A pintora violentada que se vingou pela arte em pleno século 17
Irene Hernández Velasco
“Trancou o quarto a chave e depois me jogou sobre a cama, imobilizando-me com uma mão sobre meu peito e colocando um dos joelhos entre minhas coxas para que não pudesse fechá-las. E levantou minhas roupas, algo que lhe deu muito trabalho. Pôs um pano em minha boca para que não gritasse. Eu arranhei seu rosto e arranquei seus cabelos.”
Esse é o relato de um estupro ocorrido há quatro séculos, mais especificamente no ano de 1611.
A vítima era a italiana uma artista cujo talento pode ser comprovado pelo fato de ter sido a primeira mulher aceita na Academia de Belas Artes de Florença, na Itália, a mesma pela qual passou Michelangelo.
Além de ter sido estuprada, ela teve de aguentar ver o agressor livre e sua denúncia questionada abertamente.
Para piorar, Artemisia sofreu com a indiferença e a rejeição do mundo artístico de sua época por ser mulher, e passou pela humilhação de ver a autoria de seus quadros atribuída a seu pai e outros artistas masculinos.
Mesmo depois de morta, durante séculos foi considerada apenas uma curiosidade, uma raridade exótica e menor na história da arte.
Demorou muito para que seu valor artístico fosse reconhecido. E apenas na década de 1970 Artemisia se tornou um símbolo do feminismo.
Em novembro do ano passado, o Museu de Roma abriu uma exposição dedicada somente à artista italiana – a mostra termina em maio.
Artemisia e seu tempo reúne quase 100 quadros pertencentes a alguns dos mais prestigiados museus do mundo, e por meio deles é possível revisitar a vida e o trabalho da artista e alguns de seus contemporâneos, incluindo seu pai, Orazio, e outros pintores que trabalhavam na capital italiana no século 17, como Guido Cagnacci, Simon Vouet e Giovanni Baglione.
Ônus da prova
Nascida em Roma, em 1593, Artemisia era a primogênita e a única mulher entre os quatro filhos de Orazio Gentileschi.
Aprendeu a pintar no ateliê do pai, influenciada pelo naturalismo de Caravaggio (a quem, dizem, teria conhecido pessoalmente), em especial sua dramaticidade e seus fortes contrastes cromáticos.
Roma passava por um extenso processo de transformação urbana que atraía para a cidade inúmeros artistas em busca de trabalho.
Foi o caso de Agostino Tassi, um pintor especializado em paisagens e com fama de brigão. Ele e o pai de Artemísia foram contratados para fazer os afrescos do Cassino das Musas e do Palácio Rospigliosi.
Os dois ficaram amigos e Orazio abriu as portas de sua casa para Tassi, que estuprou Artemisia, na ocasião com 18 anos. Ela demorou um ano para ter coragem de denunciá-lo.
Essa demora fez com que a opinião pública se voltasse contra ela, com muitos concluindo que a agressão na verdade teria sido uma relação consensual.
Ainda assim, Tassi foi condenado em 27 de novembro de 1612. Só que o juiz lhe deu a chance de escolher entre uma sentença de cinco anos de trabalhos forçados ou a deixar Roma.
O pintor optou pelo exílio.
Casamento
Orazio mal esperou o escândalo esfriar para organizar um casamento para que Artemisia “recuperasse sua dignidade aos olhos da sociedade”.
Em 29 de novembro, apenas dois dias depois da condenação de Tassi, a filha se casou com o pintor Pierantonio Stiattesi e se mudou para Florença.
Artemisia já tinha começado a pintar figuras femininas fortes, inspirada tanto pela Bíblia quanto pela mitologia, mas com uma nova perspectiva: a feminina.
Em 1610, por exemplo, pintara Susana e os Anciãos, quadro que se baseia no relato da parábola de Susana – uma mulher casada com um rico morador da Babilônia, assediada sexualmente por dois juízes que frequentavam sua casa. Ao recusar as investidas dos dois, foi falsamente acusada de adultério.
Segundo a Bíblia, Susana só escapou da morte por apedrejamento por intervenção do profeta Daniel. Ele teria sugerido que os dois fossem interrogados separadamente e questionados sobre em que árvore do jardim teriam visto a consumação do adultério. Como não haviam combinado os detalhes da história, caíram em contradição e Susana foi inocentada da acusação.
A beleza do quadro fez com que muitos considerassem que a artista, então com 17 anos, não o teria pintado sozinha, e sim orientada pelo pai.
A maioria das pinturas sobre a parábola retrata Susana como uma mulher frívola e namoradora, mas Artemisia optou por uma imagem vulnerável e assustada. . E isso antes mesmo de a própria artista se tornar vítima de um estupro, o que ocorreria um ano depois.
Depois da agressão de Tassi, sua abordagem tornou-se ainda mais crítica.
Vingança
Já em Florença, pintou outra cena bíblica, Judite decapitando Holofernes.
Trata-se de seu quadro mais famoso e mostra o momento em que a viúva Judite, com ajuda de uma serva, corta a cabeça de um general que a havia assediado.
A passagem bíblica já havia sido levada às telas por inúmeros pintores desde o Renascimento e era considerada uma alegoria do triunfo feminino sobre os homens.
Mas, nas mãos de Artemísia, a cena ganhou novos contornos – vários especialistas interpretam sua abordagem como um desejo de vingança pela agressão sofrida.
‘Judite’ foi um tema que Artemísia pintou outras duas vezes, algo também feito com ‘Susana’.
Passou a vida pintando e chegou a ter certa fama, mas caiu em profundo e longo esquecimento após sua morte, em 1654, em Nápoles.
Foi apenas na segunda metade do século 20 que sua arte começou a ser novamente apreciada por alguns críticos e seu nome, desenterrado. Mas sua “ressurreição” mesmo ocorreu com sua conversão em ícone do movimento pela igualdade de direitos entre homens e mulheres.