Por que mulheres são mortas até hoje sob acusação de ‘bruxaria’
Jesús Moreno
Pesar pouco mais do que um pequeno pássaro. Só isso.
Essa era a condição necessária para se salvar da morte na fogueira. Simples, não?
Não na Europa medieval.
Convencer uma multidão do contrário, caso alguém apontasse o dedo para você e gritasse: Bruxa! Bruxa! Bruxa! era um desafio para muitas mulheres.
E muitas pagaram com a vida ao encarar tal provação.
Tamanha era a dificuldade que muitas mulheres cruzaram a Europa para chegar à cidade holandesa de Oudewater e provar que pesavam mais que o ar. Lá o teste do Heksenwaag as esperava: a balança das bruxas.
A lenda dizia que as bruxas podiam voar porque, sem alma, não tinham peso. Se ao subir na plataforma de madeira o peso era normal, elas obtinham um certificado que descartava sua condição sobrenatural. Do contrário, enfrentariam a sentença dos chamados “julgamentos de Deus”.
Havia outras balanças, mas esta tinha certa reputação de imparcialidade.
“Há relatos de outros lugares em que a balança era manipulada para mostrar ‘0’ no mostrador”, explica Marja Kingma, curadora das coleções germânicas da British Library, a biblioteca nacional britânica, em um informe da instituição.
Muitas pesagens devem ter permanecido neste número, pois historiadores dizem que pelo menos 80 mil a 100 mil pessoas foram levadas a julgamento por bruxaria entre 1400 e 1750.
Desse total, cerca de 80% eram mulheres, segundo levantamento de Geoffrey Scarre, professor de Filosofia da Universidade de Durham (Reino Unido).
E pelo menos metade das acusadas sofreram a agonia de serem consumidas pelas chamas e pela tortura.
Na Europa, balanças como a de Oudewater são, hoje, apenas uma atração para turistas despreocupados que se pesam e recebem seu certificado de souvenir.
Mas a caça às bruxas está longe de ser uma coisa do passado.
Para muitas mulheres, o pesadelo de serem perseguidas sob a pretensão de serem bruxas não acabou: a ONU alerta que milhares são assassinadas todos os anos no mundo sob essa acusação.
E tal fenômeno não pode ser compreendido sem entender a importância da dimensão do gênero.
Isso porque, além desses supostos poderes sobrenaturais e malignos, muitos pesquisadores argumentam que as bruxas foram mortas justamente por serem mulheres.
Um “femicídio” anterior ao próprio conceito e cujas tramas continuam até hoje.
‘O martelo das bruxas’
Na manhã de 29 de outubro de 1485, o inquisidor Henry Institoris e outras autoridades eclesiásticas se encontraram na grande sala de reuniões da Prefeitura de Innsbruck (oeste da Áustria).
Estavam ali para testemunhar o interrogatório de Helena Scheuberin, uma mulher suspeita de praticar feitiçaria que se sentaria no banco dos réus com outras 13 pessoas.
Scheuberin era uma mulher ousada e independente. Não tinha medo de falar o que pensava e até ousou interromper um sermão de Institoris para dizer publicamente que ele era uma pessoa má.
Ela foi acusada de ter amantes. Muitos. E de matá-los com seus poderes, bradou o inquisidor.
A imoralidade sexual e a feitiçaria são dois conceitos inseparáveis, argumentou Institoris, dirigindo-se a ela. Mas Scheuberin foi destemida e mais uma vez o desafiou no tribunal.
Institoris continuou sua argumentação, narrando as práticas sexuais da suposta bruxa, em meio a detalhes escabrosos.
Tamanha era sua cólera que o restante dos prelados ficou incomodado, a tal ponto que o representante do bispo, irritado, ordenou que Institoris parasse com aquele espetáculo.
O julgamento terminou mal para o inquisidor, pois a comissão libertou Scheuberin. Institoris foi humilhado.
Mas isso não aconteceria novamente. Institoris, que a história também conhece pelo nome alemão (Heinrich Krämer), decidiu nunca deixar uma bruxa escapar e se enclausurou na cidade de Colônia (Alemanha) para escrever, junto com o monge dominicano Jacob Sprenger, “um dos melhores conhecidos, mais citados e, de fato, mais infames textos medievais: ‘O Martelo das Bruxas, o Malleus Maleficarum'”, segundo definiu o historiador Hans Peter Broedel, professor-associado de História na Universidade de Dakota do Norte (Estados Unidos), que conta essa história em seu livro “O Malleus Maleficarum e a construção da feitiçaria.”
