que serão lançadas nos próximos dias pela editora Hedra, um acontecimento importante para os estudos do abolicionismo, da escravidão e do pensamento do advogado. Serão dez volumes com 750 textos, mais de 600 deles inéditos, segundo a editora. O material, que também contém teses jurídicas, nunca tinha vindo a público depois de publicados em jornais da época ou processos judiciais.
Os textos foram garimpados pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em História do Direito na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, e pesquisador do Instituto Max Planck. Lima estuda a vida e a obra de Luiz Gama há mais de uma década e descobriu a maioria dos artigos em arquivos públicos espalhados por São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.
A obra vem à luz em um momento de crescente interesse por Luiz Gama, um ex-escravo que se tornou tipógrafo, jornalista, dono de jornal, poeta, escrivão de polícia, abolicionista e advogado autodidata que, usando apenas a lei, libertou centenas de pessoas da escravidão no século 19.
Nos últimos anos, uma série de publicações tem resgatado seu legado, como o livro Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc), lançado no ano passado e organizado pela pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira.
Na quinta-feira (5/8), estreia o filme Doutor Gama, baseado na vida do abolicionista e dirigido pelo cineasta Jeferson De. O ator César Mello interpreta o advogado no longa.
Crônica policial
Parte dos textos inéditos revelados agora reforçam uma característica de Gama pouco conhecida do grande público: além de advogado que lutava contra a escravidão nos tribunais, ele foi um dos primeiros jornalistas que se dedicaram a denunciar nos jornais a violência sofrida pela população negra do país, principalmente no Estado de São Paulo.
“Gama era uma espécie de cronista da violência e da cidade”, explica Bruno Lima, que escreveu milhares de notas explicativas sobre os textos no calhamaço de 5 mil páginas das Obras Completas do advogado. “Como ele viajava bastante para atuar nos tribunais, ficava sabendo de casos que aconteciam em muitas comarcas de São Paulo. Ele usava os jornais para fazer essas denúncias, que, em alguns casos, até viraram processos em que ele mesmo atuava.”
Muito antes do jornalismo policial ter importância na imprensa brasileira, Gama escreveu sobre casos de violência policial, espancamentos, invasão de domicílio e assassinatos. “Ele sempre teve como mote a denúncia da violência da escravidão, mas também a violência racista sofrida pela comunidade negra que já era livre”, diz Lima.
Segundo o historiador, o caso dos quatro jovens espancados até a morte não é importante apenas como registro histórico, mas também para entender o pensamento de Gama em relação à escravidão.
Há uma frase atribuída ao ativista, embora ele nunca tenha escrito exatamente dessa forma: “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata, sempre, em legítima defesa”.
“Esse conceito aparece muitas vezes na obra de Gama. Ele acreditava que, como a escravidão era uma violência contra o direito natural e inalienável do homem, o escravizado não só podia matar o seu senhor, como tinha razão moral de fazê-lo. Para Gama, os criminosos não eram os quatro jovens, mas o senhor que os escravizava. Então, quando mataram o senhor, eles praticaram um direito natural à legítima defesa contra essa primeira violência. Para Gama, eles eram as vítimas”, explica Lima.
No texto, o jornalista diz invejar os “quatro Spartacus” envolvidos no assassinato do fidalgo. Spartacus, escravo que liderou uma revolta contra o Império Romano, é um personagem importante na trajetória do Gama, que assinou vários de seus artigos com esse nome. Ele também escreveu sob o codinome de John Brown, em referência a um abolicionista americano que liderou uma revolta armada contra a escravidão, no século 19.
Segundo Lima, a escolha dos heterônimos não foi aleatória: era uma característica do projeto abolicionista e literário de Gama. “Ele se colocava nessa posição, não apenas de um advogado que trabalhava com as leis, mas de um escritor que radicalizava os conceitos e a prática. Uma pessoa que enxergava a resistência radical à escravidão como uma saída”, diz.
Para Marcelo Ferraro, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Gama foi nos últimos anos celebrado por movimentos conservadores em contraponto a nomes do movimento negro ligados a uma resistência guerreira, como Zumbi dos Palmares. Isso porque Gama ainda é visto como um ativista “moderado”.
“Mas essa é uma visão equivocada da trajetória dele. Gama tinha um pensamento radical, de enfrentamento da escravidão com uso da reação como legítima defesa. Esse texto sobre o linchamento dos jovens deixa explícita essa ideia”, explica.
Segundo Ferraro, o linchamento dos “quatro Spartacus” era uma “violência nova” no Brasil do século 19: esse tipo de crime era mais comum nos Estados Unidos.
“Nessa época, em 1880, esse tipo de violência já era contestada e criticada entre as classes mais esclarecidas, que já se colocavam contra a escravidão em alguns jornais que não pertenciam às elites escravocratas. José do Patrocínio também fazia denúncias parecidas nos jornais do Rio. Era para esse público que Gama e outros abolicionistas escreviam”, diz Ferraro, que pesquisa violência e escravidão no Brasil e nos Estados Unidos.
‘Não é permitido ao negro divertir-se’
Um dos textos inéditos de Luiz Gama, revelado agora pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, conta outra história de abuso policial contra a população negra de São Paulo.
Em uma curta crônica no jornal Gazeta do Povo em junho de 1881, Gama relatou que um moçambicano livre chamado Joaquim Antonio tinha sido autorizado pela polícia a dar uma festa em casa. Na época, pessoas negras precisavam informar e até pagar às autoridades pelo direito de realizar alguma comemoração.
