A ‘civilização perdida’ que construiu mega-assentamentos na Europa há 7 mil anos
Valeria Kovtun e Christine Sarkis
“Você sabia que existe um livro de Júlio Verne chamado A Ilha Misteriosa, no qual as pessoas se encontram em uma ilha e começam a construir uma civilização?”, pergunta Mykhailo Videiko, arqueólogo da Universidade Borys Grinchenko Kyiv, na Ucrânia.
“Mas aqui não é uma história de ficção”, ele faz uma pausa.
“Esta é uma história real.”
Silenciada duas vezes, uma vez pelo tempo, e depois pela política, a antiga civilização Cucuteni-Trypillia está mais uma vez encontrando vozes para compartilhar sua história.
A história de Trypillia, como é comumente conhecida, começou há 7 mil anos onde hoje é a Europa Oriental.
A maioria dos assentamentos foi descoberta na Moldávia e na Ucrânia, ex-repúblicas soviéticas, e na Romênia.
Os assentamentos escavados oferecem aos arqueólogos modernos um dos primeiros exemplos conhecidos de urbanização e sugerem a existência de uma população com mais de um milhão de habitantes.
O povo de Trypillia “conseguiu implementar quase todas as inovações tecnológicas de seu tempo”, diz Videiko.
Eles eram obcecados por cerâmica, e construíram os fornos mais avançados da época. As técnicas de construção permitiram erguer casas de até 700 m².
“Um assentamento pode se comparar à Londres medieval em tamanho”, diz Videiko.
“Muitos pesquisadores não podiam acreditar que um assentamento assim realmente existisse. Eles descobriram 1,5 mil construções lá. Uma casa tinha 700 m². É muito para uma construção europeia de 5,5 mil anos.”
E os objetos encontrados ali indicam uma cultura que adorava deusas femininas.
Um dos mistérios não desvendados sobre Trypillia era a destruição periódica dos assentamentos. Antes de deixar o local, eles queimavam as casas.
“O abandono e a queima das casas de Trypillia eram acompanhados pela destruição dos fornos. Os restos dos fornos eram removidos para o lado de fora da casa. Isso pode significar que eles ‘matavam’ a casa, tiravam o coração da casa e colocavam fogo em tudo”, afirma Vladyslav Chabaniuk, diretor da reserva Trypillia.
As pesquisas sobre Trypillia foram inicialmente abraçadas pela União Soviética. As autoridades comunistas estabeleceram paralelos entre a impressionante civilização antiga e a ideologia marxista, que promovia uma sociedade sem classes e sem propriedade privada.
Por isso, destinaram grandes fundos para financiar projetos de estudo arqueológico sobre a civilização.
“Trypillia era uma ilustração maravilhosa de uma sociedade pré-classe, sem classes ou do comunismo primitivo”, explica Videiko.
Mas quando surgiram indícios de que Trypillia pode não ter sido a utopia da sociedade sem classes que aparentava ser a princípio, as coisas mudaram rapidamente.
“À medida que os arqueólogos exploravam mais, eles começaram a descobrir mega sítios arqueológicos da civilização Trypillia. Começaram a encontrar todas essas construções enormes. E surge a pergunta: tudo isso poderia ser feito por uma sociedade sem classes?”, conta Videiko.
“Tecnicamente, todas as descobertas científicas estavam destruindo a teoria marxista-leninista.”
Nos anos que se seguiram, os pesquisadores que desafiaram a propaganda oficial foram considerados inimigos do Estado.
Alguns escavadores do sítio arqueológico de Trypillia foram condenados como membros de uma organização de espionagem terrorista.
“Sentença. 1937. Pelotão de fuzilamento.”
Livros que promoviam o estudo de Trypillia foram publicados fora do país, mas, segundo Videiko, “nunca chegaram à Ucrânia”.
“Estavam pesquisando algo, mas quase ninguém aqui sabia a respeito. Aqueles que sabiam, permaneceram em silêncio”.
Hoje, o legado de Trypillia está sendo revivido por meio da moda.
A estilista ucraniana Svitlana Bevza se inspirou na arte da antiga civilização centrada na figura feminina — “no simbolismo da mulher como deusa, como símbolo de terras férteis, como símbolo do nascimento”.
Ela usa sua linha de roupas e joias com influência Trypillia como uma forma de celebrar a cultura, a reverência pelas mulheres e a conexão com a natureza daquele povo.
Segundo ela, é injusto que “essa grande cultura não seja tão conhecida no mundo — como a egípcia, por exemplo”.
“Não havia voz que pudesse falar para o mundo sobre essa cultura”, completa.
Uma civilização avançada construída do nada não é apenas tema de romance de ficção, é também a verdadeira história de Cucuteni-Trypillia, sendo contada mais uma vez.