Publicado em 1487, a obra foi reeditada 15 vezes e 30 mil exemplares foram distribuídos por toda a Europa naqueles anos de caçadas supersticiosas, diz a jornalista suíça Mona Chollet em seu livro “Bruxas. Estigma ou a força invencível das mulheres? “
“Durante aquele tempo, os juízes o usaram em todos os processos. Faziam as perguntas do ‘Malleus’ e ouviam as respostas do ‘Malleus”, explica.
O momento era propício. Em 1484, o Papa Inocêncio 8º emitiu uma bula permitindo a violência contra bruxas e o tratado dos dois monges passou a ser usado como uma espécie de diretriz para os inquisidores.
“Entre 900 e 1400, as autoridades cristãs não estavam dispostas a admitir a existência de bruxas, muito menos a julgar alguém pelo crime de ser uma bruxa”, argumentam os pesquisadores Peter T. Leeson e Jacob W. Russ, da Universidade George Mason (Estados Unidos).
Mas a partir daí, por cerca de três séculos, as bruxas passaram a ser um dos focos de perseguição da Igreja.
Principalmente entre os anos 1560 e 1630, quando mais de 60% desses julgamentos aconteceram, segundo análise de 43 mil registros em 21 países europeus compilados por Leeson e Russ para seu artigo, publicado no The Economic Journal.
Geograficamente, mais da metade ocorreu “em um raio de 500 quilômetros ao redor da cidade de Estrasburgo (França)”, assinalam.
Não há consenso entre os historiadores sobre as razões que levaram a essa mudança de posição sobre as bruxas.
A hipótese mais aceita é que se trata de um processo mais amplo em que a Igreja viu seu poder em risco.
Esses foram os tempos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, das guerras religiosas europeias e da ascensão dos Estados absolutistas modernos, com sua intenção secularizadora e as aspirações científicas da Renascença.
“Existem causas históricas, jurídicas, religiosas, econômicas, intelectuais e sociais que marcaram certos setores ou grupos vulneráveis como ‘bodes expiatórios'”, explica filósofa feminista mexicana Norma Blazquez Graf em seu livro “O Retorno das Bruxas”.
Mas ela enfatiza “um fato muito importante: a caça às bruxas era um fenômeno que afetava principalmente as mulheres”.
“A Grande Caçada” havia começado.
Por bruxas ou por mulheres?
“O ‘Malleus Maleficarum’ é um dos primeiros livros da história da humanidade que combinam criminologia, código penal e código processual.
“Ele estabelece o que é crime (neste caso, bruxaria) e como julgá-lo”, explica o procurador argentino Pablo Ernesto Rossi, professor e pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA), à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
“O ‘Malleus Maleficarum’ tem uma característica muito importante: é dirigido a inquisidores e extremamente honesto quanto à sua essência, pois deixa explícito que a perseguição é dirigida às mulheres”, afirma.
“O livro argumenta repetidamente que a maioria das bruxas são mulheres e não homens. E dedica um capítulo inteiro para explicar que as mulheres são seres inferiores e por isso é mais fácil para o diabo lidar com elas, especialmente se forem pobres”, acrescenta Rossi.
“As notas manuscritas das sessões de tortura descrevem um perfil claro: mulheres, pobres e geralmente solteiras ou viúvas”, destaca.
Mas por que mulheres?
“O livro e a época refletem uma angústia masculina crescente por tudo o que tem a ver com a reprodução humana: o conhecimento da gravidez, o parto, até as ervas abortivas… tudo isso era domínio das mulheres”, explica o professor da UBA.
Havia uma determinação para que “todo o universo do parto deixasse de estar nas mãos das mulheres e passasse para a figura do médico, encarnado pelo homem, que tinha acesso à educação”.
A referência ao sobrenatural, portanto, caiu como uma luva nesse contexto.
Segundo o livro, “as parteiras são as que causam o maior dano (…), quando não matam a criança, então, obedecendo a outro desígnio, tiram-na da sala, levantam-na no ar e ofereçem-na ao diabo.”
Blazquez Graf, pesquisadora do Centro de Pesquisas Interdisciplinares em Ciências e Humanidades da Universidade Autônoma do México, concorda com essa análise.