“O africano livre Joaquim Antonio, morador ao marco da Meia Légua, obteve do digno sr. capitão Almeida Cabral, subdelegado do distrito, licença para dar um divertimento. Já não é pouco: neste país clássico da liberdade não é permitido ao negro divertir-se, em sua casa, sem licença da polícia!”, escreveu Gama, sempre com um toque irônico ao falar do Brasil.
O texto não diz exatamente onde ocorria a festa. Mas, segundo Lima, provavelmente foi no Brás, Zona Leste de São Paulo, bairro à época de periferia e ocupado principalmente por trabalhadores negros livres. “Os marcos de meia légua demarcavam a distância de 3,3 km de cada ponto cardeal com a praça da Sé. Gama e sua família viviam nessa região. Provavelmente, ele soube do caso porque era vizinho do africano”, diz o historiador.
O jornalista continua a crônica: o moçambicano Joaquim Antonio festejava com os amigos dentro de casa quando escutou um chamado da polícia do lado de fora, pedindo para que ele interrompesse o encontro.
“Joaquim Antonio fechou a sua porta e continuou a divertir-se, com outros seus amigos negros. A patrulha arrombou a porta, penetrou na casa (era meia noite!), saqueou-a, mediante rigorosa busca, prendeu o africano livre, que reclamara contra o ato e, em seguida, arrombou mais duas casas de africanos, sem fundamento nem razão!”, relatou Gama.
Ele finaliza a crônica com um alerta às autoridades: “A pessoa que isto escreve está de tudo bem informada; e já instruiu aos pretos que, em análogas circunstâncias, repilam a agressão a ferro e à bala. O exmo. sr. dr. chefe de polícia tem meios de impedir desaforos desta ordem. Sabemos, pelo seu nobre caráter, que é incapaz de autorizar tropelias tais”.
Para Lima, a crônica tinha também um caráter de “petição jurídica”, porque Gama endereçou o texto ao chefe de polícia de São Paulo, além de citar o capitão responsável pelo caso e o nome da vítima da agressão.
“Há uma estrutura de petição de direito. Gama ainda avisa que, como advogado, instruiu as vítimas a atirar nos policiais caso ocorresse uma nova invasão ilegal. Isso é o abolicionismo negro radical, fincado na defesa armada”, explica o historiador.
Crimes atuais
Os textos de Gama sobre crimes e abusos no século 19 apontam para um problema que ainda hoje assombra a sociedade brasileira: a violência policial. No ano passado, por exemplo, 6.416 pessoas foram mortas pelas forças de segurança no país, segundo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Público. É um recorde histórico.
Desse total, 78,9% das vítimas eram negras e 76,2% tinham entre 12 e 29 anos. Das 50 mil mortes violentas registradas no Brasil no ano passado, 76,2% tiveram pessoas negras como vítimas – 54% da população brasileira é formada por negros (pretos e pardos), segundo o Instituto Brasileiro de Geografoa e Estatística.
Essa proporção desigual se repete quando os policiais são as vítimas: 62,% dos 194 policiais mortos violentamente no ano passado também eram negros.
Para Lívio Rocha, investigador da Polícia Civil de São Paulo e mestre em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas, a violência denunciada por Luiz Gama demonstra que, já no século 19, as forças de segurança tinham como projeto a proteção e o cuidado da elite branca e rica, em detrimento da população pobre e negra, muitas vezes tratada com brutalidade.
“A violência estatal é uma característica da história do Brasil. Ela passa pela Monarquia, por Getúlio Vargas, pela ditadura militar e pela democracia. É um problema estrutural, que independe se o governo é de esquerda, de direita, de centro. Nunca houve interesse político em tornar a polícia mais democrática”, diz Rocha, que também é pesquisador na Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“A formação do policial não é crítica. Discussões sobre racismo e direitos humanos são feitas de maneira formalista e protocolar, sem espaço para reflexão sobre a atuação do policial. Costumo perguntar para meus colegas: quantos chefes negros você já teve na polícia? São muito poucos. Os policiais negros também são os que mais morrem no trabalho, mas o próprio policial não fala sobre isso”, diz Rocha, que também milita no movimento negro.
Morrer livre
Luiz Gama morreu em 24 de agosto de 1882. Portanto, depois de décadas militando contra a escravidão, o advogado e jornalista não viu a abolição completa que só viria pela Lei Áurea.
Pouco mais de um ano antes, ele escreveu uma crônica, redescoberta por Lima, sobre uma escravizada que “sonhava em morrer livre”. Para isso, ela guardou dinheiro durante a vida para comprar sua liberdade, como tinha direito de fazer.
“Há mais de um ano a preta Brandina, maior de 70 anos, escrava do fazendeiro sr. Barbosa Pires, do distrito de Pirassununga, requereu a alforria por meio de retribuição pecuniária e exibiu, com a sua petição, pecúlio regularmente constituído, no valor de 200$000 em dinheiro”, começa Gama.
Mas, dessa vez, o obstáculo para a liberdade não era só o senhor de escravos, mas a Justiça. O fidalgo, “para evitar maus exemplos” contra seu direito patrimonial, não aceitou a libertação de Brandina. O caso chegou ao tribunal. “Os juízes, que não apreciam monomania emancipadora e dão razão ao sr. Barbosa Pires, não depositaram a libertanda, deixaram-na em poder do senhor”, conta Gama.
Mas a história de Brandina, impedida pela Justiça de gozar uma morte livre, não termina aí.
“Brandina, a desgraçada velha candidata à mortalha, para evitar os rigores do cativeiro, no derradeiro quartel da vida, fugiu da casa do senhor, meteu-se pelos matos, já que não encontrou juízes humanos nas povoações, no seio das sociedades civilizadas”, escreveu Luiz Gama.