“As mulheres acusadas de feitiçaria costumavam ter um ofício, eram cozinheiras, perfumistas, curandeiras, conselheiras, camponesas, parteiras ou babás, e desenvolviam suas atividades a partir de seus próprios conhecimentos”, diz ela em seu livro.
Neste sentido, sabiam distinguir as plantas, conheciam métodos para destilar remédios curativos ou eliminar venenos, forneciam anticoncepcionais e realizavam abortos.
“As frequentes representações de bruxas em que elas aparecem ao lado de um caldeirão não são acidentais, já que a maioria dos ingredientes da bruxaria, como as refeições, eram cozidos naquele tipo de recipiente”, descreve Blazquez.
Mas não importava usar o caldeirão para o bem ou para o mal.
O “Malleus” não distinguia comportamentos, porque “não o julgava pelos seus atos, mas por quem você era”, lembra Rossi, da UBA.
Suas páginas deixavam claro: “Há bruxas que ferem e curam, outras ferem, mas não curam, e outras apenas curam (…) Por causa do juramento feito ao diabo, todos os feitos das bruxas, mesmo aquelas que são boas, devem ser considerados ruins”.
Caça às bruxas chega à América Latina
Nas Américas colonial, essa perseguição “não foi um fenômeno massivo” como em algumas partes da Europa, onde a “ilegitimidade do poder das mulheres foi confrontada por meio da caça às bruxas, na qual elas se tornaram o principal alvo de perseguição e extermínio”, assinala a pesquisadora Ana Carolina Palma em sua pesquisa para a Universidade Icesi da Colômbia.
No entanto, as mulheres do chamado Novo Mundo não estavam imunes — muitas sofriam denúncias de bruxaria nos tribunais da Inquisição que os espanhóis levaram a Lima, México e Cartagena das Índias.
Quando os espanhóis chegaram à região, já existia uma tradição mágica milenar, ligada às próprias visões locais de religião e medicina, que acabou se misturando às superstições dos espanhóis e até dos escravos negros da África.
“Ironicamente, os conceitos europeus de Satanás e os supostos poderes das bruxas começaram a ser enxertados na visão de mundo dos povos indígenas”, ressalta Silverblatt em sua pesquisa.
Os anos então se transformaram em décadas e estes em séculos, pondo fim à caça às bruxas na Europa e na América Latina.
No entanto, a violência contra essas mulheres não desapareceu.
Essa confluência de superstições deixou um resíduo cultural nas populações latino-americanas, que continuaram a acreditar nas bruxas e em suas conexões com o diabo.
Assim, mesmo em meados do século 20, mulheres acusadas de bruxaria continuaram a morrer na região.
Não em tribunais cercados de batinas, mas “em linchamentos e torturas” nas mãos de massas furiosas que as usavam como bode expiatório para todos os seus males, explica Gema Kloppe-Santamaría, historiadora e professora da Universidade Loyola, em Chicago, nos Estados Unidos.
E o México pós-revolução é um exemplo ilustrativo disso.
Linchamentos populares
Em agosto de 1941, Lucero Curiel foi arrastada para fora de sua casa na cidade de San Juan del Mezquital em Zacatecas, na região central do México.
O frágil corpo da idosa não resistiu às pancadas e pedradas da multidão enfurecida, incluindo vizinhos que tantas vezes a procuraram em busca de misturas que curassem as suas doenças e atraíssem boa sorte.
Eles estavam convencidos de que Curiel era a culpada pela morte de várias pessoas na cidade. Antes que ela pudesse se explicar, o fogo já estava subindo por suas saias.
“O machismo e a impunidade do feminicídio no México formam a mistura perfeita pela qual as mulheres são odiadas e nada acontece”
Se alguma vez teve poderes sobrenaturais, Clara Fonseca não previu que em julho de 1944 aquele menino, portador de meningite, filho de uma influente família de La Purísima (Puebla), morreria em seus braços. Ela foi acusada de não ser uma “verdadeira curandeira”.
Nem Micaela Ortega, natural de Acajete (Puebla), poderia imaginar que aqueles ferros e facões incandescentes desfigurariam seu rosto e corpo quando um grupo de homens, incluindo o prefeito, a arrastou para a rua na frente de seus filhos naquele mês de novembro de 1934.
Sabe-se que Ortega era espiritualista, socialista e que queria transformar a igreja local em biblioteca.
Kloppe-Santamaría se deparou com uma infinidade de casos semelhantes ao pesquisar os arquivos da polícia e de jornais entre 1930 e 1950 para seu estudo que, mais tarde, daria origem ao livro “No vórtice da violência: linchamentos, justiça extralegal e estado em México pós-revolucionário”, período fundamental para entender as raízes da violência no país, em sua visão.
E algumas das questões que surgiram foram: por que tanta crueldade contra essas mulheres? O que os casos têm em comum?
“Essas mulheres eram vistas como transgressoras, afastaram-se do papel que se esperava delas na época. Desafiaram as noções de submissão, domesticidade, passividade e cuidado materno que seus pares esperavam delas”, explica Kloppe à BBC News Mundo.
Ela lembra que havia “uma posição ambivalente” em torno dessas bruxas ou curandeiras.
“Por um lado, eram pessoas influentes a quem recorriam em busca de ajuda devido a superstições, mas, por outro lado, eram vistas como subversivas, desafiando o domínio dos homens nas esferas pública e privada.”
E o tipo de violência estava carregado de simbolismo.
“Essas mulheres tiveram que ser ‘supermortas'”, diz a historiadora, que enfatiza essa dupla dimensão.
“Segundo a lenda, era preciso impedir o espírito da bruxa de se vingar, então elas tinham que ser queimadas. Mas se tratava também de um recado para as mulheres, de que um comportamento desse tipo não será tolerado. Matar era um ato social e público; o objetivo era dar o exemplo”.
A caça às bruxas atualmente
Na América Latina, esse tipo de violência contra as bruxas desapareceu nas décadas de 70 e 80, destaca a pesquisadora.
Mas as mortes por acusações de feitiçaria seguem acontecendo em outras partes do mundo.
“Em muitas comunidades, ser acusada de bruxaria equivale a receber uma sentença de morte”, indicam as conclusões de um comitê de especialistas do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que, em setembro do ano passado, apresentou um relatório sobre a caça às bruxas atualmente.
A real extensão do fenômeno está longe de ser conhecida, alertam, já que muitos desses crimes ocorrem em territórios de difícil acesso e cercados por falta de transparência.
O comitê documentou 22 mil vítimas acusadas de bruxaria nos últimos 10 anos, mas estima que o número seja maior.
Segundo o levantamento, só na Tanzânia mais de mil pessoas morrem anualmente por esse motivo. Na Índia, entre 2000 e 2016, a polícia registrou 2,5 mil assassinatos por suspeita de bruxaria (120 em 2020).
E o relatório da ONU destaca outros países como a República Democrática do Congo, Angola, Nigéria, Gana e Quênia, onde essas práticas são registradas e os dados são muito escassos.
Em relatórios anteriores, o comitê já havia constatado perseguições no Nepal ou na Papua-Nova Guiné.
Casos desse tipo foram registrados em até 50 países hoje, com a caça às bruxas sendo legal em alguns deles.
Na Arábia Saudita, por exemplo, foi criada uma “Unidade Anti-Bruxaria” na polícia em 2009 e a pena de morte ainda está em vigor para essa acusação.
Os efeitos das denúncias de feitiçaria continuam hoje marcados pela “violência extrema”, afirma o relatório, que especifica sacrifícios humanos, mutilações, torturas e assassinatos.
As motivações são variadas, não influenciadas apenas por crenças: “A perseguição de supostas bruxas é um negócio lucrativo […], algumas figuras religiosas têm feito fortunas enormes”, alertam.
“Taxas exorbitantes” podem ser cobradas por exorcismos, por caçar alguém acusado de bruxaria ou por curar quem tenha sido enfeitiçado.
Até mesmo a covid-19 está causando um aumento nesse crime.
“As pandemias criam situações de medo, incerteza e desespero. Isso abre caminho para a proliferação da superstição e do irracional […]. Já há relatos que indicam que a covid-19 causou um aumento nas acusações de bruxaria contra as mulheres (da casta Dalit) na Índia”.
Mas quem são as vítimas hoje?
O perfil que esses especialistas descrevem mostra que três grupos se destacam principalmente: crianças (que são acusadas de serem possuídas pelo demônio), pessoas com transtornos mentais e várias deficiências (inclusive albinos) e mulheres.
Para uma mulher, “a situação mais perigosa” em uma sociedade com crenças na feitiçaria é ser vista como uma “transgressora da norma cultural”, dizem os pesquisadores, que destacam como em alguns países, Índia, por exemplo, as mulheres que vivem sozinhas e são independentes financeiramente muitas vezes são acusadas de serem bruxas para que seu patrimônio seja roubado.